Nov 12, 2010

Da força das coisas

Como é ler mais de 700 poemas de autores diferentes? E, eventualmente, imaginar seus autores, ou, ao menos, o rosto que seus autores nos mostram naqueles versos? Quantas pessoas têm essa oportunidade? Por um instante pensei nessas perguntas, antes de começar o trabalho árduo, mas agradável, de ler e selecionar os poemas que estarão presentes nos ônibus e trens de Porto Alegre em 2011.

Recebi o montante de poemas na manhã do dia 29 de setembro, poemas esses que já haviam passado por uma seleção prévia quanto à formatação e ao número de versos, de acordo com o edital. Com a orientação de escolher em torno de cinquenta deles para uma reunião um mês depois, dividi a leitura em sessões diárias de uma ou duas horas quando fui selecionando grupos cada vez menores, até conseguir cinquenta e dois. Passado o prazo, na tarde desta segunda-feira, 25 de outubro, embora todos os cinco jurados (mais Andréia Laimer, Cristina Macedo, Lorenzo Ribas e Sidnei Chneider) estivéssemos com nossos poemas prediletos debaixo do braço (na verdade em pastas, mochilas, envelopes e caixas), nos dedicamos por mais de três horas e meia para chegar ao número exato de quarenta e oito poemas vencedores, a demonstrar, pelo tempo dedicado, que um bom poema é algo que está muito longe de ser consensual, mesmo entre pessoas do ramo.

Com a oportunidade de participar da seleção desta 19ª edição do “Poemas no Ônibus e no Trem” (dezenove anos da iniciativa!), muitas outras questões, além daquelas iniciais, e algumas hipóteses conviveram comigo pelo tempo da triagem. Primeira hipótese: Porto Alegre é a capital mais literária do país. Sinceramente não creio que outras capitais tenham o mesmo índice de participação popular e um concurso tão consistente e há tanto tempo! Primeira pergunta: mas como assim a literatura não tem mais a importância social que tinha? Diz isso para o cidadão que selecionou um poema seu, verificou as regras do concurso e enviou seu poema para participar do certame, diz isso pra ele. Ou como cogitou o professor Luís Augusto Fischer, e se esse cidadão comentou com mais cinco ou seis amigos que participaria? Teríamos cerca de quatro mil pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o concurso. Segunda hipótese: o concurso diz muito sobre o gosto da maioria. Encontramos sonetos, redondilhas, poemas visuais, mas há uma expressiva maioria de poemas aos moldes do nosso Romantismo, o que não é demérito, mas deveria ser dado importante a ser quantificado e considerado por quem constitui nossos programas de ensino de literatura. Segunda pergunta: o crescimento constante da participação popular acompanha a taxa de crescimento da cidade ou lhe é superior, denotando um impacto visível do concurso na vida cultural de Porto Alegre?

Dos demais jurados, dos participantes, dos interessados no tema e dos leitores deste texto surgirão novas perguntas e hipóteses que testemunham sobre a força dessa iniciativa e sua importância. Como poeta mais ou menos reconhecido, e já preterido para uma edição anterior do mesmo concurso (com um poema hoje admirado, “as chuvas de porto alegre”), só tenho como desejar que a iniciativa dos “Poemas no Ônibus e no Trem” prossiga por muitos anos e lugares, a provar que ainda existem pessoas que corretamente acreditam na avidez da população pela poesia, pelo literário, pelo lírico.

Oct 29, 2010

Julio Cesar, o cético

Juntamente com um artista plástico e amigo, Guilherme Orosco, venho trabalhando há algum tempo no Julio Cesar, uma espécie de quadrinho que tem por proposta manter uma conversa constante com a poesia, com a filosofia e com a semiótica.

Normalmente, o argumento nasce de uma intuição minha (alguns, de uma intuição do Guilherme) e faço um pequeno roteiro. O Gui pega o roteiro, dobra a intuição com seus insights imagéticos, propõe novos sentidos e, então, chegamos num resultado final que os dois concordem estar bom e coerente à personagem (que a esta altura já tem vida própria e independente de nós).

Até hoje era esse o trabalho! Agora, que pensamos em organizar uma publicação, estamos voltando aos muitos quadrinhos e quebrando a cuca para lhes dar uma forma "temporariamente definitiva". Eis aqui o primeiro exemplo. Um grande abraço e muita arte a todos!

Oct 20, 2010

Quero um barco

Não sei se já trouxe um convidado aqui. De toda forma, para quem sempre pregou a ideia da maior democratização possível de espaços e oportunidades, estava mais do que na hora de abrir esta casa virtual para outras pessoas. O texto que segue, intitulado "Quero um barco", de Raul Rodrigues, traz reflexões bastante simples a respeito de como levar a vida e até mesmo de como levar a arte (quando estas não coincidem). Apesar da aparente simplicidade, acredito que algumas das lições presentes no texto valem a pena como objeto de reflexão e debate. Como dados biográficos, o autor é baterista e percussionista, além de cursar o terceiro ano de Música Popular na Unicamp. Comentários são sempre bem-vindos. Muita arte a todos!

Quero um barco

Raul Rodrigues

Quero um barco pra viajar longe! Achar uma ilha desconhecida. Procurar, procurar... viver à procura.

O barco pode ser pequeno, mas que seja seguro e navegue bem. Levarei flores, bichos e causos.

Uma boa tripulação será muito bem-vinda, mas posso tocar sem ela. As plantas podem virar grandes árvores, os pássaros baterem forte as asas, o sopro do vento, culpado de muito, levar longe as copas e, junto, minha pequena embarcação. No caminho, cores de todos os sabores, timbres e cheiros vão aparecer e nomear o barco de "ilha desconhecida". Passo timoneiros, poiteiros e capitães; fico com os curiosos, humanos, loucos, procuradores eternos de suas ilhas.

Que chato seria se a resposta de tudo estivesse nos mapas.

Não quereria um barco, não haveria “ilha desconhecida”.

Não haveria procura, procura, procurar... vida.

Sep 30, 2010

Como ser poeta

Manual da Academia Brasileira de Letras
(seção 42: Como ser poeta)

1- Leia, leia muito. Preferencialmente os bons livros, mas não exclusivamente. Embora os clássicos sejam clássicos porque assim o chamamos - verbo no presente e no passado -, não é à toa que muitos o fizeram clássicos, acredite. Com o tempo, poucos livros tendem a ocupar essa posição privilegiada de obras-primas, tanto para você, quanto para todos os outros. Ou melhor, principalmente para os outros;
1.1 - Releia os clássicos. É preciso saber ler o mesmo livro duas vezes. Os bons livros não costumam ser absolutamente acessíveis a uma única leitura.
1.2 - Leia livros de autores novos. Não se ancore nos clássicos. Apesar da natural falta de qualidade da maioria, não desista. O ser humano é surpreendentemente criativo.

2 - Olhe para as coisas. Se elas significarem algo para você, escreva. Como se verá no item 3, isso não significa que será reconhecido como poeta, mas já é um bom e indispensável começo. Caso as coisas não signifiquem nada para você, não escreva. Seja leitor, uma condição privilegiada no mundo das letras.
2.1 - Não olhe para os livros, senão como coisas. Se um poeta escreve segundo antigos poetas, o melhor que pode vir a ser é seu poeta modelo. Escrever sob a opressão caridosa de outro estilo é olhar com os olhos do opressor.
2.2 - Reolhe as coisas. É preciso saber olhar para a mesma coisa duas vezes. As boas coisas não costumam ser absolutamente acessíveis a uma única visada.
2.3 - Olhe para as coisas novas. Não se ancore nas antigas coisas. Apesar da natural falta de qualidade da maioria, não desista. O ser humano é surpreendentemente criativo.

