May 29, 2009

Corrigido

Acho que não comentei por aqui, mas faço atualmente uma oficina de contos que tem me ajudado muito, embora eu ainda esteja longe de ser alguém na prosa. Não dou os créditos, por enquanto, por achar sinceramente que seria um reclame digno de reclamações, visto minha disabilidade com a coisa. De toda forma, posto hoje um destes contos feitos para a oficina, já com as devidas correções, o que não o redime. Um começo de semana (posto no fim) cheio de arte a todos!

Ecce homo

Não sei se por índole natural ou civilizada, os homens tendem a preferir verdades excludentes. É feito disto ou daquilo, é determinado ou casual, é restrito ou livre o arbítrio, é abominável ou preferível, é culpado ou inocente. Visto nosso extenso percurso de enganos, está claro que esta não é a melhor forma de conhecermos bem qualquer coisa. Ao invés, proponho entendermos os corpos, físicos e abstratos, como uma relação dinâmica de forças opositoras, entrelaçadas a tal velocidade, diria Heisenberg, que apontar qualquer delas é perdê-las todas. Escolho e não escolho uma dessas relações para que entendamos melhor no que desperdiçamos agora o nosso tempo.

Os homens não mudam, dizem os provérbios, a História e a sabedoria popular. As crianças sim, ainda bichos, moldáveis, aptas, têm escolas, preceptores, e normalmente são educadas pela sociedade vigente a tornarem-se homens (sendo isso bom e ruim). Os homens mudam, eis a moeda corrente dos religiosos, psicanalistas e metafísicos em geral. Basta que um ser superior (Jeová, Tarô ou o Ego) intervenha com sua força descomunal para que drasticamente se altere a natureza do ser. Tomemos, então, todos nós como um único homem. Não o de Platão, porque distante, nem mesmo o de Marx, mas um homem máximo, que nasceu com as comunidades mesopotâmicas e que vêm se arrastando desde então, reunindo seus fragmentos, até finalmente se achar pleno e orgânico no começo deste século. Olhando no rosto desse Homem, olhando-o nas mãos, vemos sem dificuldades que ele muda. Não mais amaldiçoamos as adúlteras a descair a perna e a inchar o ventre. Também não consideramos todas as mulheres, de antemão, predispostas ao sexo. De mesmo ângulo e visada, vemo-nos ser exatamente o mesmo homem de outras eras, nos movimentos agrários contra Licinae Sextiae e nos segundos socos das brigas de bar, que revidam no direito o manchar das honras e dos olhos.

De que nos serve vermos simultaneamente os homens por dois lados? – objetarão os pragmáticos. Com o Homme au chapeau debaixo do braço, respondo que não nos serve mesmo para muita coisa, senão para estarmos um pouco mais distantes do erro certo. Forçarmos a mudança está previsto e será evitado. Adiarmos a mudança é impossível. Dentro do Homem somos minúsculos, células epiteliais, a princípio, que quanto mais relevantes, porventura, mais nos constituímos organismo adentro, aumentando-nos em importância e permanência. As duas únicas medidas cabíveis (e não excludentes) são: dedicarmos nossas vidas a salvar todos os homens e investirmos nosso tempo numa forma de matá-los. Nisso Jesus e Hitler são idênticos.

Para mim, que além de falar sozinho não possuo qualquer outra mania de grandeza, não se apresenta ainda de forma clara como devo empregar meu pensamento. Deitado a alguns metros e uma parede do quarto de meus pais, perco-me microscopicamente na metáfora do corpo. Se vamos nas camadas mais externas da pele, de que nos vale o fôlego? Qual a verdadeira importância de outros como eu, pequenos e substituíveis? Se sabê-lo me torna profundo, eu não teria ascendência sobre aqueles que servem somente para me proteger do que vai fora? Meus pais, que dormem, o que diriam a respeito? Certamente sorririam ou negariam sem entendimento algum, como já fizeram em outras vezes. Nossas diferenças têm se tornado evidentes há alguns anos e não vejo como reatar certa ligação perdida que sinto já ter experimentado quando éramos bichos. Devo salvá-los, matá-los ou ambos? Tem alguma relevância qualquer um dos meus atos? Qualquer ato, em geral, possui algum sentido?

