Mar 22, 2009

Postagem inédita

Originalmente, este é um blog de poesia... como as musas se arrediam, passou a ser de poemas e contos. Por compartilhar com o protagonista da obra-prima de Mário sua maior qualidade, virou poesia, conto e quadrinhos. Daí mudei-me para longe, demorando mais para ter novos quadrinhos, tornou-se poesia, conto, quadrinhos e roteiros. Ah, enfim, hoje deixo um trecho da minha única peça (com Gustavo Teixeira), que concorre ao Prêmio Nacional de Dramaturgia que sai agora dia 30. Rezemos!

HOMEM (acariciando a MULHER, à revelia):
Não. Eles não contam... presos, livres, alheios...

MULHER:
Tac.

HOMEM:
Sabem do tempo porque nós os visitamos, às vezes, jogamos bananas, fazemos nossos filhos imitá-los.

MULHER:
Nós temos filhos?

HOMEM:
Não. Mas se tivéssemos, faríamos isso.

MULHER:
Tac.

HOMEM:
Tic.

MULHER (cedendo ao carinho):
Você é muito duro comigo.

HOMEM:
Sou, para não perdemos nada.

MULHER:
Mas pra isso precisa acabar com tudo?

HOMEM:
Tudo o quê?

MULHER:
Tudo. Isso (apontando em volta)... tudo!

HOMEM:
Eu mantenho tudo isso.

MULHER (saindo dos carinhos, indo em direção à cama):
E não precisa de mim?

HOMEM:
Claro que preciso, mas você não é imperativa.

MULHER (começando a se exaltar):
O que quer dizer com isso?

HOMEM (se aproximando, cândido):
Você é algo que eu quero...

MULHER:
Tac.

HOMEM:
E os desejos provocam necessidades.

MULHER:
Mas...

HOMEM (chegando à MULHER):
Mas o tempo é imperativo, está além do desejo, e você não...

Mar 19, 2009

Defeito de fábrica

Saudações, caríssimos. Comecei na semana passado um curso de conto para corrigir um grande defeito da minha formação literária... Sinceramente, nunca me dei bem com narrativas, histórias, peripécias, climax e desfechos. Estranho! Há boas teorias que defendem com vêemencia uma certa pulsão natural à narrativa. Isso corrobora uma de minhas maiores suspeitas. Vim, sem sombra de dúvida, com um grande e escandaloso defeito de fábrica.