3 - Busque de alguma forma tornar público seu trabalho. Milhões de poetas ao longo de nossa história morreram inéditos. Reparem na cruel dinâmica da balança: quanto mais difícil for tornar público os poemas, maiores as chances dos poetas serem reconhecidos por sua arte; quanto mais fácil tornar público o trabalho dos poeta, mais eles tendem a ficar perdidos entre numerosos textos editados ou ofuscado por poetas menos talentosos, mas de melhor marketing (renome ou garbo, diriam antigamente).
3.1 - Divulgar seu trabalho é colocá-lo à prova de bons leitores, alguns deles, quase poetas que se dedicaram exclusiva e sabiamente à arte de ler.

4 - Aguarde a história.
4.1 - Não é preciso morrer, mas é recomendável.

Adendo: esta seção pode ser irônica. M.A.

Sep 3, 2010

casamento

Uma querida amiga vai casar e me dispus a escrever o poema que estará sobre as mesas na festa. Ocasião perfeita para versos à moda antiga. Viva os noivos!

Aug 21, 2010

L'image juste

A quantidade de postagens neste blog nos últimos cinco meses mostra o quanto estou correndo de um lado para o outro. De certo não é o termo exato, porque pressupõe confusão (existente, claro, mas que não deve ser central).

A imagem, ainda não boa, que me ocorre é a do vaqueiro tentando conduzir o rebanho pelo cerrado seco (eu ia usar o pastor de ovelhas, metodista, europeu e chique, mas em homenagem a Mário de Andrade...). Não boa porque minhas vacas (o mestrado, o livro recém lançado, o cd ser gravado nas próximas semanas, a Brique, meu livro novo, um começo de romance, o Trombone etc.) jamais se movimentam sozinhas e conseguem ter ainda menos iniciativa do que seus originais em couro e carne. Talvez as vacas da cow parade, mas que são pops e coloridas demais para a metáfora.

Tá aí, sou um artesão no começo do século passado, no começo da tarde com uma pilha de trabalhos a serem feitos, com seus diferentes prazos e especificidades. Um o cliente vem buscar daqui a meia hora. Outro o cliente vem ver a cada quinze minutos, mas sempre adia a retirada. Há ainda o que contratou os meus serviços por mensageiro e que, embora seja muito recomendado, assusta-me com a possibilidade de não vir. No canto há aquele outro de que mais gosto, mas que pelo tanto de afazeres, dificilmente poderei trabalhar nele até o fim do expediente. (Isso sem contar que tudo o que sou está com os dias contados, mas, para ser verossímil, meu artesão não pensa muito nisso).

É, quando o real está cheio, não há uma imagem justa.

Aug 6, 2010

Reflexões de rascunho

Chego de viagem e, na velocidade dos olhos, encontro a cidade de Porto Alegre. Fria nesta época do ano, de todos os anos, alterna dia a dia uma chuva gelada e punitiva e baixíssimas temperaturas.

Nem sei se posso dizer isso, mas talvez a cidade seja a prova de que poesia e "tristeza" (coloco aspas por não saber o que é) não sejam práticas indissociáveis.

Sob a chuva ou sob o frio, os sorrisos ficam escassos na cidade destes dias. No entanto, salvo engano, jamais morou nesta cidade um poeta maior. É provável que nem tenha pernoitado em algum de seus antigos hoteis. Tampouco no Brasil quente, litorâneo e corporal de latitudes mais baixas, já eximidos (os poetas menores, todos os poetas brasileiros) pelas temperaturas amenas e pelos sorrisos rápidos. (Talvez o único poeta maior brasileiro seja pernambucano. Terra do sol e do frevo).

Ao poeta é preciso consciência. Extrema, incansável, insone, universal. Os sentimentos que resultam disso são irrelevantes. Às vezes, as palavras que resultam disso são relevantes.

Jul 19, 2010

O arco e a lira

Passo rapidamente (e espero não desperdiçar teu tempo de visita) para um frase rápida de uma entrevista de Octavio Paz a Betty Milan (e que saiu na "Agulha Hispânica"):

Abro aspas.

Os psicólogos dizem de modo mais ou menos pedante o que os poetas dizem de forma simples.

Fecho aspas. (O crítico opunha o conceito lacaniano de "hainamoration" aos seguintes versos de Catulo: "Amo e odeio ao mesmo tempo. / Por quê?/ Não sei, / Mas eu disso padeço").

Pra que dizer mais num meio de férias?

Jun 16, 2010

Três apitos sobre a poesia contemporânea

De volta a Porto Alegre, lá estava eu lendo um teórico francês sobre poesia contemporânea e duas análises me chamaram a atenção, ao que acrescento outra, fruto de uma conversa minha com uma amiga nessa última viagem.

Diz o teórico: diferentemente da máxima de Mallarmé de que a poesia está na palavra e não na ideia, hoje a poesia está presa na palavra. É como se fosse um pouco ingênuo o poeta acreditar que ainda seja possível alguma originalidade de sentido e bastar-se (quase simbolisticamente) no que a palavra pode causar com sua imagem acústica. (Espero ter saído dessa armadilha no livro que estou lançando, porque busquei sair).

Encore le penseur: talvez um dos problemas atuais da poesia seja ela ser um gênero marginalizado dentro da cultura já não hegemônica do livro. Lá está o leitor (onde? onde?) que resolveu sair de casa para comprar um livro ou pedir para algum site mandar um livro pra sua casa. No fim da fila de auto-ajuda, biografias, baixo romance, crônica, alto romance, quadrinhos, livros de moda, aforismos (opa!), está sua escolha por um livro de poesia. Será?

Agora sou eu: a poesia está na contra-corrente do ritmo e da direção da leitura contemporânea. Pelo grande número de símbolos diários de nossa cultura visual, somos treinados desde cedo a ler com rapidez, teleológica e pragmaticamente. Daí vem o poeta e diz: passei um tempo a escolher a palavra exata para este verso, eu preciso que você acredite em mim e que acredite que esta escolha fará alguma diferença na tua vida simbólica. Na pressa do leitor se confudem o poeta brilhante e o poeta medíocre, eles se igualam na linha média da sacada, da boa ideia pra um poema, do puro wit como alimento lírico.

Terão algum sentido estas reflexões?

May 26, 2010

o começo de uma narrativa

Como está dito num banner eletrônico aqui no blog, estou participando de um laboratório de escritores da editora 8 Inverso. Nesta semana, escolheram o começo da minha narrativa para figurar em seu site na última segunda, 24 de maio, o que me deixa mais à vontade para trazê-la para os leitores daqui. Um grande abraço a todos e espero não decepcionar tanto com a evidência do meu esforço em fazer prosa.

Só haveria futuro

Os números nunca se acenderam tão lentamente. Até a cobertura ainda seriam onze lâmpadas pequenas e vermelhas sob quatorze vãos: um, dois, três... Ao menos estava sozinha. O elevador é um dos poucos lugares no mundo onde se estar sozinho é uma vantagem, o que é especialmente significativo para Flora, incapaz de lembrar da última vez em que se imaginou simultaneamente sozinha e feliz. O que fará quando o vir flertando com aquela mulher de voz magra e comportada que interceptou na manhã corrente com o cuidado da mão no bocal? Só agora, com um tempo imenso para pensar nos impulsos que a levaram até ali, Flora reflete que talvez tivesse sido melhor deixar passar, como das outras vezes.

Com os números crescendo em contagem regressiva, Flora retorna ao Passat branco em que via César cortar o subúrbio na juventude. Sentadas à frente de sua casa, as amigas comentavam unânimes que o motorista não valia muito, embora nenhuma tenha escapado de sua conversa fácil e de alguns amassos ao som conveniente de Cazuza. Só ela casou com ele. Mesmo após a traição flagrada nos tempos de noivado, em que toda a família se envolveu e perdeu-se a madrinha mais bonita. No quintal, aos fundos da casa dos pais, Flora acreditou catolicamente no juramento de César de que ele não aprontaria de novo. Hoje sustenta aos mais próximos que estava certa e não entende os motivos da impopularidade do marido entre os seus.

