Dec 21, 2008

Espaço a quem merece espaço

Como indicado por meu amigo e companheiro das letras, Heyk Pimenta, reproduzo aqui um texto do parceiro para que um maior número de pessoas se informe sobre o assunto, reflita, opine e reaja. Coisas graves devem ser tratada com gravidade! Muita arte a todos!

Texto publicado no blog de Heyk Pimenta: http://heykpimenta.blogspot.com

Para entender do que se trata a história leiam antes: www.oglobo.com/especiais/chatosporoficio/


Este texto será lido por amigos, colunistas e jornalistas da grande mídia e alternativa, artistas, movimentadores. Alguns me conhecem um tanto. Meu nome é Heyk, sou poeta, editor assistente, universitário, casado, migrante.
Ontem, quinta feira, dia 18 de dezembro de 2008, o jornal O Globo levou em caderno especial elaborado pelo programa de estágio do jornal a reportagem com o título: Chatos por ofício. Nela vendedores de cerveja na praia, agenciadores de empréstimo das praças, sambistas mambembes, chamadores de restaurante, artistas de rua, camelôs de ônibus foram postos homogeneizadamente como incômodo para a sociedade, os tais "chatos por ofício", como aponta o título.

Venho particularmente me solidarizar com essas categorias profissionais (e que fique claro a legitimidade profissional de todas essas práticas) citadas ontem pelos estagiários d'O Globo. E venho principalmente colocar em questão e em xeque a finalidade e estrutura dessa reportagem, seus ideais de sociedade e seu teor descriminalizante, se não criminalizante, dos profissionais de que trataram.
Apontando esses trabalhadores como tediantes, irritantes e por vezes mentirosos e quase sempre pedintes insistentes, o jornal se detém em tirar da sociedade o problema de um mercado de trabalho inflado e carniceiro para atribuir a esses trabalhadores (efeitos dessa lógica), a culpa por sua posição. A reportagem trata a questão como um problema moral (de índole), quando ele o é no mínimo econômico, e sim político, social, ideológico no caso a que irei me ater aqui.

Meus primeiros poemas datam de 1995, e desde então me dedico mais ou menos à poesia, sempre tendo-a como estandarte e totem. E foi quando conheci um dos cidadãos de quem o caderno especial tratou que tive certeza e argumentos internos para ser também um poeta de rua.
Falo de Léo Xisto, guitarrista e compositor da banda Na sala do sino, um dos que me mostraram que levar literatura de preço acessível a lugares públicos travava duas batalhas indispensáveis para nós: popularização da poesia e estar disposto a colocar em debate onde fosse a importância da arte, como militância e como sim motor de uma revolução lúdica - de uma mudança de paradigma através do prazer e jogo, da criação.
.
Ao lado de Léo Xisto, estão outros, como Azulay (seu parceiro musical na banda e nos ônibus em que trabalham tocando músicas próprias e outras consagradas do repertório nacional), professor de bateria e percussionista do Cordão do bola preta; Guila Sarmento, exímio poeta de rua; Joannes Jesus, a cinco anos tocando violão pela cidade, compositor e músico - isso no contexto carioca e para ser muito breve, posto que só os poetas de rua na cidade passam dos vinte. Em São Paulo a poesia Maloqueirista - Caco Pontes, Berimba de Jesus, Pedro Tostes - dá o mesmo recado: literatura popular e debate aberto com quem passa por perto.

Esses artistas, eu e muitos outros, para além de seu papel artístico-político cumpre suas demandas financeiras com essa atividade. Vendem seu trabalho e pagam suas contas. E esses mesmos artistas como representantes do gênero artista de rua, entraram na matéria de O Globo como inconvenientes, como pedintes, como desqualificados (a matéria refere-se ao repertório restrito dos músicos que citei, sendo que esses têm set list de duas horas de músicas autorais, como a própria repórter o viu num show da banda que acompanhou).

E para além da visão de mundo que o jornal sustenta tão bem há tanto tempo (uma visão onde ou o pobre é um ser bom e desprovido de inteligência ou um criminoso), levanto ainda uma questão ética: a repórter que os entrevistou, entrevistou os músicos da banda Na sala do sino, os disse para fazer a reportagem que essa seria sobre movimento artístico, para alguns dias depois sem avisá-los do conteúdo que tomou o caderno especial, publicá-la com uma visão pejorativa da arte de rua, com uma defesa da lógica do conforto contra os que atrapalham a caminhada do cidadão pela cidade.

Mas a reportagem termina bem e a isso dou os parabéns. No seu desfecho põe como oposição a esses profissionais e exemplo de conduta correta ninguém mais ninguém menos que Antonio Carlos Magalhães Neto, o respeitoso coronelzinho do DEM ou seria do Demo. Mostra o parlamentar como um homem que reclama quando se sente incomodado, mas não reclama em qualquer lugar, mas sim o faz no parlamento, que seria segundo o caderno o lugar certo para se esbravejar. Em suma: digo que o desfecho é bom e é mesmo ótimo, porque o fato de estarmos todos nós, os camelôs da arte ou da arte de se virar nessa terra de ninguém que é o Rio de Janeiro, em oposição a ACM Neto já é motivo para grande alegria.
E novamente, O Globo deu show de conservadorismo, de ética duvidosa e acobertador dos verdadeiros problemas nacionais.

--
Heyk Pimenta
http://heykpimenta.blogspot.com

Dec 18, 2008

Versículos



a biblioteca

um livro termina onde começa
outro
todos
onde começa a vida

Dec 15, 2008

Inspirado nos outros


Inspirado no blog dos amigos, abro a semana com um pequeno conto da época em que ainda os escrevia. Este é a tradução do sonho de uma amiga, confidenciado. Espero ter ressimbolizado a experiência e não simplesmente transposto a ambiência onírica.

Dopplegänger

E tem aquela da atriz, revelação na época das novelas de rádio, hoje beldade balzaquiana, que de tempos em tempos sentava-se em frente ao espelho do último cômodo de sua casa de veraneio, retirava o cachecol e contava sua história à única testemunha que se dignava a ouvi-la. Após alguns dias de relato memorialista (a atriz ia se esquecendo ao longo da prosa), deixava-se atenuar lentamente e sucumbia para dar lugar à sua imagem. Esta, erguendo-se da cadeira, tomava o cachecol (vanitas vanitatum et omnia vanita) e sentia-se renovada por um tempo, quanto tempo?, de posse da felicidade que há em ser a única vivente do universo, além de Deus, obviamente, a não ser criada ex nihilo.

Dec 11, 2008

É ou não é meu?

O poema que segue nasceu de uma angústia que sempre tenho ao ver imagens antigas de pessoas. O ar de morte que as acompanha normalmente me deprime muito. Comecei a fazer o poema, a escolher as palavras, as imagens, então surgiu esse Cemitério da Glória para me tirar a paz. Realmente não me lembrava do lugar e tive que pesquisar na Internet para saber que é um grande cemitério no centro das terras da minha vida, perto do lugar onde morei por anos. Brinco: é meu ou não é meu este poema?

o cemitério da glória

o cinema são fotos piscadas
rapidamente
do toque da pálbebra
na pálpebra adjacente
ao desenlace
há toda uma vida de escuro
das fotos nunca tiradas

hoje é dia de memória no cineminha do centro

enquanto os atores vivos ganham cores
nas poltronas
com imagens do passado
bicolores
choro a imensa fila
de caixões metálicos
que aos poucos encheu o cemitério da Glória

Dec 7, 2008

Boas Novas

Longe das Boas Novas bíblicas, as minhas são miúdas. Visto, contudo, que atuam num contexto mais particular, logo se ombreiam com aquelas. Meu primeiro filme (em parceria com um amigo) passou no Festival de Tiradentes, eu (com múltiplas parcerias) passei no mestrado em Literatura da UFRGS, também terminei (com outro amigo) minha primeira peça de teatro. Sou obviamente um dependente. Tudo sem estrelas temporãs ou visitas ilustres, mas como é bom para nos alimentar a alma por alguns dias! Segue um poema que, espero, sirva a todos de boas novas.
p.s.: ainda lamento perder a forma original do poema.

girassol

é
ontem foi dia da pior espécie
começou lento
como arrastar para longe
o longo das horas de sol
puxado pelo deus dos dias
não se abriu para ser
flor preguiçosa
e a noite despertou suas mariposas
já ao fim da tarde

nas anti-horas do escuro
tempo da memória
a luz tímida aberta pelos olhos-pétalas
desdobrou o dia
feito imenso
sem cores vivas para sobrar adiante
o sono natural deitou o amor no pêndulo
por sorte
depois amanhã será ontem

Dec 3, 2008

Crise do Realismo?


Uma imagem bastante utilizada para estes tempos, sobre Literatura, fala de um espelho estilhaçado, só capaz de acessar o real - nunca em completude - pelo que refletem seus fragmentos. Não sei, sei pouco. Respondo num poema de algum tempo adiantes, a única maneira que me cabe responder. Cabe?

mirar-se

há um espelho colocado fora
que anda comigo
nele me vejo continuamente

às vezes reflete o desconhecido
mínimo e profundo
que reconheço

mas normalmente em seu corpo
deita aquilo que costumo
ter por mim

a aparência que nos dias
aprendi a enganar-me
os sonhos laminados

a inevitável grandeza
que me espera
e foge do acaso

o espelho por outro lado
me vê com as mesmas ressalvas
pergunta-se

o quanto de mim
ele pode dizer de si mesmo
qual a parte da pele

em que ele não se reconhece
a minha face o reflete
escreve o mesmo poema

Nov 29, 2008

Poema Dia

Nos últimos dias, estive às voltas com o fechamento da minha primeira peça e de mais um roteirinho de cinema. Posto, "infelizmente", por falta crônica, um poema das antigas. Ah, soneto!, me dirão com raiva os puristas ao contrário, os conservadores de vanguarda. Defendo-me com o fato de neles ter deitado alguns anos de prática de ritmo, rima, som e peso da palavras. Não recomendo aos pequenos nem publico (salvo por motivo de força menor), mas cá no espírito carrego um quarto a Camões, Shakespeare, Baudelaire, Bilac e outros destes.
Preciso, antes do abraço, chamar a atenção para um novo projeto. O Poema Dia é um blog em que cada poeta adota um dia em que se responsabiliza por postar um poema. Há muita gente boa no projeto, poetas interessantíssimos! Por mim vale pouco, mas o talento dos demais justifica em muito a visita e as minhas falhas! Começa nesta segunda, queridos, se possível, acompanhem.

Casamata

As nuvens de tinta sombreiam a noite,
O vento operário me percorre a espinha,
O mesmo que trouxe o apagar das cores,
Dos temores metálicos me arrepia.

No ar carregado, é tensão e açoite,
No corpo a batalha já tombou suas vítimas,
O estrondo da alma debandou amores,
Lá fora é o arauto do que se avizinha.

Os raios, o cheiro de chuva e a ventania,
Embora prisioneiros do espaço externo,
Cativam, nos meus nervos, covardia.

Entre os primeiros a sentir o inferno,
O chão treme os pés da companhia
E antes da explosão de cinzas, me consterno.