o burocrata

Depois de trabalhar mais de vinte anos no setor administrativo desta repartição pública, aprendi as muitas nuances do ofício. Naturalmente, hoje ocupo o melhor dos cargos do departamento: sou o responsável por acatar ou negar pedidos de licença e férias de todos os funcionários, milhares, que compõem nossas incontáveis alas e sucursais. Minha rotina é na verdade bastante simples. Na segunda pela manhã, recebo uma lista de solicitações pendentes. Acima, em vermelho, constam os nomes daqueles que imperativamente devem se licenciar na semana seguinte. Ao lado, após os nomes do prédio e do setor, figura o contingente mínimo de empregados necessários ao bom funcionamento da seção. Assim, de posse de dois carimbos comuns, DEFERIDO e INDEFERIDO, marco, até o final da semana, cada um dos nomes do rol, apelidado por mim de “a enorme lista do ócio”.
Obviamente se espera do meu trabalho mais do que preencher tabelas idênticas de uma tinta azul inevitavelmente borrada. Devo, em tese, vislumbrar, medir, prever, ponderar, analisar, argüir e julgar, caso a caso, quais daqueles empregados merecem usufruir antes de seu direito de descanso. Não me envergonho em dizer que assim o fiz, a princípio. Contudo, seria pouco honesto da minha parte dispensar a regalia de preencher ao acaso minhas obrigações, respeitando, é claro, os ameaçadores nomes rubros ao alto da lista. Às terças-feiras, quartas, no máximo, já realizo passeios salutares por cada um dos setores, prática, aliás, prevista pela natureza do meu trabalho.
Muitos acreditam no poder terapêutico e na potencialidade criativa do ócio. Eu, no entanto, e me considero o homem ideal para falar sobre isso, afirmo que o descanso foi feito para que os negócios que o sucedam sejam mais proveitosos. Complementam-se um ao outro e alienam o homem igualmente. Basta olhar para uma repartição pública em uma segunda de manhã ou para o tom renovado que amanhecem os domingos, dia seguinte ócio metafísico de Deus. Basta olhar para mim, neste renovador retorno das férias, degustando calmamente cada pequena engrenagem da máquina burocrática e valendo-me de novo da simpatia sinceramente interessada dos meus colegas.
Recebo a lista costumeira das mãos do Gerente Geral e entro em minha sala. Recosto-me na cadeira acolchoada de quatro requerimentos, abro a pasta e verifico que meu substituto trabalhou como um novato, minucioso e ingênuo. Mesmo assim e, por isso, centenas de nomes esperam ali meu presto julgamento. Conheço pessoalmente muitos deles, infiro pelos apelidos outros tantos. Fecho a pasta por um tempo, tentando me lembrar o máximo possível dos rostos de nossa repartição, um hábito lúdico que ganhei com os anos. Abro novamente a pasta, deslizo meus dedos sobre cada rotina e acho por bem começar logo o trabalho.
Prédio Um. Aarão, dos arquivos, seu irmão é escritor de cinco livros muito bem recebidos pela crítica especializada. INDEFERIDO. Abílio, gerente de atendimento, o vi saindo do carro esta manhã com cara de quem teve uma noite ótima. INDEFERIDO. Acácia, da recepção, educada, prestativa, cerimoniosa. INDEFERIDO. Adalto, grande sujeito esse Adalto, que setor? Vejamos. Setor de Aprimoramento e Capacitação, o SACA, mas como, se o esbarro freqüentemente nos corredores? Bem, quantas licenças para o prédio? Quarenta e duas. Alguém de férias ou licenciado? Não. DEFERIDO. Palmas para ele. Aline, magra, vegetariana, jeitinho superior, de quem está sempre um passo na sua frente. INDEFERIDO. Amanda. INDEFERIDO. Atanásio. Atanásio? Que pai batizou esta criança? Não me lembro dele... Funcionário desde 89 do Setor de Recursos Humanos. Daqui?
Ergo a cabeça por detrás da pasta e fito além do vidro aqueles que trabalham. Impressionantemente, salvo o Gerente Geral, desconheço o nome de todos que consigo avistar neste momento. Para piorar, a maioria tem minha idade e minha postura na degustação de suas boas trajetórias no funcionalismo público, o que os torna, nos torna, muito parecidos. O homem de terno ao canto da sala, lembro-me bem, embora tenha esquecido seu nome. Houve um bolão no setor uma vez sobre quantos meses até que ele tentasse o suicídio. Todos perdemos, muito triste. Há o obeso das gravatas exóticas. Nos dias quentes, sua muito, encharca-se, tendo que limpar os dedos na camisa para tocar nos documentos, salpicando-as gradativamente de um tímido amarelo. Também poderia ser aquele alto e esguio – como é mesmo seu nome? – que passou o abaixo-assinado há alguns anos para continuarmos a usar os escaninhos em vez de computadores.
Certamente é um desses párias, mas qual? Os tempos longe daqui me levaram o tino. Meus olhos agora se desprendem dos meus primeiros suspeitos e outros já cabem perfeitamente em Atanásio, levam o nome aos crachás. Quem me dera usássemos crachás! Quem me dera as pessoas fossem atreladas aos nomes como o trabalho ao ócio!
Que se foda o Atanásio! Indeferido.

Mar 15, 2009

Perdão pela demora

Salve, queridos! Há algum tempo postei neste espaço a letra de um samba feito nas últimas férias. A resposta foi muito boa e finalmente tenho como também veicular o áudio, que é, afinal, parte indissociável da canção... Espero sinceramente que não se decepcionem com a faceta melódica da letra que leram. Agradeço como sempre os comentários, impressões e tudo o mais que quiserem postar neste espaço, compartilhado. Abraços e arte a todos!

p.s.: para ouvir a canção, só clicar na palavra "áudio" ou no link da Abracabrália, no lado superior direito.

Perdão
Guto Leite & Daniel Coelho

Quando você me pediu perdão,
Tudo pareceu não ter mais vida,
Errei nos bares a ganhar identidades,
Fui poeta, louco, suicida, fui bufão.

Levo no meu pulso um suvenir,
Uma cicatriz do teu legado.
Uma lembrança que você comprou
Na escadaria do Bonfim
E disse: faz algum desejo!

É, o amor não é de brincadeira.
É, o amor não é para o senhor
Do Bonfim, me guarda, por favor,
De mim, me guarda!

Sei que amor é raro de existir,
Tudo que te peço é mais cuidado.
Pra não haver mais entre
Teus futuros namorados
Um que ande assim perdido igual a mim.

Mar 7, 2009

Duas espécies?


Ao ler uma excelente edição levada a cabo pela Azouge, "Maio 68", que reúne entrevistas e conversas entre expoentes mundiais dos movimentos contestativos de 68, encontro a seguinte assertiva de Timothy Leary, um dos precursores da contracultura: "Assim como há muitos tipos de primata: babuínos e chimpanzés e por aí vai. Em alguns milhares de anos a gente vai olhar pra trás e ver isto que - daquilo que a gente chama homem - talvez haja duas ou mais espécies se desenvolvendo. Sem dúvida que uma espécie, que poderia e provavelmente vai se desenvolver, é um formigueiro, funciona como uma colméia, com rainhas - ou reis (risos) - e tudo vai ser televisão, e claro, nesta sociedade a sexualidade vai se tornar muito promíscua e quase impessoal. Porque, num formigueiro, a coisa sempre se apresenta dessa forma. Mas você vai ter outra espécie que inevitavelmente vai sobreviver, e este vai ser o povo tribal, que não vai ter que se preocupar com fazer, porque, quando você cai fora, então a brincadeira de verdade começa". (p.163)