Sete. Os filhos vieram logo para engrossar o argumento e o amor entre eles. Se poderiam servir a ela como amuletos definitivos contra a solidão, rapidamente se transformaram em mais um motivo do quanto era bom que o marido continuasse por perto. Apesar de sua intransigência natural e alguma violência, ele sempre se mostrou um pai bastante presente na vida deles. Dos médicos ao longo da infância até o trabalho precoce do caçula, César era suficientemente firme e zeloso. Não trocava fraldas, claro, nem tinha intimidades com a mais velha, coisas para a mãe; contudo, é preciso louvá-lo igualmente pelo relativo sucesso das crianças. Se Flora pode sorrir diante do espelho pelo futuro dos filhos, em duas cabeças repousam os mesmos louros.

As lâmpadas e a caixa chegam mais perto do ápice. Surpreender uma traição é certamente mais difícil do que trair. Existe algo de irreversível nisso – coisa rara no mundo de Flora e de todos. Há, por outro lado, a recuperação do orgulho, mas ela nunca foi uma mulher especialmente orgulhosa: filha do meio, com um corpo de curvas acentuadas, bonita, sim, mas de uma beleza caseira, não de tirar do sério os olhos masculinos, mas de convidá-los para uma vida regrada, sem sobressaltos. Seu azar foi a existência de César, que parece não ver incompatibilidade entre os amores da rua e os de casa. Será que ele a ama assim como ama aos filhos? Que diabo a levara a sair correndo, do jeito que estava, atrás de uma discussão?

As portas se abrem e os olhos de Flora rapidamente encontram a figura do marido em meio a mesas redondas, toalhas de linho e ternos. De frente para ele, uma senhora, quinze ou vinte anos mais velha, escuta entediada a fala eloqüente de César. Ele não a traía! Ele não a traía! Contentíssima em se desfazer de uma série de atos que cogitava ainda há pouco, nem nota que os olhares dos outros começam a se acercar dela. Menos por sua beleza natural e seus cabelos cacheados, mais pela camiseta branca suja de molho, a calça jeans e os chinelos, o contraste visível que a deixava no patamar mais baixo do grande salão. Algo como se uma cozinheira, servente talvez, tivesse errado a porta de entrada e fosse um incômodo vivo a tantos negócios.

A senhora que janta com César, farta da sobremesa, flutua os olhos até encontrar a figura de Flora. Com a sinceridade comum a seus bens e idade, deixa que saia um riso fino, baixo, inocente, dos mesmos que tem até hoje ao rever O grande ditador. Surpreendido no meio da verbalização de um gráfico, seu futuro parceiro comercial se vira, deparando-se com a mulher alguns passos à frente do elevador fechado. Os olhares de muitos, o rosto pálido, o sobrepeso, o sorriso e o indicador dos andares (confundido com uma auréola) davam-lhe um ar de madona. Qual?

Pedindo licença à senhora, César se levanta e, sem dizer palavra, caminha para sua esposa enquanto retira o blazer escuro dos ombros. Num misto de carinho e vergonha, deposita-o sobre as costas da mulher e aperta o botão do elevador. De toda forma, precisa levá-la dali. Acarinhada pelas roupas do marido, Flora nem percebe o quanto as portas demoram a se abrir, os momentos novamente longos na descida, as luzes se acendendo em ordem contrária. Dali em diante, só haveria futuro. O passado é triste e seu excesso é que a fez desconfiar do marido. Um tanto a contragosto, seus dedos se enlaçam e há o diálogo silencioso entre cabelos e peito. Salvo suas diferenças evidentes, um hipotético observador no saguão diria que saiu do elevador um casal extremamente feliz.

May 21, 2010

Cada poema tem seu canto

E não é que recebo a graciosa mensagem de Dinorah dizendo que achou meu poema "H" de "Poemas lançados fora" e queria postá-lo em seu blog. Mas claro! Não é todo dia que o poema acha um canto justo que lhe guarde. O poema sempre foi teu, Dinorah, só esteve emprestado comigo. Se primeiro o vimos num livro que eu assinava, é que nossos olhos não costumam ver os poemas "em estado de dicionário", quando eles pairam sob a materialidade das coisas. Eu e ele, o poema, agradecemos muito que veio levá-lo para casa.

H

No princípio todas as palavras vinham com agá
antes.
Certo dia, por não se saberem úteis,
resolveram deixar a empresa.

Como sempre há fura-greves
e dedos-duros (embora estes não se encaixem na contenda,
o que em nada impede posarem de figurantes),
ficou o agá de hoje, de há, de halo,
de hipogrifo.

Dinorah, faceira que só ela,
hora tem, ora não tem
o pensado,
mas não dito.

Se bem que, com Dinorah,
o agá não é de princípio.

May 14, 2010

eco poético

Abri o blog hoje sem muito a dizer. Sono mais mestrado menos tempo é igual a pouca literatura, poderia ser uma síntese equivocada. Vou visitar, então, os blogs que gosto de ler e achei um poema bem interessante no blog do poeta Heyk Pimenta (http://heykpimenta.blogspot.com/) e resolvi tentar um eco aqui nestas paragens. Corram lá primeiro, se puderem, que é onde está o sentido mais espesso do poético, para depois conferirem meu eco-brincadeira. Muita arte a todos e obrigado ao poeta Pimenta!
p.s.: desculpem-me a obrigatoriedade de precisar clicar na imagem, mas é que o poema era longa e tem variações importantes nas margens dos versos.

May 10, 2010

O sonho límpido da língua

Participei há duas semanas de um programa de rádio (Dois Pontos) sobre meu novo livro, zero um, que será lançado no próximo mês, com lançamentos aqui em Porto Alegre e em Campinas (mas que já pode ser comprado pelo site da 7 Letras ou na Palavraria, em Porto Alegre). Das muitas perguntas de caráter mais ou menos amplo que respondi, uma ficou ecoando na minha cabeça e só agora eu consigo dar a resposta que queria ter dado no ar.

Assim me perguntou o professor Paulo Seben (aspas arrazoadas), notando que meus poemas variam muito sua forma gráfica no espaço da folha: "quais os critérios que você usa para alinhá-los no centro ou à esquerda?"

Na hora, eu respondi que se tratava de um recurso a mais, que eu tinha aprendido de um poeta jardineiro que eu conheci há tempos, e que depois tinha lido e estudado os concretistas, o que aumentou minha certeza na validade do recurso e na importância de entender o poema TAMBÉM como imagem.

Pois bem, a resposta que gostaria de ter dado é que a defesa de que o poema em si (por seu corpo) não pode constituir uma forma a ser significada vem da crença de que a poesia precisa ser veiculada pela linguagem material com o mínimo de perda possível, o que é claramente ingênuo. A linguagem, todos sabem, está longe de ser transparente e, com generosidade, pode ser considerada, no máximo, opaca.

Manter incólume a forma do poema parece dizer que o verdadeiro sentido segue detrás da linguagem e é ele que o leitor deve inferir em sua leitura. Errado! (Não gosto de ser tão dogmático, me desculpem) A linguagem, inclusive em seus caracteres físicos, constitui boa parte do sentido de um poema, aliás, de todos os sentidos oriundos da linguagem, na verdade. Se eu digo "mato", o leitor pensará na vegetação, no presente do verbo matar, nas formas figuradas como "matar o tempo", "matar aula" etc., mas também pensará nessa nasal interrompida pela oclusiva surda, como se dentro da palavra crescesse uma planta (olha o "t" aí de novo), como um arbusto no meio do mato. Pensará talvez que é uma palavra que demora a nascer, que passa um infinito ainda no meio dos lábios até sair e logo acaba. Creio que, por ser arbitrário, há muito de não arbitrário na escolha que as culturas deram para seus sígnos.

Não? Sim? Na dúvida, por achar que sou poeta e uso a língua como minha matéria de arte, preciso lidar com esse sentido oculto, que corre no nosso inconsciente linguístico para estacionar nalgum canto do verbo, para se atirar subitamente no abismo do nada. Nada? De alguma forma acho bonito esse jeito de matar o nada.