Nov 25, 2008

Como foi em Sampa

Salve, caro Victor. Em resposta à tua pergunta de como foi em São Paulo, posto a única coisa que consegui fazer por lá. Ajudei meu amigo na edição do filme de setembro, revi correndo outros amigos, passei pela Unicamp, fui esporadicamente magoado e esporadicamente magoei nesses trajetos. Ou seja, o costumeiro... Pra ouvir o som, basta clicar no nome, linkado à minha página no myspace. Crítica ferrenhas igualmente bem-vindas quanto às canções.

Em nome do pai
Guto Leite & Thiago Lourenço

Onde será que está?
Será que alguém viu?
Quem pode me contar
Saiu.
Se foi sem me avisar,
Não se despediu.
Por que não quer voltar?
Sumiu.

Às seis da manhã,
Eu vou.
Depois de brincar,
Eu vou.
Correr, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar,
Meu pai.

Sorrir amanhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, abraçar,
Eu vou.
Chorar pra abraçar meu pai.
Chorar pra abraçar.

Vai ver é aquele ali.
Parece comigo.
O mesmo ar, feliz
Menino.
E aí? Como é que vai?
De onde que é?
Pensei que era meu pai,
Não é.

Sorrir da manhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar meu pai.

Às seis amanhã,
Eu vou.
Brincar de depois,
Eu vou.
Correr, abraçar,
Eu vou.
Correr pra abraçar meu pai.
Correr pra abraçar.

Nov 23, 2008

O filho apagado

Escrever como profissão. Tomar uma ou duas horas diariamente para a prática, mais o tempo em que inesperadamente se intui um poema, um verso, uma imagem, sempre fora de hora, ou na hora exata que lhes pertence. Enfim, é algo que ainda não consigo, mas já o faço, se não em viagem, em dois ou três dias na semana. Quando, e este é o ponto da postagem, o número de poesias se torna um pouco mais robusto, surge o fenômeno peculiar do poema mais ou menos. Trata-se de poemas que nem de longe trazem o poder sintético ou imagético de seus mais bem acabados comparsas, mas que mesmo assim carregam alguma coisa que seduz seu autor a ponto dele achar que deve publicá-lo (no sentido estrito do termo), mesmo sabendo que o considerarão pior por causa deles. Para deixar mais ácido, comparo o quadro aos pais de cinco filhos, dentre os quais um (ou dois, ou três, ou quatro) se mostra bem mais lento que os outros. Tá, vai lá, tem seus defeitos. Tudo bem, tudo bem, é apático e desinteressante, mas é deles, dos pais, no mais razoável dos amores. Alfinetando pro outro lado, costumo dizer isso dos poetas brasileiros. Todos? Talvez. Eu pelo menos. Defeituosos, mas nossos!

nota de falecimento

pelo amor especulativo
que os homens mantêm entre si
pelo dinheiro
matou-se esta manhã
com um tiro no peito
um operador da bolsa

deixa viúva filhos
uma mancha de seis gramas
de chumbo
na camisa do amigo
além das onze prestações restantes
de uma arma 38

Nov 12, 2008

A alegria de um poema

O que significa realmente a existência de um poema na língua de seu povo? Adorno, do lado de lá do muro teórico, aposta na ruptura do Eu, que se põe antitético à realidade, embora se universalize ao soar linguisticamente. Levando um passo adiante o seu raciocínio - trepando no muro -, o poeta seria aquele que vê o que qualquer um poderia ter visto, mas não viu, por isso é individual e social ao mesmo tempo. Elliot, do lado de cá, brada o dever do poeta com sua língua e com a sensibilidade de seu povo. Assim, a poesia carregaria este estandarte do prazer responsável, alargando e requintando a tessitura semântica da nação. Eu, do lugar nenhum, creio na alegria do poema, na sua capacidade oasística de abrir um largo sorriso no discurso, de olhar o bom senso com o chapéu de palha abaixado sobre os olhos, de ser um tapa ou um sopro surpreendente no sentido inerte, que, por estar inerte há muito tempo, já não espera mais nada.

cinamomos

nas árvores longilíneas
− uma tia morta de câncer −
há a vida da poesia

não nos mangues nos pântanos
nas árvores frutíferas
nas bocas dos meninos cheias de ovos de moscas
não nas cidades

parangolando as folhas da impossibilidade
pende o viço que salta
por saber que morre logo

os pássaros mais bonitos se aninham é no espinhaço
os pássaros vivos

Nov 9, 2008

O isso

Interpelado uma vez pela Flam, "não venha me dizer que é prosa... é poema, é poema", senti um déja vu, que salvo o sonho de Brás, está entre as retrospectivas mais imagéticas que se tem notícia. Há muito me falam, todos com razão, que meus contos são mais poemas do que contos. Respondo, sem discordar, que depende em quem se escora. Se a epígrafe é Baudelaire, poema, se Trevisan, prosa. A síntese vem talvez de algo que me disse o Alfredo Aquino sobre a pluralidade de sua arte: a matéria é a mesma, não há dificuldade. Bom, está dito, segue o isso.

o homem

Parecia uma velha comum. Era uma velha comum, no ponto em que todas as velhas são comuns e únicas. Do primeiro, supomos sua saia de pano à boca das canelas, sua blusa de flores esfolheadas, suas mãos indecisas entre ficar e ir. Ver é a forma mais tênue de supor. A maneira com que se movimenta toda noite em frente a uma casa célebre do centro da cidade e um poodle amarronzado que traz nos braços eram traços que ela não compartilhava. Como nunca se mexe, supomos que a cadela se chama Inês. Gerações têm contado aos jovens, mesmo se não a viram realmente, suas aparições e seus perigos. Há quanto tempo caminha como se a ninar a morte? Por que não a afugentam ou recolhem ou entendem? Ela, sabiamente alheia ao material do mundo, segue sua existência perfeita de ser a imagem do conto à imagem do conto.

Nov 6, 2008

Poemas bêbados


Foi comum no começo do último século, na poesia, a existência de poemas curtos, visando densidade, muito subjetivos e que buscavam um corte agudo no real. A esses poemas chamaram "impressionistas". Isso eu soube há pouco, no meu conflituoso e duradouro namoro com a teoria. Já conhecia Leminsky, claro, mas daí fui atrás de gente viva e achei Adília Lopes, uma poetisa portuguesa que ainda pratica esse tipo de verso e com uma qualidade primorosa. Ano passado, ainda ignorante das camisas-de-força teóricas, apresentei alguns exemplos meus destes poemas a alguns amigos, também poetas, que surpreendentemente precisaram ser convencidos de que se tratava de poema e não de trocadilhos, ou "nadas", ou um dos meus tão vergonhosa e frequentemente comuns sarcamos com amor. Estamos neste caso levando nossas práticas um passo adiante ou, mais do que atrasados, revivemos uma poética coadjuvante do século passado? Apesar das minhas atuais preocupações hepáticas - resultado de certo sarcasmo divino comigo -,comparo estes poemas, e por que não dizer os poetas que os fazem? ou todos, a bêbados que avançam, retrocedem, andam de lado, absolutamente bêbados daquilo que são obrigados a sorver diariamente de real.
(os poemas que seguem figuram no meu próximo livro, ainda em construção)

modernidade

sá-carneiro suicidou-se
por não-se-opor
pessoa também teria se matado

tic tac

um calmante por favor


negócio da China

os manuais masculinos estão em chinês
as chinesas não têm manuais chineses


trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças


o que é natural a um corpo

as horas são fundas
o tempo raso
a vida é um corpo que emerge

Nov 2, 2008

Agrado?

Há uns tempos, eu havia postado a letra dessa mesma canção aqui, à época com outro nome, e rolaram várias boas críticas, sugestões e afins, que me ajudaram muito a refinar, aparar etc. Recentemente, algumas das gratas presenças deste espaço me emocionaram muito ao falarem sobre minhas canções, que certamente é arte que mais me consome, no sentido de eu ter muita facilidade pra fazer e grande, mas restritissimamente pessoal, reconhecimento. Por tudo isso, mais uma vez, corro o risco de gravar à capela e com um microfone bem ruim, pra trazer a melodia dessa canção. Em março, gravo com a Abracabrália com mais cuidados e salamaleques necessários. Obrigado Tággidi, Valéria, Issac e Ique pela co-autoria destes versos.

Aves & Insetos

Ouvidos pirilampos quando
Ouvem, piscam; quando
Voam, saltam; quando
Brincam, riscam os céus.
Nos úmidos desertos sonham
Luzir seu brilho esparso como
Um meio de voar mais alto
Fugindo dos insetos.

Ave, andorinha, linda linha
Branca no ar azul,
Bem acima dos pântanos,
Além dos obstáculos.
De vez em quando baixam e, por descuido,
Mudam seu habitat,
Engolem um pirilampo
E piscam-piscam por dentro.
Engolem um pirilampo
E piscam-piscam por dentro.

p.s.: e continuo achando que estou falando sobre arte nesta canção, rs.

Oct 29, 2008

Da capo to coda

Notícia boa para os escritores, mas não notícia nova! A Petrobrás mantém um generoso programa de incentivo em que uma das categorias prevê o financiamento da escrita de um livro em prosa ou poesia, além de uma generosa ajuda à editora que se propor a publicá-lo. Poderia parecer algo suspeito, mas uma fonte inatacável me disse que é um trabalho muito sério e justíssimo em relação às escolhas. Portanto, aqueles que se animarem, e tiverem bons livros e projetos na gaveta, eis uma grande oportunidade para publicação (dentre os leitores habituais, sei que o Heyk e, talvez, a Béa já se prontifiquem). O prazo é dezembro, sigamos! Por hora, e por conta de uma semana de Seminário sobre o imortal Machado (ainda mais imortal nas celebrações infindáveis do centenário de sua morte), deixo o poema que abre e o poema que fecha minha próxima tentativa de multiplicar relevâncias. Conto com a crítica impecável que encontro sempre por aqui e que me anima e incentiva imensamente!


primeiro as nuances depois a voz
− uma chuva branda – divide os guarda-chuvas
o corpo
debruado
perpetua em sua cesta a desembocar no futuro

se há algo imutável
no fim de todas as coisas
este é o silêncio

a morte dentro do lago

um barco letárgico flutua no lago da noite
nele foi plantado
um corpo

tudo diz ser suicídio não assassinato

o número exagerado das pequenas tábuas suspensas
a indiferença constante dos peixes e dos insetos
o pó superficial que deita a casa de máquinas
o verde conspurcado o mexerico das algas

nada é indício

o vento amarelo traz sensações de incômodo
quando dobra
há um movimento suspeito no corpo
do barco

Oct 22, 2008

Traduzir

Como alguns sabem, há oito meses mudei-me para Porto Alegre, para dar uma ajuda pra minha mãe num momento complicado. A pior parte deste processo, certamente, foi perder a chance de um amor e a companhia dos meus amigos. Se pensarmos bem, artistas de alma são meio atemporais, acidentalmente vivos e despertos, criando incessantemente à espera de que faça o máximo possível de sua arte antes de morrer ou se tornar célebre. Exageros à parte, a chance do amor, como todo amor entre homem e mulher (e variações), foi esfriando com o tempo e zut!, acontece, como dizia o mestre Cartola. Dos meus amigos, entretanto, a falta se transformou numa pedra de praia, cercada pela areia, e da qual só sabemos ser antiga e irremovível. Passei meses com este tema rondando os meus versos, escapando com graça da minha poesia, ou melhor, comigo o rondando, escorando-me, dele desenhando com as pálbebras a linha azul distina do que vai haver. Semana passada, assim que me deitei, vieram exatamente estes versos que se seguem, única tradução que posso dar para amizade, ou pelo menos para a minha.