Durmo pensando que o melhor mesmo é que eu não me case. Se sucumbir, entretanto, que jamais tenha filhos. Caso por descuido venham os rebentos, fingir-me constantemente submisso até conseguir tê-los todos fora de casa. Enfim, cada qual que cuide de sua natureza.

May 24, 2009

bill



Enfim, trago outro poema, nascido direto da observação de um amigo. Chamo de amigo por impropriedade, não somos íntimos, mas tenho grande admiração pela pessoa e seu carinho evidente pelo filho me emocionou bastante. A uma primeira leitura - é raro para mim mostrar poemas antecipadamente -, minha mãe observou: mas não seria "todas as crianças são negras"? Não, não seria. Falo de cores, não de raças. Não acredito em raças diferentes, somos todos da mesma raça! Aliás, as palavras-cores são muito mais leves e precisas do que as palavras-raças. Muita arte e ótima semana a todos.

May 23, 2009

Obituário

Estava com um poema no forno para postar aqui, quando por acaso assisti ao programa do Paulinho Moska no Canal Brasil em homenagem ao compositor Zé Rodrix, que morreu há alguns dias. Confesso que não conhecia a obra do compositor mais do que sua história - concebia-o similar ao entrevistador, cancionista mais ou menos, de uma canção só -, embora "Casa no Campo" tenha sempre sido uma de minhas canções prediletas. Duas de suas colocações me tomaram de assalto e me fizeram dedicar o post de hoje à sua vida de compositor. A primeira: que devemos voltar a canção! Segundo Rodrix, nas últimas décadas, começou-se a pensar em show, em imagem, em proposta, e a canção mesmo, coitadinha, ficou em segundo plano. Assino embaixo. A segunda: que as canções escolhidas tem que ser aquelas que emocionam primeiro o compositor. Se o fazem, estão prontas. Não poucas vezes, mas também não muitas, chorei ao término de determinada canção! É realmente intensa a energia envolvida no momento em que se compõe. Confessei a um amigo nestes tempos: um poema fica dias na cabeça, fermentando; uma canção te atormenta, te incapacita, até ser colocada no papel... Após a entrevista, fui atrás para descobrir o talento de Zé Rodrix. Viva a memória do compositor! Dois vivas para suas idéias! Três para suas canções!

May 21, 2009

a última canção

Talvez eu comece um projeto bem legal com uma banda gaúcha, em paralelo com o projeto que já tenho com a Abracabrália. Este novo projeto promete ser mais na praia do rock and roll, na tentativa de fazê-lo a contento em português, tarefa que acho só algumas poucas bandas e artistas brasileiros conseguiram realizar bem (Cazuza, Cássia Eller - em alguns momentos -, Nação Zumbi, Mutantes, Secos & Molhados, Los Hermanos - com alguns filtros também, devem haver outros que desconheço). Daí já se entrevê o tamanho do desafio. Tô dentro. Muita arte a todos!

a última canção
Letra e melodia: Guto Leite
(sobre harmonia da música “do bolso pro meu”, da banda Invisível Ataca)

não é tarde
pra consumir
a última canção
sem sentido
deve surgir
a última canção
não espalhe
guarde pra si
a última canção
nos ouvidos
deixe dormir
a última canção

deve haver uma cidade
em vão
pra onde todas vão
como faço pra morrer
canção

não é tarde
pra desistir
da última canção
dos ruídos
vai ressurgir
a última canção
também vale
distribuir
a última canção
pelos fios
para explodir
a última canção

deve haver uma cidade
em vão
pra onde todas vão
como faço pra morrer
canção

May 17, 2009

O Trombone IV



De improviso, conseguiria citar quatro características fundamentais para uma boa narrativa longa: personagens cativantes, bom enredo, ritmo coerente com a proposta que se entrevê e um narrador que ajude a conduzir as coisas. Claro que para outros leitores, outra lista, mas acredito que ninguém deixaria de fora estas quatro obrigações de um bom prosador. Leia-se: acerto no pouco, mas acerto. O quarto volume desta obliviada série que se propõe a fazer crítica de artistas contemporâneos traz à baila justamente uma boa narrativa longa. Trata-se de Quatro Negros (2006), de Luis Augusto Fischer.