Apr 30, 2010

"aprender a viver"

Acho "viver" muito vasto e "aprender" muito polêmico para que a expressão "aprender a viver" tenha algum sentido. Ficam só mesmo o sentido retórico, para bares de companhia ruim, e o sentido financeiro, para os autores das centenas de livro sobre o tema. Por ambos não me interesso.

Digo, entretanto, que talvez isso de colecionar segundos tenha feito alguma coisa ao que tendo a chamar de eu (quando me falo). Se estou aprendendo, duvido, mudo por condição. Se viver é, assim, nessas mudanças, talvez esteja vivendo. Viver é inevitável!

Um dia pretendo me ver nos muitos tempos a que chamei de presente, pelo parapeito da memória, e talvez reconheça que mudei. Tomara! Talvez reconheça que não, que ainda sou a parte de dentro do útero recebendo a vingança de outros já nascidos. Que desde lá recebo o carinho dos pais e das vítimas de outros pais para que eu me esqueça do trauma e pense estar aprendendo. Que um dia me veja crescido, e reporduza.

Viver? Terei vivido. Mas sem aprender nada.

Apr 26, 2010

nova casa

Salve, meus caros!

Escrevo para informar de uma nova casa onde vou escrever a cada dia 27, portanto, amanhã começo. Maná Zinabre! Casa de uma galera sempre muito antenada, tanto com a necessidade de experimentar esteticamente o gênero a que se aplicam, quanto com importância social do artista em seu entorno. É uma honra poder dividir espaço com tanta alma! Vale aquela conferida, eu acho. Grande abraço!

p.s.: meu livro finalmente chegou! Gostei muito do resultado! Possíveis datas de lançamento: Campinas (08/06) e Porto Alegre (25/06). Todos sempre bem-vindos, sempre!

Apr 19, 2010

Entre prazeres e dores

Ainda no aguardo do livro, minha vida tem se atolado de muitos pequenos prazeres. Vê-los assim reunidos pelas horas de que disponho, até parece que viram aquilo que não propunham. As forças mais agradáveis, o amor inofensivo, sair pra viver à noite, a leitura de um bom livro, tudo são quinas e cacos. Poderia ser pior, prazeres de que não vivo. Concordo (a contragosto). Mas ontem fiquei zonzo pela primeira vez em muito por conta de tanto trabalho que talvez pagarão as contas, talvez irão pelo ralo. Com o perdão da imagem, quando as cidades se forem, encontrarão nos esgotos prazeres de muita gente e, talvez, algumas dores.

Apr 15, 2010

Chegando...



Hoje a editora em falou que meu novo livro acaba de partir do Rio de Janeiro e no começo da semana que vem o terei em mãos. Não sei se é motivo para festa - há uma dor estranha na alegria de se publicar um livro -, mas, pelo senso comum, comemoro postando mais um dos poemas que o compõem. Este, aliás, é bastante antigo, comecei-o há uns três anos. Palavra aqui, palavra ali, ele foi mudando até chegar a esta versão difinitiva (por enquanto).

Apr 13, 2010

Da tristeza poética

Achei hoje uma resposta que eu procurava há muito tempo! Lá estava eu lendo a Teoria do Romance e (aspas fajutas): "a epopeia é uma época em que a expectativa da ação e a ação coincidem, sem muito espaço para a filosofia, que versaria sobre a diferença entre a ação e o desejo". Cá na minha cabeça, do mesmo bazar das aspas, vale o mesmo pra poesia. Poeta feliz não escreve, vai ao shopping. Poeta feliz não reflete, puxa o brinde. E não estou dizendo ficar em casa, tomando alguma coisa, ouvindo coisa pior. Isso é a valorização da própria tristeza, o que consegue ser ainda mais deprimente da perspectiva dos outros (embora pro próprio "poeta" soe um tanto vazio). Digo sobre ter sempre sujeira nos óculos, De olhar para a tristeza pela face neutra ou triste. Da se compadecer dos outros, de sentir. Nessa tristeza se vive e dela se fazem poetas.

p.s.1: hoje conheci um anjo!

p.s.2: tem novidades e livros de presente lá no Trombone, apareçam!

Apr 9, 2010

Academia

Nossos universos, aqui costumeiros, não cósmicos, são povoados por milhares de coisas simples todos os dias. Meu auto-engano de ser artista sempre relegou o que não é arte a um segundo plano. Os anos, contudo, vêm trazendo de volta parte desses prazeres que eu antes tratava com despeito. Um deles certamente é a discussão acadêmica. Almocei com três mestres hoje e depois me reuni com mestrandos para discussões sobre Auerbach e Moretti. Mais do que nas leituras e interpretações, o verdadeiro prazer do exercício intelectual reside no desvendar do raciocício no momento da discussão. O insight. A mudança de rumo. As muitas hipóteses propostas e descartadas. Às vezes sobra um fiapo, que depois será seguido, com bibliografia e esforço, para torná-lo temporariamente evidente aos outros. Quem me dera todo meio acadêmico pelos quais já passei na vida fossem assim! Quem me dera meu atual meio acadêmico (aqui e em congressos em outros lugares) fosse assim todo o tempo!

Apr 8, 2010

Cuidado

Venho falar de força e de cuidado.

Sem querer voltar à égide da temperança, está cada vez mais claro para mim que exagerar na força, sobretudo os fortes, é extremamente perigoso. Acompanho alguns "formadores de opinião" no Twitter e é impressionante como as pessoas conseguem ser categóricas com facilidade. Não muito desastroso em opiniões mais óbvias, mas devastador no que tange a casos controversos. Há certa loucura em todas as cruzadas.

Vou falar por versos, que talvez fale melhor.


(poema do livro "zero um" que sai no fim deste mês pela 7 Letras)

Mar 27, 2010

Herbert de perto

Tive um bom final de semana de filmes. Aproveitei para ver Guerra ao Terror, que é bom filme, mas não melhor do que Bastardos Inglórios, para lhe tomar os prêmios. Vi Julia & Julie e realmente há pouco o que dizer de Meryl Streep. Mesmo em papéis extraídos de personagens exageradas na vida real, como a cozinheira, ela consegue elevar o patamar da arte dramática (há uma cena maravilhosa quando ela descobre que a irmã está grávida, vale conferir). Também vi Herbert de perto e é desse que consturo nosso papo neste espaço.

Não, não saí do filme achando que Herbert canta bem ou que é um dos melhores compositores da canção nacional. Salvo "Alagados", "Uma brasileira" e uma ou outra canção de amor, realmente o admiro mais como guitarrista do que como compositor ou intérprete. Me impressionou a força do homem. Claro que muitos sofrem acidentes ou perdem pessoas queridas e precisam enfrentar a vida de novo, com renovadas motivações. O que me impressiona é alguém que não quebre após descobrir que o tudo que sempre teve é quase efêmero se comparado à capacidade do acaso em despedaçar as coisas. "A vida é um sopro", como disse Niemeyer em outro documentário famoso.

Da infância de lugar em lugar com a família, das arruaças em Brasília (fora do alcance policial, pelo pai militar), ao sucesso dos Paralamas (de passagem, absolutamente justo porque Herbert é talentoso!), ele mesmo diz no filme que conseguiu tudo o que sempre quis na vida. Uma cena tocante é o Herbert depois do acidente olhando para o Herbert dizendo essa frase e comentando: "é, o mané aí não sabe do que está falando".

Ver o filme do Herbert me deu pressa. Pressa porque não sei quanto tempo ainda fico por aqui (um assalto na semana passada talvez tenha ajudado nessa sensação). Se existe algum propósito em eu escrever desde sempre, compor como um maluco (os músicos meus amigos fazem apostas, piadas, desafios sobre meu lance com composição), buscar a precisão da palavra, viver para a arte, eu quero cumprir o propósito enquanto ainda tenho tempo. Se não há propósito algum, preciso aproveitar ao máximo minhas condições (históricas, ideiológicas, discursivas) pra produzir mais e na melhor qualidade que conseguir, porque pode ser que isso mude a vida de alguém, ou um momento da vida de alguém, que já é um universo.