a flor de gelo

féretro é uma palavra com um cheiro frio
nenhum dos meus amigos está morto
quando os vejo sofro de saudades

Oct 20, 2008

Dedicatória


Dedico nossa arte aos geniais compositores mortos - Cartola, Noel, Tom, Chico, Gil e Caetano - que por testamento lembraram de nós em seus espólios. Dedico aos menos talentosos que hoje dizem o que é bom, que importam de suas viagens aquilo que a maior parte dos outros está gostando e impõem como modelo. Dedico ao nosso cinema, Spartacus das favelas, que erige suas imperfeições na ressalva de que o bem mais valioso do artista há de ser sua licença poética. Dedico ao nosso teatro, antecipadamente, que surgirá assim que julgarmos que basta o tempo de velarmos as décadas precedentes. Dedico à nossa dança, que dança? Dedico aos nossos poetas, todos pela cartilha de uma prosa bem feitinha que vem do interior de Minas e que, por esmero de senhor, arranjou-se linha a linha. Dedico nossa arte à ditadura, não àquela, horrenda, das mortes explícitas, mas a esta que ainda estica sua sombra de silêncios, permitindo que algumas opiniões sejam interditas, que aloja bastiões das guerrilhas nas presidências eméritas de clube e que deseducou tanto nosso povo - do berço esplêndido, artístico, de bom ouvido, pernas, intrépido e obstinado - que só faz arte popular hoje quem compõe rap ou novela. Dedico nossa arte àqueles que se enganam. Quando por fim e novamente tomarmos as passeatas como o grande entretenimento sabatino e juntos protestarmos Contra a Mediocridade da Nação - sem saber que tal cartaz é logicamente impossível -, embora, claro, os pobres levem as bandeiras e tudo o que for pesado, dedico nossa arte aos bem retaliados. Dedico também aos que se eximirem no ócio de suas casas, afinal é mesmo o tempo próprio para o sono. De tudo o que fizemos e que somos, e do qual sou culpado na carne por vinte e três pares, dedico nossa arte ao fim que se aproxima, que há de chegar logo, dedico para isso, e não haver mais no mundo a ilusão do artista!

Oct 18, 2008

Boas novas

Este é um post especial de boas novas que me ocorreram nestes tempos! A minha amiga e diretora Paula Sabbaga topou a canção "Em nome do pai" para seu filme e a Abracabrália vai gravar o samba no fim de novembro. Estou em força máxima com meu amigo e parceiro Guilherme Orosco para conseguirmos logo logo editar o Júlio César (personagem de charges deste blog)! Finalmente achei o tom do próximo livro de poemas que, até onde entendo - e não é muito - vai com jeito à altura da página 50!

Como sempre me disseram que não se contam as boas novas, visto que o primeiro impulso das gentes é ruim, atrelo às conquistas um semi-piripaque que tive nesta semana. Na quinta-feira, depois de umas mil páginas desde segunda, dentre outros afazeres, não consegui mais ler ou fazer nada que custasse esforço mental. Também surgiu uma dorzinha no centro da cabeça que só hoje veio dar lugar a Graciliano Ramos.

No cimo da balança repousa um poema.

soneto do próximo instante
a g. m.

no fim da manhã quando tudo está ermo
e as janelas e portas são laços de enfeite
permaneço imóvel num passado enfermo
com olhares prestes a inventar deleites

o sol que passeia feito um cão soberbo
surge no vão das tábuas nos batentes
no esforço extremo sobre o tempo ileso
põe tudo a mover-se em sua sombra quente

apesar dos corpos, luzes decadentes
ainda ignorarem a força que há em torno
todo o estático irá quebrar-se e urgente

entra na pressa e no furor de um forno
no ar que arremessa soam alguns pingentes
e a casa em festa perde os seus contornos

Oct 15, 2008

A jangada de pedra

Os críticos mais tradicionalistas freqüentemente propõem entraves aos romances de Saramago. Dois dos mais razoáveis seriam a falta de verossimilhança das personagens, que invariavelmente se apresentam como filósofos natos, como também uma certa e mesma chave com que o romancista ergue todos os seus livros e que os põe a funcionar. Há, entretanto, uma qualidade tão esmagadora na prosa do autor português, que deveria fazer esquecer essas ressalvas. Não uma qualidade estética, que a priori não possui qualquer poder mnemônico, nem qualidade gerativa, que a política do homem não redime sua obra; mas talvez uma característica que poderíamos chamar de "qualidade de recepção". Saramago renova no leitor a vontade de ler romances! O leitor mede, pesa, paga o livro, toma fôlego e, nas primeiras páginas, diz consigo: "Por que parei de ler romances?" E promete: "De hoje em diante lerei, pelo menos, um romance por semana!" Finda a leitura, infelizmente, tomará nas mãos um romance de outro autor - Flaubert, por exemplo, impressionantemente sem defeitos - e aquele pensamento se postará imperceptível nas paredes da memória. Até, porventura, numa estante, se deparar com o sorriso de outra jangada de pedra.

Fica um poema dedicado a este distinto criador português de sonhos:

poema jardineirinho

mãe e filha cultivavam cores ao fundo de casa

certo dia a pequenina

se a gente não planta nada
elas não têm de morrer
a semente é que faz a flor não ser para sempre

a mãe enterra os olhos na larga sombra das telhas
nas mãos de terra nas covas
herdadas no rosto da filha

Oct 10, 2008

Homenagem a Gabriela

Depois da ladainha do post passado, que trazia um poema a dois versos do ridículo, o deus que cuida da poesia e seus aliados me foram muito generosos nestes dias. Não é caridade se medirmos o alto nível de sacrifícios que me exige diariamente. Enfim, vou feliz para o fim de semana depois de alguns poemas que achei bons, uns dois não muito felizes e um que acho com alguma chance de posteridade. Posto aqui um dos que gostei, sem história prévia, pois espero que ele fale por si. Homenagem também a uma amiga de alma, inteligente e bela, a quem Deus, o original, o das igrejas, só não fez minha irmã porque erra vez ou outra. Arte e paixões a todos!

versos para Gabriela

te gosto tanto, minha amiga,
que queria te ver morta

para mentir aos outros
que nos reconciliamos

este silêncio é o mesmo
que será em teu velório

quando me indagarei
das razões inexistentes

enquanto os outros encontram
a verdade de seus corpos

morra, então, morra logo
morra tão subitamente

que eu nunca mais te perceba
na distância dos remorsos

que de longe eu me aproxime
pros cantos religiosos

e confidencie aos presentes
o quanto nós fomos amigos

que em vez nenhuma brigamos
nunca nos desentendemos

esperando que a mentira
siga a lógica dos corpos

permanecendo verdade
na vigília do velório

Oct 7, 2008

Restos

Há tempos, num evento, o Carpinejar comentou que blog de poesia era prática perigosa, por exigir diariamente grande estro do poeta em sua arte. Não me importei muito com a admoestação à época - até disse algo neste espaço a respeito -, mas hoje me arrependo, por motivo um pouco diverso do apontado pelo poeta. Continuo escrevendo poesia religiosamente, mas meu senso crítico anda severíssimo. Repreendo em mim cada tema, verso, quebra, rima, sobrando-me muito pouco para trazer aos que frequentemente me felicitam com suas leituras. Hoje, excepcionalmente, e me perdoem por isso, sirvo-lhes restos!

Com o tempo, parece, ainda hei de concordar com o Fabro plenamente. Muita arte a todos! E vida!

guizos

a tristeza é um guizo
no pescoço do poema
soando aqui e ali
os seus ruídos

as pessoas ouvindo
que se aproxima o bichano
rápido se emocionam

quanto mais algazarram
enternecidas
mais o corpo do bicho serpenteia

o poema bípede
no entanto
é o que vem soar
melancolia

como força
nua e silenciosa
que um dia enlaçará os gritos

a nudez do verbo entre um verso e outro
a morte que dobra no interior do corpo

Oct 5, 2008

Samba!

Hoje posto em homenagem ao Éverton, do blog linkado "Apesar do Céu". Na sexta, conheci seu projeto de samba aqui em Porto Alegre. Além de uma ótima escolha de repertório, sonoridade e alegria, só de conseguir manter os pandeiros e tamborins nesta terra tão avessa aos requebrados, este poeta já merece meus aplausos efusivos. Posto uma letra de samba que, se a diretora aprovar, figurará de trilha sonora do filme de uma amiga e gravaremos em novembro. Vejamos... Um domingo imenso a todos, repleto de arte, e, aos que acreditam que esta representatividade ainda é uma fórmula válida de política, bons votos!

Em nome do pai
Guto Leite & Thiago Lourenço

Onde será que está?
Será que alguém viu?
Quem pode me contar
Saiu.
Se foi sem me avisar,
Não se despediu.
Por que não quer voltar?
Sumiu.

Às seis da manhã,
Eu vou.
Depois de brincar,
Eu vou.
Correr, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar,
Meu pai.

Sorrir amanhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, abraçar,
Eu vou.
Chorar pra abraçar meu pai.
Chorar pra abraçar.

Vai ver é aquele ali.
Parece comigo.
O mesmo ar, feliz
Menino.
Olá, como é que vai?
De onde que é?
Pensei que era meu pai,
Não é.

Sorrir da manhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar meu pai.

Às seis amanhã,
Eu vou.
Brincar de depois,
Eu vou.
Correr, abraçar,
Eu vou.
Correr pra abraçar meu pai.
Correr pra abraçar.

Oct 2, 2008

Do tempo dos cruzados

Às vezes acho em meus arquivos coisas tão antigas! Como este conto, com quem devo ter lutado em 2003 ou 2004, época em que ainda não os temia. Bom que é curto, que quase não existe. Muita arte a todos nesta sexta! Apaixonem-se, por favor!

Déja vu

Quem poderia imaginar que a solução tão buscada para seus anseios se revelaria de forma tão simples? Fez economia por trinta e quatro meses, acertou os detalhes para que os outros pouco sentissem a sua falta e comprou um discreto, mas eficiente, veleiro. Dentro dele, depois de esperadas tormentas de viagem, com a ajuda das estrelas e de um GPS, estagnou-se a poucos metros da Linha Internacional de Mudança de Data. Como a Terra segue de leste para o oeste, indefinidamente, até que provem o contrário, uma vez ao dia, desprende a âncora e manobra seu barquinho pelo vento dentro da região limítrofe e em direção oposta, permanecendo, assim, sempre, no mesmo dia. Em algumas semanas, notou não se sentir mais entediado. Em anos, sua aparência em nada envelheceu, além do comum acobreado de uma vida de marujo. Pesca várias vezes ao dia para hidratar-se. Circunda o barco a nado por alguns metros quando o dia se mostra quente. Achou a eternidade no ermo, na capacidade de deixar de se fazer completo a cada instante. No soslaio de parcos viajantes, fez-se imóvel e eternamente em trânsito, diluiu-se no espaço e no tempo, como a paisagem do segundo antes.