Em linhas gerais, o conteúdo do livro está apresentado por seu título, embora, de maneira nenhuma, se possa resumi-lo à história de quatro negros. Aliás, por uma característica bastante peculiar da figura do narrador, não é nada óbvia a forma com que o autor nos apresenta Janéti, Seu Sinhô, Airton e Rosa. A princípio, ele (o narrador) diz que gostaria de apresentar ao leitor uma mulher que conhecera em um evento literário (Janéti) e que lhe contara sua história. Por meio de recuos, mudanças de foco, avanços, múltiplas narrativas e outros artifícios, acabamos por saber a história de Janéti, de seus irmãos Airton e Rosa, e também de um velho e especial morador interiorano, Seu Sinhô.

Voltemos à proto-teoria fajuta que esbocei no primeiro parágrafo para tentar entender como esses quatro fatores figuram na novela (graciliana) de Luis Augusto Fischer. Há no livro personagens cativantes? Sem dúvida nenhuma, sim. Aliás, comentei com o autor (vantagem ou desvantagem que também sofro: escrever e continuar vivo), “que problemão você arranjou com a Janéti, hein!”. Explico-me: acredito que o livro acaba sendo polarizado por esta personagem em função de seu extremo carisma e de sua história magnífica. Usando uma metáfora futebolística e o time de afeição do autor, a Janéti seria o Nilmar de Quatro Negros. Tudo bem que há um D’Alessandro na figura de Seu Sinhô, extremamente requintado e cativante em sua simplicidade, e também um Tyson na pele de Rosa, rápida, mas precisa em sua função, e até mesmo um Guiñazú nas páginas de Airton, ou Jorge, personagem menos chamativa, mas que exerce sua função na estrutura da novela; mas é certamente Janéti quem chama para si a atenção durante a leitura e a memória depois dela. Prova disso talvez seja que ela é o suposto fio narrativo da trama e reapareça freqüentemente, em comentários ou na história de todas as demais personagens. Seria um problema do livro? Acredito que não. É preferível haver alguém como ela numa obra do que nenhum personagem que nos marque, que nos leve a ver as pessoas do mundo em cotejo com ela. Além disso, salvo Dostoievski, não conheço prosador que seja capaz de ter uma dúzia de personagens igualmente complexos em seus romances. Fica a ressalva de que torço pro Vasco, indício de que pouco entendo de futebol. Pilhérias.

Um bom enredo? Também respondo afirmativamente a essa pergunta retórica. Se bem que, no caso do livro em questão, é muito difícil separar o enredo dos demais elementos, como as personagens ou a figura do narrador. Não tenho, entretanto, ressalvas em afirmar que há, sim, um excelente enredo, pois a cena magistral da página 35 fia de sobra o meu elogio. Aos usurários mais exigentes, invoco o diálogo com Seu Sinhô na página 48 como minha garantia. Tento me eximir de parafrasear qualquer parte da narrativa para não macular prazeres de leitura. Enfim, o livro traz bons achados (grandes e pequenos) em sua trama, todos competentemente alinhados em prol da atenção do leitor.

Para isso também age o narrador, a terceira figura que apontei inicialmente. O narrador de Quatro Negros vai bem próximo do leitor ou talvez fosse mais preciso dizer que vamos nós a seu lado, visto que eu o qualificaria como simpaticamente voluntarioso. Que não se espere um narrador como o de Brás Cubas, pois não é o caso. No livro de Fischer, o narrador é muito mais cuidadoso com o leitor que o ouve, embora, com alguma atenção, é possível sentir que estamos à mercê de suas vontades e de suas perspectivas. Surge-me a idéia de que talvez eu esteja desvelando um mecanismo interno da novela – que o autor me perdoe –, qual seja, certa ingenuidade própria ao leitor de que também se valeu Machado para fazer funcionar seu romance acima citado por décadas antes que alguém levantasse suspeita sobre suas impressões. Como não tenho tantos leitores quanto ambos, espero não pôr com esta observação empecilho à leitura de ninguém. Chamo atenção, ainda e por fim, à linguagem bastante feliz mobilizado pelo narrador, como também às digressões e reflexões que assomam muito à riqueza do romance.

Resta, como fechamento, falar sobre o ritmo da novela, que vai muito bem, obrigado. Aliás, talvez o ritmo de uma narrativa faça parte daquele conjunto de coisas que só notamos quando há algum problema. Para Poe, um conto seria uma narrativa para se ler de uma assentada, pois bem, o ritmo da novela de Fischer é tão ágil, que talvez fosse mais acertado chamá-la de conto, o que me parece uma grande virtude, visto que, no caso, a agilidade da prosa não vem acompanhada de superficialidade de tratamento dos temas. Romance, novela ou conto, pouco importa, se o ritmo é capaz de nos causar avidez de leitura, sobretudo em tempos tão pouco afeitos à leitura ou ao talento.