Já vi ou fique sabendo de pessoas que dançaram com minhas músicas, mudaram o que pensavam diante dos meus poemas, se divertiram com meus contos, me abraçaram e se emocionaram quando conversávamos... não há como medir isso, nem o valor nem o alcance. Embora nos outros instantes eu tenha dúvidas sobre tudo, nestes me sinto totalmente justificado, e quero fazer mais e mais, e ao máximo.

Mar 23, 2010

Notícias

Hoje venho só deixar uma notícia. A partir de amanhã, provavelmente, estarei participando da oficina proposta pela editora 8 Inverso, que buscou reunir prosadores de diferentes estilos e idades no intuito de aprimorar-lhes a escrita e, quem sabe, fechar contrato com alguns deles ao fim da série de exercícios.

Me alegrei porque é um dos primeiros reconhecimentos que tive como prosador. Um escritor, talvez Cláudio Willer, há muitos anos se interessou. Depois outro autor, Fischer, elogiou a desenvoltura em sua oficina de contos. Agora isso.

Embora me esforce muito (diferente do poema), gosto bastante de escrever contos ou o que quer que sejam. Espero aprender bastante na oficina e parabenizo muito os demais selecionados (e todos que participaram).

Grande abraço e arte!

Mar 18, 2010

Nerd...

Meus colegas de mestrado, muitos deles já amigos, costumam me chamar de nerd, com toda a justiça do mundo! O que não impede, contudo, que eu provoque de volta com algumas brincadeiras. Eis a última:

Soneto do Nerd

Oh Rui Barbosa, que me cede a voz,
vem afastar a multidão lá fora,
que sob as tochas vocifera há horas,
unindo as armas num perverso algoz.

Se em medo fujo à multidão feroz,
é por não ter-te ao lado, oh caro Górgias,
que me ensinastes tudo e justo agora
voltas à sombra do silêncio, a foz.

Seguem meu vulto com ardis olhares
ou altos muros minha fuga esconde?
Diz-me a verdade, mestre Jô Soares.

A dor das pernas faz sumir a fome...
O peito louco diminui os males...
Não trouxe o pôster da Fernanda Young!

Mar 17, 2010

Seguem as mudanças

E seguem as mudanças deste lado de cá do mundo. Vou tentando manter o ritmo das criações e leituras.

Quanto àquelas, meu próximo livro vai em breve para o prelo e o seguinte, à altura da página 30. Resolvi engrenar também um livro infantil que andava um tanto parado e vou finalmente reunir o Júlio César para um formato publicável.

Quanto a estas, estou lendo alguns livros a tacape, como o de Lima Barreto, ao passo que também me delicio com João do Rio. O mais é pra pesquisa, foco que deve me exigir boa parte do tempo este ano.

Enfim, ainda um pouco sem tempo para me dedicar completamente aos meus blogs, mas com alguma felicidade, posto que devo ter bem mais tempo e logo. Deixo, como fogos de artifício, os primeiros versos do meu possivelmente primeiro livro infantil.

Sempre força e arte!

BITOCA (texto: guto leite; argumento: paula sabagga & guto leite)

Nas épocas mais remotas,
se não me falha a memória,
houve uma certa Bitoca
de quem lhes conto esta história.

Filha de um rei camarada
e de uma rainha amiga,
os seus castigos na infância
eram conversas “compriiiiidas”.

Aos poucos virou mocinha,
mas quem buscou alegria
no rostinho da princesa,
acabou tendo tristeza.

Parece que se sentia,
entre todas as amigas,
a princesinha mais feia
e também a mais sozinha.

Não sei se para animá-la
ou se estava planejado,
deram uma grande festa
pelo seu aniversário.

A louca Fada dos Beijos,
prima da Fada dos Dentes,
foi uma das convidadas,
era amiga dos parentes.

Notando que a princesinha
se encontrava cabisbaixa,
para vê-la sorridente
lançou nela sua mágica.

(e daí segue...)

Mar 15, 2010

poemas

Ainda entre caixas, carretos, o leva-e-trás das coisas físicas e imediatas, posto outro poema da velha guarda. Feliz porque a Flávia indaga se devo mudar. Feliz porque a Val leu, compartilhou e amou, amor de poeta vale cem czares. Só mudo quando algo puxa para onde vou, quando não há mais casa. Sou mineiro, por isso "terra" é a minha terceira palavra. Espero com as novas linhas, que ainda demoram a sair, decepcionar pouco os olhos de linho que me lêem. Talvez eu tenha achado um jeito novo. Talvez seja o mesmo novo de tantos outros. Ainda há espaço, com tudo, para os poemas de sempre. O tempo máximo e o nulo protegem as boas palavras.

parto

não importa o quanto eu sofra
não importa o quanto eu vença
não importa o quanto eu corra
a dança que mostre o vento
os passos que eu mate ou morra

não importam meus amores
o tempo desta sentença
não importam minhas cores
aquilo que eu tome ou roube
a filha o cofre ou a crença

não importa o quanto eu sinta
as mágoas da diferença
ou sem sentir que eu inveje
pela fibra posta em prova
que eu deseje quem morrer

não importam minhas glórias
a toga de bacharel
não importam minhas falhas
não importam meus cristais
não importa o quanto eu saiba

quantas casas decimais
não importa se na prensa
eu quase perder a mão
os dentes que me restarem
para sorrir amarelo

não importa que eu enfeite
a ponte para o castelo
sobre um rio de judeus
não importa que eu livre
do campo a foice o martelo

as medalhas na parede
nos nomes o medalhão
não importa que eu calce
a alpercata e a sede
que eu sinta a fome do chão

não importa que assegure
a permanência dos bens
não importa que eu procrie
não importa que eu recrie
as formas do bem dizer

não importa o quanto eu grite
não importa quanto sangue
minha mãe possa perder
tudo será destruído
tudo será redimido

no instante em que eu nascer

Mar 10, 2010

um poema

Estou trabalhando num novo tipo de poética que contorna um pouco a particularidade do poema, por isso não tenho trazido tantos versos a este espaço. Vez ou outra, contudo, me aparecem alguns poemas antigos - antigos para mim, claro, novidade é necessidade da coisa, não da palavra - e é sempre bom voltar à velha forma de versar, conduzir o verbo por versos e estrofes. Segue um poema.(Como é bom poder dizer isso saindo do turbilhão que é para mim aquele outro jeito de escrever.)

ocaso

beijar-te os lábios
pele sempre nua
como luvas

saber que a palma
quando reclusa
é noturna

mas em vôo aberto
faz-te inquieta
ou segura

medir tuas pernas
pelos palmos
sol

saber o ângulo
exato
em que te acalmo

e o outro
que te nasce
por detrás da casa

para pôr-te depois
e além
saber-te as entradas

janelas e portas
falhas
entre as tábuas

onde guardas
a chave
do prazer

ter-te plena
para perder
muito

constantemente
até ver
de novo

teus lábios
aparentemente
ilesos

rebuscar
um jeito justo
de sofrer

Mar 3, 2010

Tempos de mudança

As ausências, aqui e no Trombone, estão bem justificadas. São tempos de mudança.

Antes fossem mudanças em larga escala - das quais continuamos necessitados -, mas estas são de pequeno espectro: família, casa, ano. Tudo bem, absolutas no plano individual, mesmo que pequenas para os outros.

Como somos o universo das nossas impressões, talvez as grandes mudanças individuais tenham algum revelo fora das gentes.

Trago dois portugueses para dizer por mim sobre estes tempos.

"O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio..."[...] (Álvaro de Campos)

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía." (Camões)

Feb 24, 2010

O Carnaval das Paródias

Já disse o Chico em entrevista: "comecei colocando outras letras nas canções que já existiam".