Sep 29, 2008

Versos abandonados



Estou lendo as "Memórias Póstumas" para a prova de mestrado. Como é soberbo nosso velho bruxo! Sempre me reencanto por tuas narrativas, teu estilo, teu humor peculiar. Para mim, não deve nada aos grandes da prosa mundial de qualquer tempo. Em sua época então! Só não se entedia no bar com Dostoiévski... Todos os outros, incluo Flaubert, estariam na mesa ao lado comendo amendoins. Falando nisso (provocativamente), em vultos, não em amendoins, é até perdoável que os poetas brasileiros sejamos hesitantes, incipientes, opacos e até menores. Nunca tivemos um Machado para apreciar num fim de tarde, com o Sol descendo às suas costas. Prosadores medíocres, no entanto, no Brasil, são imperdoáveis! Ou como afirma Schopenhauer, se os encontramos nas estantes das livrarias, são certamente beneficiários de algum conluio de editores dos mais desonestos. Depois do argumento, deixo alguns dos meus versinhos, desde já perdoados de sua evidente frouxidão. Não tiveram pai que o cuidassem com zelo e disciplina.

Nos trilhos

é tanta certeza que o grande corpo de ferro estará sobre a linha
que até se forjou um verbo
− descarrilha −
para falar do imprevisto

calmos tempos aqueles
o tempo dos feridos
quando se reuniam
pelos descarilhamentos

hoje que os carros têm sob si somente intravasáveis culpas de ferro
e escapamentos
− onde foram parar os corpos dos bondes −
as manhãs se enfileiram
duras sob a faísca

as sombras das máquinas aceleradas causam a sensação dos dias
estáticos um ao lado do outro
jamais nos surpreendemos
finitos esperamos morrer em nossas linhas

Sep 25, 2008

Pirilampos & Andorinhas

Percebi, de memória, mas poderia dizer, conferindo o histórico de postagens, que há tempos não posto neste espaço uma letra de música. Aproveitando a ocasião festiva da minha banda, que decidiu continuar na luta e gravar o primeiro cd em março, trago uma das músicas escolhidas e uma pergunta latente: é possível perceber a temática crítica e desoladora de sua aparente alienação pantaneira? Visto que, por motivos históricos, de qualquer forma estarei longe do contexto popular, resolvi ser suficientemente sarcástico para também tentar ludibriar o suposto público culto que ouviria nossas canções. Só não sei se fui bem ou mal-sucedido na empreitada...

Como curiosidade, lembro que passei um dia todo com essa música na cabeça... Compus num dos dias da filmagem e, como estava sem gravador ou pc, e também não sei passar os sons para partitura, fiquei repetindo indefinida e silenciosamente a letra e a melodia até poder registrá-la em algum lugar. Só de não tê-la abandonado quando cheguei em casa, essa música já pode se dizer uma lutadora.

Um abraço por extenso a todos, vida e muita arte!

Pirilampos & Andorinhas

Ouvidos pirilampos quando
Ouvem, piscam; quando
Voam, saltam; quando
Brincam, riscam o céu.
Nos úmidos desertos sonham
Luzir seu brilho esparso como
Um meio de voar mais alto
Fugindo dos insetos.

Ave, andorinha, linda linha
Branca no ar azul,
Bem acima dos pântanos,
Além dos obstáculos.
De vez em quando baixa e, por descuido,
Muda seu habitat,
Engole um pirilampo e
Pisca-pisca por dentro.

Engole um pirilampo e
Pisca-pisca por dentro.

Sep 24, 2008

De volta aos poucos

Salve, caríssimos, que saudades de todos! Acabo de chegar novamente em Porto Alegre depois de uma longuíssima viagem e, como esperado, cheio de afazeres urgentes, mestrado, prova da especialização, roteiros etc., mas, desta vez, não tenho nada o que reclamar dos meus tempos ausentes. Conheci alguns atores imensos (dentre eles, destaco Renato Broghi e Cacá Amaral), com os quais consegui conversar um bocado, escrevi um roteiro para um novo amigo, encontrei dezenas de queridos, conheci lugares, enfim uma cansativa viagem para retomar as energias e relembrar algumas certezas: definitivamente tenho que fazer arte! O Borghi, por exemplo, tem cinquenta e dois anos de teatro. Conversamos por uns quarenta minutos sobre Nelson Rodrigues, palco, arte dramática etc. e eu ficava pensando "como sou pequeno! como sou pequeno!", mas não no mau sentido, mas algo como, "cresça mais meu querido, tua vida te espera", mesmo que termine logo, já. Isso é arte e viver. Talvez.

Hoje deixo o endereço do site de um amigo com quem estou fazendo um projeto de foto mais poemas. Gostei muito das quatro primeiras fotos dele neste trabalho que promete... Volto aos poucos, aos poucos posto os muitos poemas, canções etc. da viagem! Arte e vida a todos!
http://www.fotolog.com/oldmanphotos

Sep 12, 2008

As damas da noite

Nunca fui a uma casa de prostituição! Soa ridículo, eu sei, até às avessas, neste tempo pós rock, um suposto artista afirmar isso de maneira tão categórica. Talvez até me recriminem de não ter me esbaldado em minha juventude, mas nunca lidei bem com a idéia de comunhão lúbrica e objetal das mulheres. Nunca achei razoável tratar mulher ou homem como produto, então nada mais esperado do que esta repulsa às casas de amor comum.

Talvez devesse mudar de idéia. Estou realmente muito cansado de tudo. Salvo raríssimas pessoas (uso a ressalva para eventuais interpelações de leitores, ao que responderei "não, não, você era uma daquelas pessoas da ressalva"), os demais me tratam da mesma forma com que me recuso a tratar as funcionárias do meretrício. Por extensão à arte, que deve entreter, faço o mesmo. A superfície do meu lirismo toca a face, cora as pessoas, elas se alegram, tudo muito fácil; mas os sentidos menos evidentes e temporários permanecem intocáveis porque não encantam, não amenizam as pessoas do fardo de suas consciências. Sou exatamente como aquele profissional que acaba de atender a uma dama do Itaim, infeliz com o marido, e que mostrou todo o glamour em seu serviço. Contudo, descerá a pé, com certeza sozinho, pelo caminho mais curto e barato rumo a um bairro distante ou a um próximo trabalho.

Vende-se minha moral anacrônica para poder dormir com putas!

as damas da noite

as damas da noite são biscoitos
do forno das flores
ditam pelo cheiro
a abstenção de sentidos

um tempo depois do fogo
das cores ao alto das hastes
da laje feita de pedra
por um azul macio

imersos no esquecimento
de seu pólen de baunilha
deixamos nossos desejos
no máximo alcance dos braços

viver ínfimos na memória
de um tempo que construímos
arrancá-lo de onde se mostra
ou se esconde para agora

é o jardim amadeirado
a falsa promessa do aroma
morrer que seja nas flores
ainda quentes da gula

Aug 29, 2008

Dois poemas?


título do poema acima: "Shit"

Caríssimos, que saudade! Já ouvi um grande amigo dizer que fazer blog de poesia requer muita coragem, porque é uma arte com mais demora e requinte. Não sei, trato poesia como conversa de bar (que acham?). Existe um pressuposto teórico para isso: o único juiz possível para minha arte é a história. Claro que não vou omitir que adoro ótimas críticas e me preocupo e reviso meus versos com críticas ruins, contudo, durmo tranquilo na possibilidade que nem eu, nem qualquer outro, pode saber exatamente até onde vão meus versos. Daqui a um ano meus versos resistirão? E dez? E cem? E mais? É inútil preocupar-se com isso, então faço do blog meu caderno aberto de rascunhos e recebo, com muito prazer, todos que desejem comentar, podar, acrescentar, crescer ou sumir com meus poemas. Deixo aqui dois deles, aliás. Dois? Poemas? Rascunhos, sempre rascunhos. O que não é rascunho, é morto.

p.s.: domingo sigo para São Paulo de carro (!!!) a fim de acompanhar a gravação de outro de meus roteiros, o que resultará em alguma intermitência neste espaço. Certo que perdem muito pouco! Certo que não perdem nada que não esteja vagando dentro de si mesmos. Muita arte!

o velho relógio

dos antigos relógios de ponteiro vêm
reluzindo os aros metálicos que alguns trazem ao pulso

os que não obtiveram tal privilégio do acaso
da roda da fortuna levam o relógio do pulso desses últimos

mas ainda existem anti-quadros alguns relógios
verticais nas madeiras de estar das salas que não mudam

o eixo a quem sempre cabe saber o número da polícia
de segundos até o fim do expediente é o leva-e-traz do fluxo

Aug 27, 2008

Trading

Saudações, queridos! Embora eu esteja criando bastante (poemas, canções e contos, principalmente), tudo tem me saído de maneira muito confusa nestes dias. Como se esperasse na folha um embalo sem jeito, para depois tomar uma forma mais propriamente minha, que ame e apresente aos outros com um orgulho comedido. Por essas imperfeições, eximo meus eventuais leitores de tal desconforto. Aliás, até mesmo os exorto a ter em mãos aqueles que erram bem menos do que eu (não estou sendo argumentativamente rígido): Baudelaire, Pessoa, Dante, Shakespeare e companhia. Não, não indico qualquer brasileiro. Dos que conheço, e mortos, todos erram igual, senão pior! Há até alguns que erigem suas estátuas no túmulo de nossa frágil cultura majoritariamente iletrada, mas "deixai os mortos em paz". Dos vivos, há um e uma que são sublimes, mas omito seus nomes por egoísmo de leitor. Sim, eu sei que todos esses são incomparáveis e não devo me sentir miserável por não versar como eles, mas o que posso fazer? Tem dias que aquela criança que seus pais prenderam há tempos dentro de você acorda com mania de grandeza. Como o adulto a mantém dentro da jaula, sigo modesto, mas imensamente decepcionado com minha mediocridade.

p.s.: tudo é fictício!

Aug 24, 2008

A arte e os infortúnios

Nem sempre o mundo nos traz boas novidades. Aliás, dizem as más línguas do subsolo, que quanto mais consciente, mais difícil é manter algum equilíbrio que seja razoável. Uma vida tranquila, para mim, é um relevar de coisas. Às vezes, um estado de sublimação dos males. Alguns eventos, de súbito, podem trazer de novo o reconhecimento da misarabilidade, uma conversa (por e-mail) entre amigos, uma notícia ruim com alguém querido, um retrato antigo de familiares mortos... Não sei, e realmente reflito muito sobre isso, se a arte é o que nos guarda dessas adversidades ou o que enfeita nossos contratempos.

cortejos de outono

nas primeiras sombras de outono
os pássaros são folhas confundidos
que se afastem os homens
que são grandes
do baile nos paralelepípedos

só as aves mais frágeis folificam
ante as asas inaptas para o altivo
que se afastem mulheres
seus vestidos
cuja borda lhes fere e abafa o trino

pelos dias que houver até o início
do invisível movimento dos pistilos
que se afastem os braços
dos meninos
da penugem eriçada do arre pio

o sol corre imóvel ao seu estio
o corpo ao meio-fio a dor cipreste
que se afastem as folhas
pelos bicos
e nas flores coloridas se aquietem

Aug 22, 2008

O leitor principiante de si mesmo

O bom de aparecerem concursos literários é que te obrigam a revisar muito coisa no intuito da tarefa impossível de escolher algo para a participação. Ou se é escritor de ofício, e tem no mínimo duas dezenas de textos aproveitáveis. Ou não se é escritor de ofício, e inscreve sempre os mesmo textos, reiteradamente. Como estou mais para aquele do que para este, acabo encontrando outra dificuldade: há uma grande quantidade de textos de que só me lembro após lê-los, principalmente contos (minha já tão citada aqui falta de talento para com eles). Por mais assustador que seja abrir uma pasta (no computador) e ler uma dezena e meia de arquivos "desconhecidos", está aí algo que recomendo a todos, a experiência de ser leitor do próprio texto! Segue um encontro feliz que tive hoje, embora ainda traga evidente minha falta de traquejo. Espero expiar-me no esquecimento. Um fim de semana de muita arte a todos!