Enfim, nos dias de hoje, talvez o maior elogio que se possa fazer a uma obra – já que não tenho a ilusão de destituir do histórico o mais infalível dos julgamentos – seja que é uma obra para ser lida! Ser lida no sentido de que compõe conosco nossa visão de mundo e de nós mesmos, além de merece, certamente, um lugar nas representações simbólicas que nos constituem como seres pensantes de nossa época.

Cornetem!

May 15, 2009

O último quarto




Atendendo à indicação de uma amiga, posto hoje o poema que postei alguns dias atrás no "Poema Dia". Não gosto de repetir nem artigo científico, mas gosto do poema e ela me deu boas razões, que omito. Abraço arteiro e bom fim-de-semana a todos.

caramanchão

assim envelheço
de olhar cansado
pro lado do quarto
que já morreu

até a surpresa
jovem mas frágil
de tão enganada
adoeceu

sem ter o cuidado
amadeirado
minha pele farta
se amarrotou

sem ter para onde
ir meu enfado
transmuto em destino
cá onde estou

e onde me encontro
ausente de filhos
de netos amigos
de namorar

o que vai comigo
se é que a morte
é ir do destino
a algum lugar

reabro as janelas
e a luz senhora
mais velha do mundo
enlouqueceu

movendo o vestido
não mais acorda
a cor que a poeira
adormeceu

são tantas memórias
andando em volta
a casa esquecida
dos meus avós

velórios alpendres
serões e sótãos
tudo que o tempo
despe de voz

agora envelheço
de vez e por fim
não sei a quem devo
cumprimentar

que sinos são esses
que saudades
eu sinto no corpo
imenso do ar

May 12, 2009

Poema Dia

Hoje meu posto é lá no Poema Dia. Convido a todos para conhecer o espaço. Mesmo que meus versos não agradem, certamente acharão ótimos poetas para-levar-consigo. Ótima semana e arte em exagero a todos!

May 10, 2009

Poema de viagem

Em Campinas, para tocar com a banda, o tempo passa sempre mais rápido do que eu. Por isso, fico com pouco tempo para trabalhar nos meus escritos. Às vezes passo dias trabalhando versos na cabeça (enquanto faço outras coisas) que só vou escrever em minha volta pra casa, no tempo letárgico do meu quarto. Enquanto isso, ocasionalmente, surgem pequenas lascas-poemas, que compartilho. Boa semana e arte a todos!

devaneio

jamais vou acordado

sigo em sono íntimo e profundo
todo o tempo

se às vezes me perturbam
para falar de algo
com olhos mãos beijos e apontamentos

desperto só o bastante
para agir de modo
que todos se contentem

e durmo

durmo novamente
no chão acolchoado de minha alma

deste sonho
vitalício
percebo que quando se acorda
é tudo muito cortante

e rude
sem as nuances necessárias
para ver que o mundo se esmaece

que as coisas trazem outras coisas
sobrepostas

nos raros momentos lúcidos
de vigília
pergunto-me
se todos vão como eu

se todos dormem

e se da mesma forma
se assustam
quando um rasgo de mundo lhes acorda

May 5, 2009

O ser e o nada

Ando como sempre. Produzindo... produzindo... Não há mais sentido em retirar tudo da alma para pôr num símile de alma que é uma pasta do windows. Estou neste limiar estranho onde se torna difícil delinear as coisas, dar sentido às coisas. Seria menos angustiante ouvir delas mesmas, as coisas, baixinho, a confidência íntima sobre qual o sentido de suas vidas. Mas nada! É tudo um extenso e angustiante silêncio. Salvo uma ou outra nota consonante, o resto não existe. O que realmente me tira o sono, se querem saber, ou se não querem, é que todos vivem, até felizes, nesse resto inexistente, enquanto as notas raramente encontram alma que lhes guarde. Abaixo, o poema que fiz pro quase choro de uma amiga.

May 3, 2009

O Trombone III



“A última gravação de Krapp” (1958) e “Ato sem palavras I” (1956), do irlandês Samuel Beckett, com Sérgio Britto e direção de Isabel Cavalcanti, foi minha apreciação artística deste domingo à noite.