Antes de saber disso, eu já fazia um bom número de versões de poemas célebres pra treinar o pulso, as palavras que cabem, entender o ritmo dos poetas etc.
Como estou transcrevendo as minhas antigas agendas para o computador, achei uma dessas brincadeiras, dei uma afinada nos versos e envio como prova do que pode aparecer no carnaval das paródias. Muita poesia e humor a todos!

poema de sete fáceis

quando nasci um anjo gordo
desses que chamam diabo
disse vai carlos ser fuck na vida

as casas expiam os homens
que correm das mulheres
a tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos enxofres

o Bond passa cheio de pernas
pernas pra quem te quero
pra que tanta perna meu deus pergunta o continuísta
porém o estúdio
não pergunta nada

o homem atrás das suíças
é sério simples e sofre
quase não conversa
tem muitos vários amigos
o homem atrás dos óculos e das suíças

meu eu por que me abandonaste
se sabias que eu não era eu
se sabias que eu era um rato

terra terra vasta terra
se eu me chamasse inglaterra
seria uma rima e seria uma solução
terra terra vasta terra
mais farsa é a minha nação

eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
é eu não devia mesmo te dizer

Feb 22, 2010

nosso silêncio diário

Terminado o conto (que rapidamente me lembrou dos esforços que faço para escrever prosa), volto em algumas reflexões sobre o silêncio.

Com as férias universitárias, as muitas obrigações em casa e minha mãe em viagem, tenho ficado longos intervalos de tempo em silêncio. Alguns dias sempre, às vezes uma semana, quando não ligam por engano, ou quando não tenho que trocar breves palavras com as funcionárias do supermercado.

Nesses momentos, minha voz vacila como se fosse possível errar e desaprender. Costuma sair baixa, grave, para dentro, e não raro ouço um "ahn?" como resposta. Talvez seja assim sempre. Só não o percebemos porque ficamos pouco sem falar, temos urgência do verbo. A voz, toda vez que se exibe no universo audível, rompe camadas densas de silêncio ao custo da força inteira da alma.

A voz ordinária é ausente de alma, por isso não faz força.

Nesses dias de silêncio, na verdade, tendo a falar comigo. Não alto, refletindo - penso que não preciso falar fora para escutar dentro, esse diálogo eu travo silenciosamente -, mas para sentir o pulso dos meus versos, de todos os textos que escrevo, diariamente.

Imagina a falta de jeito da minha boca, acostumada nos últimos dias a só dizer poesia, quando é solicitada a responder a uma fala de máquina: "tem cartão bom clube?"

Não. A única resposta possível.

Feb 19, 2010

lentes de contato (parte 4/4)

Edgar pensa não haver relação alguma entre experimentar e trabalhar. Nunca trabalhou antes, talvez menino, da época que eu não o tinha sob as vistas. Por isso, ponderemos, torna-se muito difícil sua aventura laboriosa. A Esfinge, próxima de devorá-lo, pergunta se já experimentou antes. Claro que sim. Diversos e em muitos lugares. De celas a coberturas. Tudo do bom. “Trabalhei numa casa no Itaim, do doutor Noronha”. “Ah, que coincidência, do doutor Noronha, grande banqueiro. E muito justo”. “É”. “Quanto tempo trabalhou pra ele?”

Dez anos antes, em um apartamento na Lapa, uma mulher deixa seu marido. Ele, sentado a um metro e meio da televisão, finge prestar atenção à overdose sangüínea de um noticiário. Assalto à mão armada, formação de quadrilha, oito anos, seis presos, cinco escondem o rosto. Cenário. Ela sai por trás do sofá, pela porta, duas malas. Não bate, gira lentamente a chave. Dois cliques. Mis en Cène também com um único traidor. Ele chora pouco. Assim como no preso que não se esconde, nele não há sombra envergonhada de qualquer desvio. Vai ao quarto, o filho dorme. Encosta a porta, sem cliques. Encore de l’audace, em outro cômodo, beija o bebê que, agitado, livra-se da fantasmagoria. Da janela, perde-se em uma avenida onde carros dão movimento à noite quando passam. Anos.

“Dois?” “É, e alguns meses”. Ótimo. “Ótimo! O senhor poderia me dar licença alguns instantes, enquanto troco esses óculos por umas lentes de contato. Nunca me acostumo”. A outra metade retorna escada acima. “Bom sujeito, esse doutor. Humilde. Como se fosse nós, mesmo.” Busca uma chance, quem sabe? “Trabalho uns meses arrumo uma grana, vou pra Minas, ou pra Bahia...” Não quer mais casar. Filhos, pra quê? Ofício aprendido, se perde o mendigo. “Acho que três dá”. A gorda entra na sala e vence os degraus com um ar empregado.

Três minutos depois, desce. “Desculpe, senhor, mas o patrão sente-se indisposto e pede que o senhor retorne em uma semana para resolverem a questão da vaga. Tudo bem?” “Tudo”. Indisposto?! Ela acompanha Edgar até a porta da casa. “Acho que dá pra eu voltar na quinta ou na sexta, se o Moreira me pagar a comissão”. Despedem-se sem palavras, sem intimidade possível. Ela não se dá para cúmplice. “Se não pagar, há sempre a vendinha da Vila Mariana”. Finalmente, ao fundo, Edgar não ouve o som criminoso e frenético da foice, da enxada e das mãos do jovem Agenor, que trabalha competentemente naquela casa há três anos. Jamais passou pelas ideias de Rubens demiti-lo. Jamais.

FIM

Feb 17, 2010

lentes de contato (parte 3/4)

É interessante como, em doze horas, vai-se de Léon a Pollux. O homem naturalmente metropolitano que ontem à noite castigava uma indócil criatura marginal, cópula em crina, a fim de arrebatar-lhe seus breves momentos de candura; hoje está reduzido a um garoto quebradiço e acuado, mínimo de compostura, máximo de medo, de uma grandiosa violência em potencial. O dobro de passos retorna do alto. Metade afasta-se pela porta. “O senhor quer candidatar-se a nossa vaga de jardineiro? Que ótimo!” Pantufas amenizam o andar pesado de um homem robusto, da segunda juventude, cabelos lisos, rosto corado, grandes olhos azuis por detrás de óculos grossos à moda sessentista.

Esse homem de nome Rubens, por ser rico, admira levemente a pele engrossada de trabalho que protege o corpo incólume de Edgar. O de baixo também admira Rubens, por ser rico; mas, diferente do primeiro, rapidamente sublimaria qualquer dos seus dias por uma chance de se tornar outro. Melhor, de ter sido; já não há tanto o que fazer. “Tô muito precisado, doutor”. O papel de cada um se decidindo. “É, todos nós precisamos de algo, meu filho”. Cristalizados. “Onde que o senhor mora?” Cabe dizer que se olhamos bem e nos reconhecemos, e muitos poucos de nós o fazem, somos todos impreterivelmente de Shakespeare.

Pergunta que antes incomodava o corpo, aguçando as mulheres, podia ser dita nesta manhã sem grandes constrangimentos, espera. “Campo Belo, doutor”. “Acordou cedo, não? Uma hora e meia, duas horas daqui?” “É, por aí”. “Estrangeiro”, pensa. “Que merda, é sempre a mesma pergunta!”, pensa. Não era a primeira vez que ele pedia emprego, e nunca gostou. “Mas gosto de levantar cedo, patrão. A viagem é bem tranqüila”. Glória ao dinheiro e à mentira, colunas frágeis da nossa pretensão! “E a experiência? Onde o senhor trabalhava antes?”

(continua mais uma vez...)