A História de Duas Tribos

Diante da urgência, ele retirara o isqueiro do bolso e se propusera a acender aquele monte de lenha seca depositada entre eles. Em resposta, os oitos jovens que tiritavam dentro de seus casacos chisparam olhos esbugalhados em sua direção. Não havia para eles mal maior do que se valer daquele mecanismo, mesmo que lhes custasse alguns momentos gelados e desagradáveis a mais. Ainda, mesmo que aquele jovem fosse reconhecidamente liberal em seus modos, além de novo no grupo, de maneira alguma poderiam deixar que aquela imprudência soasse natural e se alastrasse caoticamente no coração de todos. “Guarde essa máquina, rapaz, é melhor que façamos à moda antiga”. Embora nunca houvesse concordado com tudo aquilo, Marcos consentiu por sua condição de alheio acenando com a cabeça e retornando o objeto frio ao bolso esquerdo. Tadeu, novamente grave, buscou em sua mochila verde musgo e de cordões pretos, dois generosos pedaços de granito, arredondados, e em pouco menos de quinze minutos, já se puderam ver faíscas tímidas começando a crepitar dentre a lenha.
O brilho ali sombreava agora cinco barracas pelas árvores da mata, diminuindo consideravelmente o espaço incólume da clareira com luzes e sombras. As conversas principiadas por aqueles jovens favoreciam ainda mais o desconforto, sentido exclusivamente por Marcos através de uma inconfundível sensação de aperto. Por ora, decidiu-se permanecer quieto, com o cobertor à altura da cintura, a fim de sentir todo o calor da fogueira sem entrepostos. Permaneceu relativamente absorto durante todo o tempo, e não foi pouco, em que uma das mulheres do grupo, Leila, contava a todos sua reiterada rotina de casa, trabalho, filhos, marido e cama.
“E o que você acha, Marcos, de ter que chegar todo dia no mesmo horário?” “Quê?” Estancou com suas reflexões pirofágicas imediatamente. “Onde?”. “No trabalho...”. E todos riram, alguns levando seus cobertores à boca, tentando dissimular. “Bom, Leila, eu trabalho em colunas”, disse irônica e propositadamente. “Engenheiro? Arquiteto?”, interrompeu César, que até aquele momento tinha a atenção fixada em Leila. “Não, jornalista, escrevo colunas semanais em alguns jornais de São Paulo”. “Ah”. “Faço também uns poeminhas, mas nada apresentável”, ele quis se gabar. “Digo isso pra justificar que não tenho um horário fixo de trabalho, tenho prazos, mas, desde que eu os cumpra, posso trabalhar quando quiser”. E os outros iriam retomar a conversa, como se de antes de sua intervenção, “Mas se me permitem, acho que talvez essa seja a forma ideal para todas as áreas. Trabalhar com prazos, dentro de um máximo de horas diárias...”. “Mas isso não daria certo em manufaturas, por exemplo”, desafiou Tadeu. “Acho que daria sim, só que com prazos menores, objetivos menores e alguém gerenciando toda a operação. É impressionante o que se consegue com acordos e cooperatividade...”. Dessa vez, todos riram largamente e Marcos sorriu beneplácito, erguendo o cobertor até a altura dos ombros.
E prosseguiram metodicamente com a conversa, o que cada vez mais reduzia Marcos a um canto da roda dos jovens. Em alguns momentos trazia demoradamente o cobertor sobre o rosto, fechava os olhos e imaginava-se no paraíso de seu lar, seu conforto, todas as comodidades incontáveis que existiam em pouco mais de três por quatro. Seu colchão, seu travesseiro de ganso, suas frutas, o belo casaco de couro que não trouxe para não sujar. Além dos contraventores preferidos por ele: a televisão velha e chiada, o aparelho de som que precisava ser esquentado antes de realizar o para quê foi feito, o forninho, que tanto o serviria naquela hora, ornado de uma ferrugem espessa e de tempos.
“Talvez possamos fazer o seguinte, em vez de estipular uma ordem para as histórias, poderíamos propor um prazo, dentro do qual cada um seria obrigado a explicar sua ficção” – crepitou Tadeu, e todos riram mais uma vez. Marcos, ainda mais tímido, não conseguia de forma alguma achar naquela celebração pastiche algo harmonioso. Percebera, já há algumas semi-horas atrás, a dinâmica do grupo, e o que pareciam intervenções espontâneas de seus participantes, soavam para ele como estranhamente regulares e monótonas. Então, gargalhou forçadamente, buscando se assemelhar à euforia comum, e propôs, “Faço as honras, Tadeu! Se a fôrma é minha, eu que faço o bolo”. Ninguém riu. E a chama foi-se acalmando vertiginosa até que houve silêncio para que o intruso se colocasse.
“Houve um tempo, há alguns séculos num mundo que não o nosso, onde duas tribos, talvez as únicas existentes naquele lugar, mas não estou certo disso, por ter fraca memória, mantinham uma relação tão íntima quanto é possível se estabelecer entre dois povos distintos”. Os olhos dos outros jovens, aceitando o momento justo e imotivado das histórias em torno da fogueira, concentraram seus olhos uns em Marcos, outros em um ponto indiferente, onde pudessem direcionar outros sentidos ao entendimento. “A Tribo dos Homens era farta de alegria. Sempre que sua condição possibilitava, organizavam banquetes e bebedeiras nas quais todos se congregavam, cantando, contando história, poemas, casos acontecidos com os amigos, que ao ouvir, não se zangavam, mas sentiam-se gratos ao contador por fazer dele fonte de entretenimento aos demais membros. Não somente as festividades, mas tudo obedecia a essa ordem fortuita, mas não aleatória, em que a situação proporcionava de tempos em tempos o conforto de despreocuparem-se do todo. Sua ética: não privar de qualquer um o prazer da celebração e do acaso. Sua religião: somente não podiam sacrificar seu contentamento, independentemente dos motivos”.
“De onde está tirando isso?”, interveio, grave, Rubens. “De dois grandes escritores” – explanou Marcos – “Kafka é o autor original da história, mas foi também reescrita por Borges”. “Você está inventando... não existe isso de dois autores reescreverem a mesma história”, observou Lígia graciosamente (esta que o apresentara antes a seus amigos). “Claro que existe, é isso que os escritores fazem a todo tempo! Nem lhes contei sobre a outra tribo e vocês já estão me interrompendo...”, riu, em silêncio. Aqueles que tinham os olhos nele notaram o esboço de riso.
“A Tribo dos Outros pode ser vista como um contraponto de equilíbrio. A estes tudo se resumia ao trabalho. Mesmo que ao fim da tarde não se ocupassem de seus afazeres domésticos e de suas próprias colheitas, a dedicação de todo o restante do dia na realização das ocupações da Tribo dos Homens, a quem serviam, já lhes era suficiente para o cansaço. Pode lhes parecer que eram infelizes, mas não, principalmente no tempo em que acudiam todos os anseios da tribo vizinha é que se realizavam. Era algo religioso, a admiração absoluta em ver como eles eram capazes de desfrutar tão bem do tempo, enquanto os próprios, inferiores, sempre se viam à roda de obrigações e responsabilidades. Sua ética: de maneira nenhuma interferir no trabalho do outro. Sua religião: já disse”.
“Adão e Eva”, alguém disse. “Adão e Eva...? Não, qual o trabalho de Eva a não ser dar trabalho a Adão?”, e todos riram com Marcos, que se sentiu seguro e pronto para guinar de vez sua história. Assumiu ar imponente: “Após umas poucas gerações do establishment, a Tribo dos Homens timidamente começou a cansar-se dos festejos. Não ocorreu de maneira notável, a princípio, mas alguns de seus membros passaram a abandonar celebrações por quererem melhores as obras já feitas por seus escravos. Um entrelace melhor em seus colchões, pluma mais seleta no onde recostavam a cabeça, frutas mais doces nos vasilhames de cabeceira, casacos de maiores animais, ou mais perigosos. Essa espécie de ambição passou ocupar cada vez mais pessoas da Tribo dos Homens, até que restou somente um pequeno grupo ainda ocupado na realização dos festejos: os Fudidos”.
“Ao verem que seus senhores, alguns os chamavam de deuses, não mais se empenhariam na arte que mais admiravam e consideravam essencial, os Outros perderam a obrigatoriedade e devoção que possuíam e retornaram às suas casa e à realização de seus afazeres íntimos e particulares”. Algo da fogueira refletia no olhar de Tadeu e Marcos percebeu isso. Um fogo-fátuo deslocado e pretensioso, como se já houvesse percebido até onde aquela história poderia chegar. Dessa vez Marcos não sorriu porque não queria demonstrar nada. “Com o passar de alguns meses, visto que não se compraziam de sua nova incumbência, embora muito mais lucrativa do que a anterior, decretaram guerra à Tribo Dos Homens”. Alguma movimentação de surpresa.
“Mesmo diante de um ataque inesperado, a Tribo dos Homens foi capaz de resistir por mais tempo do que se esperava. Entretanto, ao fim de seis dias de incontáveis corpos, restaram somente os Fudidos, poupados mediante a promessa de que continuariam com seu modo de vida e se multiplicariam para logo darem mais trabalho à Tribo dos Outros. Por entenderem corretamente que o mito vale mais do que a letra, nunca propuseram lei ou educação que vigesse a maneira necessária de conduta, em vez disso, criaram religiões, lendas e histórias que seriam propagadas de diversas formas e que juntas resultariam numa compreensão relativa dos membros da Tribo. O controle mais eficaz e invisível que se foi capaz de imaginar. Fim da história”.
E todos, principalmente Tadeu, embasbacados e aos poucos, recolheram-se a seus dormitórios acossados por aquela revelação. Lígia, única que o fizera por inércia e que não compreendera absolutamente nada, retornou em instantes e insinuou-se para Marcos, que em seguida entrou de um salto em sua barraca.