Salvo as sombras nada irelevantes de eugenia e calvinismo que pairam sobre esta colocação, até que ponto não se pode notar certa verdade na fala de Leary? Não obviamente distinção de raça, e não, provavelmente (?), distinção prévia, espiritual, mas uma distinção formada pela educação cada vez mais primorosa de um escol cada vez menor de pessoas. Não compactuo com o preconceito invertido contra as pessoas que nasceram com mais condições do que outros - e por isso são educadas de maneira mais cuidadosa (embora frequentemente se imbecilizem ao longo do processo) -, mas precisamos pensar com urgência na constatação que determinado graus de abstração já estão simplesmente inacessíveis à maioria dos homens. É real que se tem agravado a diferença?

Hoje fica a bandeira, não Bandeira, nem mesmo Guto, menor, perdoem-me. Braços e abraços a todos!

Mar 3, 2009

Muletas

Já postei antes estes dois poemas e - sem querer aqui me apoiar nas muletas necessárias a quem faz blog de poesia, os poemas elogiados - reapresento-os com as modificações recentes para um concurso de poemas que vou participar (Guemanisse, aos que se interessarem, só procurar no Google que é bem fácil de achar). Claro que são incontáveis as ressalvas contra a iniciativa, mas me pergunto se não é justamente de homens que sucumbiram a estas ressalvas a culpa por se erigirem hoje, os concursos de poema, em estruturas tão frágeis, de gosto duvidoso, percursos obscuros etc. Também já fui premiado, o que torna estranho abominá-los agora hipocritamente. Ademais, sempre me deparo em alguma colêtânea com um ou outro poema inspirado. Não é muito, mas até o menos matemático dos leitores concordaria comigo que melhor um bom poema do que nenhum! Versos de algibeira a todos!

quando as luzes se acendem

a noite traz a luz para fora das casas
ascende-as

os homens que à primeira luz
saíram
chegam apagados

as luzes que a noite acende
fora das casas
despedaçam-se

pálpebras se contraem
no espaço secreto que sonhem

quanto mais os cenhos apertados
desfiguram-se
da cilha natureza do trabalho

mais a noite segue retomando
o espaço à corrente

de súbito e no máximo contrato
os elos se rompem
os braços dos abraços

e assim que não se reconhecem
mais reconciliados

as luzes apagam de novo
a noite fora


os cortejos de outono

às primeiras sombras de outono
os pássaros são folhas confundidos
que se afastem os homens
que são grandes
do baile nos paralelepípedos

só as aves mais frágeis folificam
pelas asas inaptas para o altivo
que se afastem mulheres
seus vestidos
cuja borda lhes fere e abafa o trino

pelos dias que houver até o início
do invisível movimento dos pistilos
que se afastem os braços
dos meninos
da penugem eriçada do arre! pio

o sol corre imóvel ao seu estio
o corpo ao meio-fio a dor cipreste
que se afastem as folhas
pelos bicos
e aos silvos do inverno se aquietem

Mar 1, 2009

Outra das férias

Aproveito este começo de semana para postar outra canção das férias... Não das férias, propriamente, porque a parceriei antes e só gravamos em fevereiro. Também não canção, como normalmente se dá, mas feita experimentando uma dicção própria para a letra, a saber um bom e velho papo de bêbado. Provavelmente falhei na tentativa de traduzir o melancólico e o cômico da situação, mas, sobretudo, adorei fazer a letra e gravá-la. Abaixo transcrevo a letra e quem quiser ouvir o som pode clicar no link "Guto Leite" (acima, do lado direito). Outras canções, já com o trabalho da banda, no link "Abracabrália".

É o coração
Lucas Bohn & Guto Leite

Bom ver você por aqui,
É que faz tanto tempo!
Eu queria saber
Como vai se virando?
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos vivendo?
Como vamos vivendo...

Senta, to pronto pra ouvir
Como os anos vieram...
Que firmeza na voz!
Que olhar decidido!
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos vivendo?
Como vai resistindo...

Eu não sei
A razão para continuar,
Quem me deixa pedir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me deixa pedir nessa mesa de bar,
É o coração.

Eu não sei,
Até quando podemos ficar,
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.

Desce mais uma pra mim!
Conta mais, to te ouvindo...
Já casou? Vai casar?
Tem amantes? Tem filhos?
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos seguindo?
Como vamos seguindo...

Calma, ainda é cedo pra ir...
Pra amanhã, falta tempo!
Mas depois nos falamos,
Só depois nos ouvimos.
Como vai resistindo ao pó?
Até mais, meu amigo.
Vai em paz, meu amigo...

Eu não sei
A razão para continuar,
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me dera sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.