Feb 15, 2010

lentes de contato (parte 2/4)

Quase no final de sua jornada, de volta ao momento do conto, ele diminui o passo, com medo de suar. Prefiro olhar como o jovem Borges. Se as ruas entediadas são as entranhas de um homem, o nosso é a faca, que a princípio rasgou violentamente e agora passeia viscosa saboreando a ocasião corriqueira e não vital de ser nobre, o gozo infinito de caber. Ele confere os bolsos. Do direito, desembainha letras, tipografias molhadas, solicitando a presença de um jardineiro. O papel diz-lhe vagamente o que deseja. Segue ambicioso e perambula. Visto que não há nada notável em perambular, saio, corto um tomate, salpico moderadamente de sal e retorno a tempo de encontrar Edgar, desarmado, às portas do número 119 da Rua Marquês Diderot de Ville. Nem se enxergasse bem, entenderia a exuberante ironia deste lugar.

Como o destino é meticuloso, se o desposamos! No instante em que o suburbano se aproxima, e uma garoa de camurça alegra alguns, decepciona outros e a maioria não nota; uma senhora gorda, de vestimenta bicolor e lógica, com um laço prudente na cintura, despede-se de duas crianças feias, mas ricas, e permanece do lado de fora de um Audi preto, com rodas de ligas metálicas, que se apressa e passa por Edgar, não por cima. Um happening. Os olhos vivos do menino, o mais novo, encontram o menino dentro do homem do lado de fora do carro. Acolhido, encolhido, amordaçado. Ambos! Há uma cumplicidade contrabandeada para fora deles que não cabe na história.

Es fangt nur an, kämpfen wir weiter. Edgar confere sua roupa, enquanto avança morosamente por entre as colunas do portal. A criada, acho que leio Silvana bordado em seu avental, retrocede, foge mesmo, da chuva, para debaixo da marquise. “Pelo anúncio, dona, de jardineiro”, atira o pretenso empregado, antes que ela chame ajuda. Não haveria socorro agora, se ele fosse bandido. O dono da casa é empreiteiro, um capitalista de coragem. Confia em poucos. Prefere a segurança de seu muro e de sua Beretta 92, 9mm, fundos, terceira gaveta destrancada da esquerda, escrivaninha do escritório. Pode ser desapego, pouco o que perder. “Limpe os pés e entre, senhor, que já vou chamar o dono da casa”. Silvana se vira e ouvimos o barulho de seus sapatos subindo a escada.

(continua mais duas vezes...)

Feb 13, 2010

lentes de contato (parte 1/4)

Descobri uma forma de voltar a mexer nos meus contos, que não são muitos. Pelos próximos dias, vou postar por aqui um conto, de parte em parte. Espero não estar abusando deste espaço.

Começo pelo primeiro conto que escrevi (metódico, eu?), se não me engano, em 2005. Todos os comentários são obviamente bem-vindos. Prosa nunca, nem de longe, foi meu forte.

lentes de contato (parte 1)

São oito em ponto no relógio do Paço. Longe dali, Edgar, negro socialmente, vence de forma viril a distância que o separa do centro. Um olhar periférico acusa a herança clássica e desgastada das vizinhanças, mas ele não sabe disso. Sabe das construções quadradas, das grades em grande número, da pouca ferrugem, dos cães raivosos, mas alimentados, das guaritas; tudo muito disciplinado e regular. Paisagem sem susto. Ele não gosta. Direta e rudemente não gosta. Arrisco atribuir-lhe associações passadas, sem sua permissão, com base nos preconceitos que sempre me serviram bem; mas não divaguemos enquanto nosso protagonista sobe a rua tão disperso em reflexões de proletário. É preciso contá-las.

Hoje acordou ainda escuro. “Porque gosto”, mente consigo. Levanta-se espalhafatoso, de ruído intencional. A doce Maria, no meio dos lençóis, diluída, ronca levemente o descanso merecido. Abre os olhos um momento, dopada, xinga baixo, ele não ouve, tomba o corpo pendularmente para o outro lado, e volta a roncar para sair do conto. Edgar entra no banho, imagina-o quente. Frio. “Bom pra acordar”, mente de novo. Demora-se até quando dura o sabão e despede-se da paz de se ter água massageando a nuca sem ressentimentos. Com a toalha na cintura, ajeita seu cabelo marrom e baixo, quase uma símile de si mesmo. Queria ser mais forte, “um cavalo”, como dizem as moças que moram por lá, mas é gordo, pensa que é verme. Queria gostar de se ver nu.

São vinte minutos de balaio, a Kombi velha que sempre leva os homens bem cedo até o metrô. Maus cheiros, medo, perfumaria nacional e azedume, barulhos, insegurança. Nunca aceitou a conversa de ser pobre. “E quem gosta?” Depois do vime, mais duas horas de chacoalha até a estação mais próxima dos Jardins. Edgar já está cansado. A essa altura, poderia pensar, “por que o metrô fica a tantas quadras dos Jardins?”. Mas ele não pensa. Sente, no corpo, mas não pensa.

(continua...)

Feb 10, 2010

As possibilidades da vanguarda

Das poucas discordâncias teóricas que tenho com meu orientador - e é bom que existam, pois não discordar em nada de alguém que se admira é ainda pior do que discordar de tudo -, a questão da vanguarda certamente ganha um lugar central.

Concordo com ele e também tenho poucas dúvidas de que a vanguarda é, no todo ou em parte, um reflexo da exigência humana pelo novo, especialmente acirrada nestes tempos de tudo-mercadoria. Concordo ainda no que tange ao perigoso quadro de valores que uma cultura de vanguarda implanta, o do novo a qualquer custo, que acaba gerando patéticos objetos de arte até alguém vire, possivelmente uma criança, e diga "mas, peraí, isso aí é só uma lata de lixo" ou "papai, por que ele usou essa rima?". Não tenho filhos, por isso são todos poetas.

Discordo, entretanto, quanto à impossibilidade de existência contemporânea das vanguardas. Acredito piamente (talvez seja esse o advérbio exato) que ainda há espaço para elas e que o problema de sua atual inexistência, ou pior, sua proliferação frágil (que acaba dando no mesmo) é mais profundo do que sonha nossa vã prospecção.

Numa geração iludida com o oásis do conhecimento infinito e virtual, e, na prática, com pouquíssimo tempo para pesquisa estética séria, a busca pessoal e intuitiva por novas disposições formais para a própria obra acaba cedendo a resoluções fáceis, extremamente provisórias e apressadas. Problema amplificado justamente pela exposição democrática (que acho ótima) a diluir bons artistas na multidão de auto-enganos.

Não sei se vou chegar a ver melhorias nesse quadro (o que ironicamente me faz concordar com meu orientador, já que os pontos só valem mesmo enquanto estou vivo, não é?), mas reafirmo minha discordância, na certeza de que o comum (e saudável) é ser cético quanto à vanguarda. Sempre foi assim. Sempre se desconfiou da possibilidade de rearranjo formal das coisas, até surgir um artista capaz de fazê-lo com maestria.

Isto é, pode também não ser mais possível e se tornar a última e definitiva derrota de nossa cultura.

Feb 8, 2010

a Gabriel Gramasco

Nos meus tempos de especialização, bolei uma hipótese engraçada sobre a noção aristotélica de verossimilhança.

(Perdoem-me o uso do conceito, mas foi inescapável. Aos não iniciados, trata-se da ideia de que numa narração de qualquer tipo é necessário que cada parte esteja refletida no todo e o todo esteja em cada parte. Trocando em miúdos, uma narração verossímil é aquela em que nada falte ou sobre. Simples assim.)

Voltando à hipótese, qual era? Esta: a verossimilhança é a forma narrativa que encontramos para nos afastar da morte, que é, por definição, avessa a toda narrativa.

Para a morte não importa se está no começo da história, no meio, se vai beijar o mocinho, descobrir a tramoia, desmascarar o vilão etc., ela chega a qualquer momento e encerra a narrativa, uma espécie de Thanatos ex-machina. A morte tampouco é narrada, salvo em histórias religiosas ou de cunho satírico (como o nosso célebre Brás).