Aug 19, 2008

Mesura

O exame foi ótimo! Bem menos doloroso do que o senso comum e a internet dizem que é. O que foi perfeito ao medo absurdo de dor e de agulhas. Em retrubuição a este pequeno gracejo que o mundo me fez hoje, posto um poema há algum tempo guardado dos olhos. Não que seja especial, é mais um corpo que se enconsta em outro sem deixar-se perceber.

mesura

com licença
toda
foi dando toda a licença
posso
claro
um peso leve se escora

os olhos a voz
usarás por agora
− hesita − leve
mira somente um quarto
de azulejo
nunca desvia o rosto porque chora

alguém diz que desenhos trazem sonhos

Aug 16, 2008

Minha singela homenagem a Caymmi

Hoje faleceu (infelizmente, mas, ou todos nos deixam uma hora, ou uma hora nós deixamoss todos) um dos maiores compositores já visto nestas terras. Enquanto os demais de grande porte - Caetano, Chico, Gil, Noel - mobiliza(va)m seus artícios para o engenho da canção, Caymmi parecia simplesmente ecoar as maravilhas e tristezas que o circundavam. Até mesmo suas composições mais racionais que se celebrizaram na voz de Pequena Notável, são extensões de céu, mar, montanha, festa, gente. Talvez por isso atualmente não seja tão reverenciado. Caymmi construía objetos exclusivos do sentir. No tempo em que as pessoas sentiam, ele foi o maior de nossa canção. Fecho esta mínima homenagem com uma frase do Chico e um poema meu. A frase é a seguinte: "É possível compor como Caetano ou como eu componho, não é possível compor como Caymmi". E o poema é este:

no domingo de minha morte

no domingo de minha morte
quase chorarão os meus amigos
os políticos nas ruas mais sombrias
dançarão valsas com crianças pobres

nas salas mortas da Academia
um papel de bala aproveitando o vento
se moverá entre as carteiras
rumo à ilusão da porta

está fechada

aquelas que um dia e porventura
me inspiraram versos ou canções
procurarão avidamente nos catálogos
o número da loja de molduras

e o tempo que nunca avança
− horas são as durações dos fatos −
seguirá o mesmo para os outros
o entorno frio de meu corpo exposto

chorarão meu pai e minha mãe

Buarqueanas

Ontem à noite conheci a arte de dois grandes atores! O primeiro deles, Juliano Barros, corporal, intenso, com ótimas gradações de expressão e muitíssima facilidade para cambiar do registro dramático para o cômico. A segunda, Ekin, ágil e precisa. Herdeira da prática clown, faz com que seu corpo saiba exatamente onde e quando estar no espaço, exímia na minúcia, é responsável por parte dos melhores momentos da peça. É sempre muito bom se deparar com atuações tão seguras e plenas, ainda mais com atores tão jovens!

Quanto à peça, "Buarqueanas" (no Teatro Júlio Piva, em Porto Alegre, até início de setembro), é uma boa peça. Minhas ressalvas vão para alguns deslizes musicais cometidos pela banda, que permanece no palco ao longo da peça, algums intervenções dos atores (ao escolherem, por exemplo, uma atriz com pouco traquejo para se mostrar sensual, ou uma não muito afinada para fazer o solo) e algumas escolhas de texto. Embora seja praticamente um texto extraído da obra de Chico Buarque, das peças e canções, o recorte em alguns momentos da peça não me pareceu muito feliz e, além disso, nosso melhor compositor não é decerto nosso melhor dramaturgo e muitas das falas evidenciam essa fragilidade original. Tudo isso, entretanto, não desautoriza a escolha de passar uma noite agradável na companhia dessa Companhia. Uma peça honesta, sincera e muito recomendável.

Hoje ouço uma banda que há muito quero ouvir, amanhã vou ao show de Danilo Caymmi. Abri bem um saborosíssimo fim de semana de samba!

Aug 14, 2008

Patternidade II

Ainda nos desdobramentos das questões de "patternidade", ao mesmo tempo em que alivio desavisados leitores dos meus versos desajeitados para ouvidos moucos, trago aqui uma tradução despretensiosa que fiz pra um soberbo poema de um dos melhores poetas que já passaram por aqui. Este, talvez pai de todos aqueles que se proponham a escrever na modernidade. Com cummings e Baudelaire, finalmente alço este blog a um patamar aceitável de poesia de qualidade.

Ao leitor
(“Au lecteur”)
Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire


A tolice, o erro, o pecado, a sovinice,
Ocupam nossos espíritos e trabalham nossos corpos,
E nós alimentamos nossos amáveis remorsos,
Como os mendigos nutrem seus parasitas.

Nossos pecados insistem, nossos arrependimentos são lassos,
Nós nos fazemos pagar generosamente as confissões,
E voltamos animados pelos caminhos lamaçais,
Crendo, por prantos vis, lavar todos os nossos laivos.

Na almofada do mal está Satã Trimegisto,
Que embala longamente nosso espírito encantado,
E o rico metal de nossa vontade
É todo vaporizado por este sábio químico.

É o Diabo quem tem os fios que nos movem!
Nos objetos repugnantes, encontramos encantos;
A cada dia, para o Inferno, nós descemos um passo,
Sem horror, em meio às trevas que fedem.

Assim como um devasso pobre que beija e come
O seio martirizado de uma antiga messalina,
Nós roubamos, de passagem, um prazer clandestino,
Como uma velha laranja que esprememos bem forte.

Apertados, formigantes, como um milhão de helmintos,
Em nossos cérebros festeja um povo de Demônios,
E, quando respiramos, a Morte, em nossos brônquios,
Desce, rio invisível, com inaudíveis gemidos.

Se o estupro, o veneno, o punhal, o incêndio,
Não foram ainda bordados em seus desenhos agradáveis,
O esboço banal de nossos destinos lamentáveis,
É que nossa alma, arre! não é ousada o bastante.

Mas entre os chacais, as panteras, os cães de caça,
Os macacos, os escorpiões, os abutres, as serpentes,
Os monstros esganiçando, gritando, grunhindo, rastejantes,
Na infâmia doméstica de nossos vícios,

Ele é o mais feio, mais cruel, mais imundo!
Embora não solte grandes gestos nem gritos,
Ele faria, de boa vontade, da Terra um fragmento
E em um bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! – o olho carregado de choro sem razão,
Ele imagina cadafalsos fumando seu cachimbo.
Você o conhece, leitor, este monstro comezinho,
– Leitor hipócrita, – meu semelhante, – meu irmão!

Aug 13, 2008

Patternidade

Não sei se é comum, mas vira e mexe bato à porta de algum ser do passado com um teste de D.N.A em mãos exigindo os meus direitos. No colegial, por exemplo, após um absolutamente estúpido esforço matemático, bolei uma nova fórmula pra se descobrir o número de algarismos das mantissas; meu professor, após consultar a universidade, descobriu que um matemático medieval fizera o mesmo. Na universidade, escrevi um roteiro que dividisse as telas e guiasse o foco de atenção (ou desguiasse) pela cor e pelo som; nos processos de filmagem, descobriu-se um filme que utilizava o processo. Nas minhas atuais leituras, descubro e e cummings. Não que seja tudo idêntico (lembro que os filhos não são ipsus litteris seus pais), mas muitos dos padrões lá estão, inconfundíveis! Filhos são por definição menores do que os pais (os últimos homens serão mínimos). É, realmente a originalidade é um pedaço de ar depois do abraço.

poema de meio de
sonho


ser-
iam
os grilos Jesus-
cr
istos

p.s.: há uma forma aqui impossível de ser reproduzida.



you no

tice
nobod
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Less(not to men

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body wants Most

(not
putting in mildly
much)

may

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cause
ever

ybody

wants more
(& more &
still More) what the

hell are we all morticians?

p.s.: in Complete Poems, Volume 2 1936-1962 (1968)

Aug 11, 2008

Fôlego de leitura



Depois de dias seguidos postando poemas, resolvi dar um tempo pro fôlego. Não que não tenha escrito muito, seguidamente (talvez efeito da morte iminente que me escuta à espreita), mas é que talvez o poema seja algo mais homeopático do que intermitente. Talvez uma imensa besteira, mas tendo a acreditar que à prosa esteja reservado o tratamento dia após o outro, continuamente. O poema não, até dos mais despretensiosos podem revirar o leitor em suas certezas. Lembro-me de um poema de Adília Lopes, por exemplo (sim, mudei de idéia): "Podia ser muito feliz / se não fosse muito infeliz". Perfeito!

Só um louco abre um livro de poemas no intuito de leitura.

Aug 8, 2008

Um final de semana de namorados

Se tivesse que dar uma dica aos poetas iniciantes, eu daria: esqueça os grandes temas! Amor, por exemplo, há alguns milhares de anos se fala dele, dificilmente se diz algo novo. Como sempre fui péssimo aluno, portanto, péssimo iniciante, posto hoje um poema sobre o amor. Aliás, um poema constante, eu o faço há um ou dois anos, sempre tolhendo versos, aumentando, criando outros... Ainda o considero inacabado. O amor talvez seja isso, uma confissão de incompletude! Um ótimo final de semana de namorados a todos!

Procura-se uma namorada

Procura-se mulher de lábios finos,
Esguios na artimanha do beijo.
Lábios de contornos generosos,
Mínimos ao largo do rosto,
Tangentes à importância diminuta dos prazeres falsos.

Procura-se mulher com olhos de quem nunca teve um namorado.
Para quem tudo surpreende e encanta.
Procura-se aquela que não teme
Enganar-se como uma criança pequena,
E ria dos planos como quem ri dos sonhos
Pois ambos pairam num bruxuleante futuro.

Procura-se mulher de corpo explícito,
Esparramado por todas as ciências mágicas.
Além do obséquio.
Procura-se mulher por baixo de roupas injustas
E temporárias.

Procura-se esta mulher
Que carrega minha alma na bolsa
Como um artefato inestimável,
Mas que constantemente me esqueça
E não se envergonhe disso
Dizendo logo “bolsa de mulher, você sabe”,
Que ria de seu sarcasmo
E de todas as jóias inúteis.

Procura-se mulher que me espante o verbo.
Não por paixão, que a hora sedimenta,
Ou por medo, que cedo vem à tona,
Mas por justiça,
No peso dos motivos.

Procura-se mulher que suma,
Quando sou grave e cortante,
De dar pena,
E volte, assim que julgar preciso
Provar-me, desenvolta,
Do valor comedido dos instantes.

Procura-se mulher sem amigos,
Familiares, conhecidos, animais
De estimação, esbarrões de metrô.
Ou melhor, que os tenha a todos,
Cada qual com sua estirpe,
Mas que traga a certeza de alma
Que tudo neste mundo é por acaso,
Senão o amor máximo.
Portanto, e por ele, valem-se todas as causas.

Procura-se mulher de alma de vento
E coração de pedra,
Para eu me fazer Davi por dentro dela,
Sem, com o tempo, perder-me
A obra-prima.

Procura-se mulher que não minta
Nem queira grandes conceitos da verdade,
Pois nada existe.
Que saiba que as grandes divergências do mundo
Terminam em um abraço
Silencioso. Ao menos deveriam.

Procura-se mulher que entenda poesia
Por afinidade fraterna,
Por parte do corpo.
Que ria redondilhas por onde passa,
Versos livres do grande ao pequeno gesto
E chore sonetos duros, à noite, acuada.

Procura-se mulher que ainda chore
De constrangimento.

Procura-se mulher que se construa
Parte viagem, parte casa,
E tenha perdido todas as passagens,
Ou que não as conheça por descuido
Fazendo-se perdê-las sempre que as acha.

Procura-se mulher que crio, se não existe,
Para que eu possa também ser
Seu namorado que, se não existo,
Ela crie.

Procura-se mulher que já existe,
Pagam-se dez mil reais de vida.

Procura-se esta mulher constantemente
Desconhecida e inacreditável.

Procura-se com urgência
Para que me abra os olhos
Pela manhã
Adentro
E pelo resto do dia
Eu corra sonolento
Para ter-me ardendo de vida
Nos seus olhos
Quando o dia se endivida no limiar do crepúsculo.

Procura-se mulher
Que me feche os olhos
Definitivamente.

Procura-se uma mulher,
Somente esta,
Que vive a portar o válido motivo.

Procura-se minha namorada
Ainda vivo,
Para poder não procurar mais nada.