A primeira história nos apresenta o velho sr. Krapp (“Sr. Merda”, em alemão) rememorando, por meio de uma fita de áudio, as impressões que havia gravado vinte anos antes, em especial, a morte de sua mãe, a morte de uma mulher segurando sua mão e aquele que parece ter sido o último amor de sua vida. Para aumentar a complexidade abrupta de Beckett, vale lembrar que a personagem é um escritor aparentemente mal-sucedido e levemente alcoólatra, o que a um olhar mais agudo revela ter escolhido, em algum momento, sua arte em detrimento das paixões que poderiam dar-lhe algum prazer na vida. O diálogo, ou monólogo, entre o sr. Krapp cinqüentenário e sua versão mais nova também intensifica o efeito dramático do texto beckettiano, dando ao expectador, gradativamente, a medida exata da desolação daquele homem e, por algumas identificações, por conseqüência, minha própria desolação (ou a de algum expectador mais sensível).

O segundo texto, absolutamente meta-teatral, mostra um ator empurrado para cena, numa luz absurdamente clara e angustiante (uma praia, possivelmente), e sendo dominado com sarcasmo por alguma instância externa. Ora lhe oferecendo a sombra de um coqueiro, tesouras para cortar as unhas ou água, ora deixando estes mesmos objetos fora do alcance da personagem. Cansado do jogo, este náufrago da quarta parede decide suicidar-se, mas mesmo isso lhe é impedido por aqueles que têm poder sobre ele. Ao fim, parado no meio do palco, a personagem-ator não mais aceita os caprichos deste “deus” da autoria e renuncia a qualquer objeto oferecido por ele, até que as luzes se apagam por completo, num simulacro bem realizado da morte cênica.

Não entendo muito de teatro, senão como amante – os amantes tendem a ser as pessoas que menos se entendem, embora o teatro muito saiba de mim –, por isso não me sinto tão à vontade para falar das escolhas cênicas realizadas, mas posso dizer, sem tanto receio, que a atuação de Sérgio Britto dá a impressão de que ali está um ator que conhece os atalhos e os exibe, sem qualquer vaidade. Nos pequenos atos realizados, nas pausas, na entonação em tal ou qual fala; deixa-se entrever sempre em sua interpretação as não poucas décadas que aquele homem passou em cena e o domínio experiente do texto e das personagens. De sua generosa conversa ao final da apresentação, chamo a atenção para a orientação da diretora Isabel Cavalcanti exposta pelo ator. Era para ele buscar ao máximo se fundir com o senhor Krapp, evitando as expressões faciais ou corporais demasiadamente marcadas (vale a nota de que também o senhor Britto perdera a mãe e presenciara a morte de uma mulher, como a personagem e o próprio Beckett). Ora, essa era exatamente a chave de leitura que me faltava para entender que, como eu, a diretora havia compreendido as peças (aproximadas) como a luta do artista pela aceitação de sua arte, procurando fazer o possível para não se perder nesta busca. Tanto a solidão do Sr. Krapp quanto a subserviência desoladora da inominável personagem da segunda peça são facetas possíveis daqueles que pretendem posicionar-se artisticamente diante de seu tempo, postura notória também assumida por Beckett. Que o dramaturgo tenha realçado os matizes mais escuros deste quadro nestas duas peças, deve dizer respeito à sua estética ou a um entendimento perspicaz de como as coisas se desenhavam para a arte a partir da segunda metade do século passado.

Caros habitantes de Porto Alegre, compareçam ao 4º Festival Palco Giratório do Sesc-RS! Há um bom número de boas peças sendo representadas neste mês (para a programação, http://www.sesc-rs.com.br/palcogiratorio/programacao.htm). Principalmente: classe artística de Porto Alegre (ou os que se concebem como tal, o que na prática dá no mesmo), compareça ao Palco Giratório! Tudo bem que a arte de entretenimento atualmente em voga – a recusa ao último filme do Meirelles talvez comprove essa hegemonia – tem o seu lugarzinho quente, debaixo de um cobertor de vó. Mas acho importante, preciso, quem sabe, que vocês, escritores, atores, intérpretes, compositores, dançarinos etc., sintam que ainda respira um artista dentro da carcaça hostil e exagerada de um entertainer. Que o resto seja... Silêncio.

Cornetem!