Aug 6, 2008

Le flaneur

Espero que as caríssimas não me sacrifiquem sem uma segunda leitura, nem mesmo que os queridos tomem estes versos apressadamente como lance de desforra. Escrevi há uns dias e eu mesmo me acusei de machista antes de destrinchar seus sentidos possíveis. É interessante como muito da ironia parace vir numa forma estreita e justa que precede as palavras. Depois da hermenêutica, achei quatro ou cinco saídas irônicas destes versos e pude, enfim, continuar me fantasiando de um homem justo!

elegia do avesso

que não se enganem as mulheres os homens
sempre andam a pensar em sexo
poetas são aqueles que às vezes pensam como mulheres
quando erram

Aug 4, 2008

Um silêncio de fruto

Embora já faça quase dez anos de sua morte, somente agora consigo postar poemas referentes ao meu avô e à parte de minha infância que corri entre os não muito pomares de seu sítio. Estranho é que sua morte nunca realmente me exasperou. É só um silêncio, um silência de fruto, um silêncio de cão. Vai entender estas coisas de vida e morte e tudo que paira entre elas!

abarrotado

por todo o mês de junho
poemas pintavam de preto
algumas árvores
do sítio de meu avô

casca que rompe nos dedos
conteúdo disforme
caroço que alguns engolem
e outros não

esperávamos a época
madrugávamos
sujávamos por dentro e por fora
nossas horas de vigília

guardo contudo a tristeza
numa espécie de ressalva
:
a melhor jabuticaba
nunca sacia ninguém

Aug 2, 2008

Morte e vida severina

Fiquei tão feliz ao ter feito este poema. Rasguei rapidamente a folha de um xerox que tinha espaço em branco e transcrevi duas cópias para amigas que sentam próximo. Acostumadas com minhas brincadeiras, acharam que era alguma traquinagem, que eu estava tripudiando ou algo assim. Talvez também tenha havido um pouco de vergonha da falta do hábito de receber poemas, enfim... Uma delas gostou verbalmente, a outra leu em silêncio cabisbaixo. Ambas exigiram que eu assinasse o presente (assinam-se os demais presentes?).

Não sei se é um presente digno de também oferecer pelo blog. Se não, pela idade, certamente irão ser piedosos comigo. Fiquei tão feliz de ter feito este poema! É um poema que qualquer criança poderia ter feito, qualquer um que se deixasse estar, que estivesse no caminho festivo destes versos. Parece muito meu primeiro poema! Sinal de que estou num bom caminho... Vem-me agora, depois do equilíbrio razoável de um texto introdutório, que se todos lessem poemas com gravidade, cada poeta poderia ficar incumbido de escrever um único poema, um só. Ao longo de toda a vida se debruçaria nele e pronto. Teríamos algumas centenas (exagero? crueldade?) de poemas de uma vida inteira... Imaginem que maravilha!

Ficam as razões de um eufórico sábado à tarde!

o Homem e a Pedra

o desejo é uma pedra jogada para longe
andamos até ela jogamos novamente

envelhecemos

perdemos distâncias e a força
a morte é um último trajeto para perto



p.s.: há uma brincadeira "verbivocovisual" com as palavras "longe" e "perto" que, pelo formato do blog, não puderam ser reproduzidos. Longe, longe do restante do verso. Perto, perto do restante do verso.
p.s.2: Issac, meu caro, não consegui fazer a ótima alteração que propuseste. Ajuda? Arte a todos!

Aug 1, 2008

A morte da metáfora


Um conhecido se matou (sim, suicidar-se não está fora de moda). Pouco o conheci um dia, ainda menos depois que me formei e saí de Campinas. Lembro, contudo, quando o encontrei num bar alguns dias após o 11 de Setembro e ele me disse: "você faz poesia, né? Por quê? Olha isso! Não existe mais metáfora, a metáfora é impossível!". Ele queria dizer, acredito, que há um momento em que a figura impossível está tão perto do conteúdo denotado que as figuras de linguagem se desmancham... Brilhante, genial! Não sentirei a falta desse meu conhecido, mas o mundo o sentirá, certamente o sentirá. A natureza medíocre de nossos tempos sucidirá todos os brilhantes!

Jul 31, 2008

História pessoal

Talvez eu seja obsessivo... Minha genial sensibilidade começa a perceber isso após algumas dezenas de anos, bom... Ainda não consigo, contudo, remeter a algo específico tal desconfiança. Talvez por acordar diariamente às sete e ter todo o meu dia segmentado em estantes do agir ("poesia", "Francês", "DaMatta", "Violão", "Inglês" etc.), até meia-noite, sendo somente a insipiração capaz de adiar todas as estantes. Talvez porque não saio de casa desde segunda e pretendo continuar até sábado neste incessante diálogo íntimo e traiçoeiro (com livros, comigo, com o ímpeto). Talvez porque meus diálogos não íntimos, e, portanto, superficiais, tenham se resumido nesses dias à minha mãe, minha tia e meu primo de três anos. Como as crianças são sublimes!
Faço o histórico para um diagnóstico: cada vez mais, se e quando me inspiro, a reação daquilo submerso é mais agressiva e grave. Pouco controle tenho dos versos, das estrofes. Como se dissessem, é isso? é isso, então? vamos ver, e começassem a puxar a corda com seus cavalos de raça.
Minha genial sensibilidade busca um caminho como um rato de experimento!

o escritor

seu melhor verso não acha amparo
quanto mais cresce menos lhe comparam
passa ignorado pelo vozerio

tem por certo o destino deserdado
se por sorte criou-se entre empregadas
deixa por legado a sina para os filhos

quanto mais se aprimora mais se exprime
mais conhece as histórias ancestrais
mais sabe que seu fim é para o fim

− de capuz a ouvir os paços do algoz −
nota o asco educado que o comprime
ao canto à linha ao longe além afora

quanto melhor o traço mais entre os vermes
sepultado no corpo de seu gênio
que o difere dos gênios dos mortais

quantos palmos medem cem anos de terra
quantos cabem num côvado milenar
certamente é inversa a ordem que se impera

de igual lamento quantos abarrotam
lançamentos com autógrafos e vinho
e em tempo tão mesquinho servirão às traças

quantos em saraus oficiais em congressos
destrincham suas histórias pessoais
− forma de escapar ao cadafalso −

e serão praças bustos um evento anual de estudantes
ah! se calmantes janelas drogas avenidas
são o modo último e barato

de saber para que lado corre o laço
um segundo livro um terceiro um artigo
são dois coveiros excitados

retirando um palmo denso de sucesso
de cima do corpo lá inerte sempre desde sempre
deixando um rarefeito palmo de fracasso

Jul 29, 2008

Agradecimento

Hoje posto novamente um poema feito há algumas semanas. Posto em agradecimento ao Carpinejar pela excelente oficina que ministrou ao longo destes dois últimos meses. Posto também em agradecimento pela indicação que o poeta fez ao meu livro num programa de TV aqui de Porto Alegre. Claro que ainda mantemos diferenças quanto ao fazer poético, até porque o entendo com um escritor muito mais bem resolvido esteticamente do que eu, mas considero fundamentais estas diferenças pela minha busca constante de voz poética própria. Há um conceito fonológico denominado "formante", que seriam traços mínimos que distinguem uma vogal da outra. Digamos que estas oficinas com o Carpinejar acrescentaram um ou mais formantes a esta voz tão obsessivamente procurada. Se a arte ainda for possível, muita arte a todos nós!
p.s.: aos meus leitores porto-alegrenses, o programa referido é o "Radar" na TVE (RS).

o porto

minha cidade é o arquipélago
que surge do estuário
− digo minha por preguiça −
do fósforo gasto da usina
ao frio agarrado aos morros
minha ilha se estende

se acaso singro o quadrante
milha além dessas linhas
naufrago na polidez
se salvo preso aos escombros
da ilha antagônica
sofro correntes marítimas

ser estrangeiro é esperar pela praia

Jul 26, 2008

A educação dos prazeres

Percebo que tenho postado muito ultimamente (aliás, ducentésima postagem, e pensar que começou com uma insistência de namorada!). Por um lado, ótimo, que realmente tenho escrito muito, principalmente poemas, uns roteiros e uma peça, filha única. Por outro, obviamente, ruim, que despejo os textos por aqui, tomando o espaço como lugar de experiência (o que, cá entre nós, sempre foi minha predileção). Recuei bastante em relação à concisão e contemporaneidade dos dísticos, ao deixar de delegar para fora da linguagem no que chamo de imbrincamentos discursivos, o ponto de inflexão poético; mas é que tenho achado de novo tanto gosto no sabor das palavras. Tenho sentido tanto prazer na busca do tom, do vocábulo, da imagem. Não pensem que sou diletante... Num tempo de pouquíssimos prazeres válidos, não posso recusar algo tão ao alcance das mãos.

Ficam dois poemas: um da casta vanguarda de antes, outro do meu reapaixonamento!


trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças


a legião

como o primeiro porco
rumo ao despenhadeiro
impregnado do Demo
tirado do corpo humano
antes um desconforto
que Deus tirou de si mesmo

do porco de seu âmbito
como o primeiro pêlo
à frente se eriçando
o pêlo do ar inédito
da brisa não corrompida
como o arauto do bando

arrancado do judeu
do chão da rés do rebanho
para depois sem remanso
ser exilado da vida
como o olhar pelas mãos
dos apóstolos piedosos

antes perder o filho
do que banir a fortuna
como o porco que a preguiça
testemunha na colina
todo poeta nasce
no começo de sua morte

Jul 25, 2008

Estrabismo

Mais de um pensador têm alertado para o fato de estarmos iniciando uma nova Idade Média em que o excesso de informação subsituiria a Igreja na ilusão de eruditismo das pessoas. Por exemplo: Caetano é ótimo, mas não é Rimbaud; Truffaut é excelente, mas não é Monet (ilustrei com quatro dos meus preferidos para que não me acusem de partidário!). Concordo com estes autores que a classe média (medianamente culta), termômetro balizador dos rumos culturais desde o Romantismo, tem feito substituições perigosas, mas, por outro lado, nunca como agora é mais hercúlea a tarefa de saborear todas as obras de arte precedentes. Bom, eu, ao menos, tenho essa sensação um pouco beneditina ao cabo das minhas horas diárias de leitura. Vai o autor, fica o poema.

esotropia

o lábio não é a boca do copo
os dedos não são as asas da mão
o mundo tomado às pressas no meio
por isso que divaga

somos todos internamente estrábicos
à mercê de forças que não temos
para coincidir os fatos e o desejo

que também vemos dois ao ver para dentro

Jul 24, 2008

Exógeno



Ontem assisti, num show pessoalíssima, ao artista John Greaves. Pra quem gosta de poesia, música, sensibilidade... Como é fácil ser artista! Basta não se negar ao resto. Só é preciso ser em plenitude!

p.s.: David Mamet: "A arte, já não mais domínio do artista, tornou-se o instrumento do empresário, ou seja, o instrumento da mente consciente. A mente consciente pergunta: "Pra que serve a arte?" e responde "Serve para agradar as pessoas". Mas a mente consciente não pode ter prazer agradando as pessoas por meio da arte, pois a mente consciente não pode criar arte. De modo que a mente consciente se alia à arte, e tem prazer ganhando dinheiro.

Jul 21, 2008

Ontologia poética

Lendo o e-mail de um amigo (Heyk Pimenta, dono de excelentes versos, link do blog ao lado), redescobri-me o velho rato de livros que sempre fui. Nos seus relatos de encontros literários e saraus públicos, lamentei (mais um vez) minha costumeira escolha de permanecer em casa quase sempre. Disso guardo várias recordações... Meus amigos jogando bola, eu esgotando Machado. Meus meses enclausurado buscando Rimbaud, "Ulysses", Pessoa. Nas aulas colegiais, de walkman e casaco, pra poder minimizar a perturbação dos meus versos. Claro que as musas que frequentemente passaram por todos esses anos sempre valeram a escolha. Não ultimamente, quando elas têm me faltado.
Anomalias em recentes exames clínicos colocaram em cheque meu espírito misantropo. Se eu morrer hoje, terei vivido a contento? Obviamente sei que parte do meu "talento" é culpa dos meus olhos ainda não balzaquianos, mas esgotados de leitura. Mas também, tão óbvio quanto, sei que perdi tantos mundos nos meus tempos de silêncio, dispensei tantos encantos pelos encantos escritos, que não há como medir o tanto que hoje não sou.
Uma outra conversa que tive, essa com minha mãe, no último domingo, talvez resuma a questão. Ela me relatava uma ocasião que ocorrera numa classe de estudos em que lecionara e inquiria minha opinião. Eu, não de bom humor (ou cheio dele), atalhei: "mãe, as coisas existem e só. O resto é circunlóquio". Minha mãe sorriu de susto.
Se eu morrer amanhã, morri.

no entorno das paredes

ao meio exato do instante
em que o jovem atropelado
teve seu rosto unido
às paredes do edifício

lamentou não ter vivido
antes de entender o lapso
de que ver o outro é julgar
pela aparência o vazio

Jul 20, 2008

Outro JC pra começar a semana


Polemizar é melhor que deixar ir... Morte a Ricardo Reis, novamente! Exílio, que não volte à Terra de Santa Cruz! No espaço da mínima sombra, que resiste, qualquer iniciativa se valida, qualquer grito nasce com pretexto. Prefiro equívocos a mesmices. Prefiro um olhar de raiva a algodões no nariz! Prefiro preferir a não preferir nada!

p.s.: preciso deixar claro que a polêmica da charge é intelectual e não sexista. Júlio César ou Cleópatra com suas respectivas e seus respectivos...

Jul 18, 2008

De volta

Depois de outro festival, reencontros, reuniões de roteiro, decepções, conquistas, momentos insólitos... cá estou de volta. De certa forma, em aperto, porque decidi escrever um projeto "como quem não quer nada" para a Unicamp, cujo prazo de mestrado se encerra em dez dias. Bom, já seria algo bem complicado se eu dominasse o tema, mas tomo a missão de falar sobre teatro brasileiro e ler sobre o assunto, em tão pouco tempo, como um exigente desafio. Volto também com algumas idéias. O livro, que mandei aos leitores que pediram, está sendo aumentado com novos poemas e pretendo estudar meios de lançá-lo sem qualquer referência a autor. Nem que seja por edição própria (não sei se a 7Letras toparia algo do gênero), pretendo apagar o nome do autor dos meus poemas, e, em seguida, das músicas, quadrinhos, filmes e, por fim, ou antes de tudo, do blog. Talvez apagando essa instância que responde (e recebe, "€", por isso) eu consiga me livrar da sombra mercadológica que incomoda meu fazer artístico. Talvez, contudo, seja só uma iniciativa juvenil e desesperada. O importante, ademais, é que não faz a menor diferença e esta liberdade, acima de tudo, tem se tornado muito o meu momentâneo alento. Chega de um paradoxal prestar de contas do sujeito, fica um dos vários poemas que fiz nestas andanças "produtivas".

Pulso

tenho um agora que se estende
pelo tempo de uma vida

mesmo que a alma balance
para aquém e adiante

− como os dedos de um menino
preso ao balão flutuante −

o tato é um começo de tato
as superfícies claudicam

os sons têm olhos histórias
os cheiros desprendem corpos

são sempre todos os mundos
sobrepostos no instante

difícil é manter a força
o som do pulso no pulso

− deixar de romper a linha −
se tudo que há não há

a qualquer hora eu morro
de descuido

Jul 10, 2008

Poema revisitado

Já postei estes versos antes, há bastante tempo, e, na época, causou reações das mais díspares, uns gostarem, outros sentiram aversão etc. Em função de um concurso de poesia em Colatina (pra quem quiser mais informações, clique aqui), retrabalhei o poema, cada palavra, e busquei um ritmo próprio, que os mais beatos vão logo saber de onde. Obviamente há uma crítica aberta ao catolicismo e também à pedofilia (também mais evidente), mas o que quis acertar (e provavelmente errei) foi que algumas pessoas, não por tabus, mas por abuso, covardia e violência, conseguem despertar um certo asco universal.
E cada vez concordo mais com o Isaac que me falta um pouco de paciência ao fazer poesia. Rápido me livro deles todos, os versos.

ave-maria

de alto a baixo
um metro e trinta
cabelos crespos
de passar pente

no amor que rende
há pares de anos
as cores gritantes
é que lhe encantam

quis ir ao rosa
flores bordadas
por não ver dor
dentro do pano

fugir ao roxo
mais desbotado
ser como a linha
cerzindo o sono

alguns espelhos
manchados gastos
desamarraram
de seu vestido

por isso o choro
não lava a mão
do padre erguendo
baixinho a saia

como queria a
virgem Maria
subir à terra
das lantejoulas!

Jul 9, 2008

Mais dois Júlios



Como vou passar mais um tempo distante, outro festival, em Minas, e um congresso, em São Paulo, e a prática do blog dá certo prazer vicioso, posto hoje mais dois quadrinhos do Júlio César, de que gosto muito. Palmas para meu parceiro cartunista! Grande abraço a todos!

Jul 7, 2008

Minha linhagem mineira

Este é talvez o último poema que faço na oficina do Fabro. Feito há algumas horas, traz muito daquilo que me desescora. Tive uma dificuldade íntima tremenda, pra um dia além de difícil. Espero, como costumeiro, as críticas sempre sensíveis e as discussões maravilhosas que vêm ocorrendo neste espaço. Instantes especialíssimos a todos! A vida não vai tanto além disso.

Chapéus e mancebos

quando me soltam o braço
nos arrabaldes mineiros

quando perguntam sempre
da saúde dos menores
mulheres são fotos ovais
de generais na parede

quando a varanda se enchia
de tios fumando e truco
e os gritos chamavam os homens
pelas travessas quentes

quando as saias coloriam
os quadrados de azulejo
evangélicas e retas
à altura dos olhos

canso quando me olham
os ombros os antebraços
quando disputam comigo
os espaços que são das coisas

todos os mártires são cruzes
mulheres mortas são panos

canso dos outros homens
das mulheres descansadas
canso de não ser coisa

os andares de madeira
os moldes preservados
os tabacos de azulejo
o cansaço

talvez haja um cansaço
próprio a cada coisa

Jul 6, 2008

Sobre o quê?

nada de prosa

como não ando
saindo de casa
nada de prosa

prosa é olhar para a rua
poesia é não olhar para a rua

Jul 3, 2008

O coro e o corifeu

Numa entrevista para o JT há alguns meses, uma das perguntas feitas pelo repórter foi no sentido de para quê, afinal, serve a poesia. A resposta de todos, unissônica, portanto estúpida, foi a de que não serve para nada. Tudo bem, escritores jovens servem para dizer isso mesmo, ótimo. Eu, como sempre prefiro o meio do rebanho a roçar o pêlo na cerca, assenti no momento com os demais e bola pra frente. Só hoje consigo vislumbrar o preço da minha negligência, um preço tamanho! Obviamente que a poesia precisa trazer em si alguma serventia, se fosse somente para tabuletar a sublimação dos poetas, todos iam fazer sexo e tudo bem. Se eu não acreditar na capacidade da poesia de mudar, mesmo que levemente, o seu leitor, o velho efeito catártico caro aos gregos, ando perdendo o meu tempo. Se a poesia só servir para, quando eu estiver definitivamente frio, trazer meu nome numa página da Internet, com foto e bibliografia, mato-me já e chega! Acrescento ao que dizem normalmente: num tempo em que o espírito dos homens anda tão ralo e escasso, talvez a poesia se faça como uma espécie de arauto, que leva também a coroa.

p.s.: livro terminado! Os que se prontificarem a me ajudar com suas leituras e impressões, mando "os originais" por e-mail, assim que solicitados. Muita arte a todos!

Quando não há aniversário

em dias de tristeza
não se faz aniversário
as velas queimam cerejas

o tempo áspero trapo
arrasta no espaço buracos
miasmas lábios do avesso

destino enviesado
range demora e se chega
não há quem fomente o azo

batendo palmas
há o enfado do atraso
que não prossegue nem pausa

não é calma nem pressa
um sopro do desabafo
que infesta se as velas vazam

("poemas lançados fora", Guto Leite, 7Letras, 2007)

Jul 1, 2008

Difícil exercício

Nunca acreditei muito em oficinas de criação poética. Ainda mais depois que fiz uma com um poeta beat que analisou poemas de todos os oficineiros, menos os meus, por "esquecimento" (aspas de citação). Entretanto, a oficina que tenho feito, no último mês e meio, com o Fabrício Carpinejar certamente tem sido muitíssimo proveitosa pra mim! Não digo, obviamente, que mudei tudo o que escrevia antes, que me desfiz das peças empíricas do fazer poético adquiridas nestes anos, mas tenho expandido muito minhas reflexões, meus timbres, as imagens possíveis e tenho aguçado bastante minha sensibilidade lírica. O poema do último post, por exemplo, seria impossível há algumas semanas (a impossibilidade é um desafio que me encanta). Embora não tenha sido solicitado na oficina, prática comum de exercício, certamente é a soma de minha leituras de Bandeira com um certo laissez faire ma non troppo que o Fabrício defende às segundas à noite. Esse que segue, sim, foi solicitado na oficina.

p.s.: a solicitação foi no sentido de traduzir os sentimentos abstratos (que ele escolheu) em imagens pessoais, e portanto, mais distantes da concepção vaga do senso comum.

Sentimentos felinos

Volúpia: os movimentos propícios que ela faz enquanto dorme. Filhote de gato que ainda não abriu os olhos.

Amizade: acordar e perceber que ela, zelosa dos meus vícios, finge estar dormindo, afagando-me intimamente. Sorrir furtivo na tentativa de adivinhar quem finge há mais tempo. Tocaia de gato, que só quer afiar seus dentes.

Avareza: deixar-se de lado na ocasião do abraço, beijar e seguir úmido nos lábios. Dormir impropriamente. O filhote mais gordo, praticamente imóvel, à beira de um pires de leite. No peso do seu corpo, afasta o irmão mirrado.

Esperança: o átimo anterior ao segundo laço de suas pernas, quando, como uma garra de gato, ela amarra o pé nas costas de seu outro tornozelo. Meu olho gaiato esperando o mesmo de pernas que não são dela. O parto do último filhote, o gato da placenta. Tão vira-latinha no saco velho de arroz! Tão imprestável quanto os irmãos mais velhos.

Raiva: ver que há algo que dói nela, ser incapaz de medi-lo. Se angústia a desperta, adormecê-la de novo, medicando-a com esperanças genéricas. A raiva de não ser capaz de exceder-se. Os olhos fixos de um gato adulto, que não mia, não mexe, não sabe. Os intermináveis olhos negros deitados no gesto inútil.