Ao nos depararmos com uma narrativa verossímil (abrindo um romance, assistindo a um bom filme...), temos a ilusão de que também no mundo as coisas se dão coerentemente, o que, com efeito, não ocorre. A morte não espera que nossa vida faça sentido pleno antes de se desfazer de nós.

p.s.1: ontem descobri que Umberto Eco, sem falar de Aristóteles, está comigo nesta hipótese maluca.
p.s.2: ontem descobri que um conhecido meu muito gentil morreu num acidente de moto.

Feb 4, 2010

O gênio e o idiota

Sempre me condenam quando digo que o tempo não tem feito bem para os homens.

Normalmente contra-argumentam de duas formas. Em primeiro lugar, porque há boas razões para achar que hoje vivemos em um tempo melhor do que nunca. Em segundo, porque parece não haver possibilidade de medir tempos ou homens melhores uns do que os outros.

Tentando não ser chato, vou esmiuçar brevemente o argumento.

A multidão iguala o gênio e o idiota. Há cem anos, talvez menos, vivemos na era das multidões, de onde é difícil, sendo gênio ou idiota, dizer "eu" sem numerosa oposição.

Embora já tenha havido algumas catástrofes por gênios execráveis (catástrofe é eufemismo), teoricamente é mais fácil cercear um único gênio do que uma multidão de idiotas. Sobretudo a partir do ponto em que a multidão de idiotas passou a legitimar-se discursivamente.

Como ser gênio exige mais sacrifício do que ser idiota, o número de idiotas tem aumentado e estes só se sentem seguros em meio às multidões.

Percebem aonde não quero chegar?

Absolutamente todos os dias eu me enraiveço com algum idiota ilustre na televisão.

p.s.: por motivos óbvios, dispenso citar a multidão de gênios que já comentaram algo parecido.

Feb 1, 2010

novo livro

Tá chegando um novo livro por aí, zero um, em abril, pela 7 Letras. Nesta semana estive revisando o original, daí me veio aquela vontade de postar um dos poemas aqui.

Como me disse um leitor em que confio muito, e repasso as impressões pra tentar escapar de cabotinimso, em parte são os mesmo procedimento do livro anterior (poemas lançados fora), mas agora mais apurados e, aparentemente, com menos erros. Espero que ele esteja certo!

Chega de defender o réu. Em efeito, às avessas. Todo livro de poemas é culpado até que prove o contrário, ou do contrário (?). Segue um dos poemas, culpabilíssimo!

mancebo

quando me prendem o braço
nos arrabaldes de minas

quando perguntam sempre
da saúde dos menores
mulheres são fotos ovais
de generais na parede

quando a varanda se enche
de tios fumando truco
e gritos chamam os homens
pelas travessas quentes

quando as saias dão cor
ao assoalho de tacos
evangélicas e retas
toldos para os olhos baixos

canso quando conferem
nos ombros nos antebraços
quando disputam comigo
espaços que são das coisas
canso de não ser coisa

os andares de madeira
os moldes preservados
os tabacos de azulejo
o cansaço

talvez haja certo cansaço
reservado a cada coisa

Jan 30, 2010

Tudo bem? Então tá!

Posso estar errado - sempre posso, normalmente estou -, mas nossa auto-imagem como sociedade brasileira contemporânea mudou um bocado dos anos noventa para cá, não mudou?

Lembra como nos preocupávamos com certa divisão desigual da renda? Com o aumento da população carcerária? Com a educação precária da população? Com a baixa qualidade de parte do ensino no Brasil? Com o domínio do mercado por um número cada vez menor de grandes corporações?

Poderia se pensar - sempre se pode, normalmente - que se trata de uma melhora nesta situação. Em parte, é correto pensar assim. Realmente houve uma melhora. A questão é que houve uma melhora pra gente, pra gente e mais uns cinco países. Ganhamos a corrida continental contra a Argentina e ainda não entendemos bem por que nossos vizinhos de fronteira nos chamam de "os Estados Unidos da América do Sul".

Que me desculpem os otimistas, mas pesquisas globais indicam que as mesmas tendências dos "90's" continuam e talvez tenham se agravado (até a crise de 2009, pelo menos). Então, onde está o resto dessa conta? Sabe quando pegamos alguns números, subtraímos, subtraímos, e a conta não bate?

O que fizemos, de fato, foi passar o abacaxi adiante. Melhor, trocamos o abacaxi pelo petróleo, o Zé Carioca pelo estrangeiro arrivista, a Carmen Miranda pela Wanessa Camargo. Pra vocês tudo bem? Então tá!

Jan 25, 2010

A borboleta e o sábio

Há uma anedota bastante graciosa de um sábio que dormiu e sonhou ser uma borboleta. Ao acordar, não sabia se era um sábio sonhando ser uma borboleta ou uma borboleta sonhando ser um sábio.

Normalmente se analisa essa história pelo viés da impossibilidade de termos certeza daquilo que é real (via, talvez, Descartes), visto que os sonhos (ou a vida) têm essa desfaçatez de parecerem com sua contraparte. Proponho que a olhemos também pela mecânica dos desejos e, para isso, evoco a presença ilustre do nosso melhor poeta para ajudar a conversa (sim, Fernando Pessoa é o melhor poeta brasileiro, como costuma dizer um professor).

"Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato. (Fernando Pessoa)

No impasse do sábio reside a lógica mais do que humana de deixar os desejos sempre um pouco adiante. Por isso, mas não só por isso, importa pouco qual das alternativas é real. Os sonhos são o excesso de desejos que nossa vigília não abarca, mesmo os medos, que são sonhos do avesso.

Desde pequeno, acostumei-me a dormir depois de invertar-me histórias intrincadas. Por falta de criatividade - minto, por causas mais graves do que essa -, venho tendo dificuldade em enganar-me com sonhos, árido de desejos e medos. Tenho dormido pouco, portanto, sem poder sonhar-me algo para duvidar de quem sou.

Jan 23, 2010

Ensaio pouco inspirado

Não acredito na inspiração dos românticos. Aquela que assalta o artista, vinda de "algures", e traz uma obra de arte pronta. Também não acredito na inspiração dos (digamos assim, pela simetria) clássicos, que é fruto exclusivo de trabalho, dedicação, esmero, aperfeiçoamento. Se eu fosse um pouco mais niilista, diria que não existe inspiração e acabaria a conversa por aqui.

No mundo ideal das boas polêmicas e da opinião ainda levada em conta, choveriam dezenas de e-mails de pessoas testemunhando como já foram tomadas de inspiração - até mesmo alguns amigos testemunhando como já me viram inspirado - ou citando exemplos de pessoas que, depois de muito trabalharem, acharam formas convincentes para realizar suas artes. Pois bem, como é o que a lógica me deixa, acredito na conjunção das duas.

Só alguém muito obtuso, ou de pouco talento, negaria a inspiração romântica. O momento em que você se vê tomado por uma rotação diferente dos sentidos e em poucos minutos é capaz de compor um poema, uma canção, uma máxima etc. de grande coerência interna e poucos erros, considerando o tempo que demorou para fazer. Seria epifania, um acesso breve ao inconsciente coletivo, um entendimento limitado do sentido completo do mundo, das pessoas ou das palavras, dificilmente repetido em estado de não inspiração. Não sei, algo assim, dificilmente verbalizável mesmo. Também não sei como funciona a inspiração em obras de maior fôlego: romances, peças, epopeias e cia, embora conheça romances e peças realmente inspirados.

Igualmente só o mesmo obtuso, ou outro, afirmaria de cara limpa que a prática não ajuda tudo isso. Depois de algumas centenas de poemas, tenho muito mais segurança sobre o pulso do verso, a ideia que não vai dar em nada, a palavra que dificilmente se acerta, o sintagma non grata. E olha que ainda me sinto bastante neófito na arte poética! É evidente que a prática, se não leva à perfeição, afasta da precariedade estética, ao menos. Conheço, entretanto, algumas dúzias de escritores muito esforçados e de pouca inspiração, que vão aos poucos sendo cobertos pela areia do tempo.

Inspiração, para este ensaísta pouco inspirado, é uma tradução particular para "vontade"! Não qualquer vontade, mas A vontade primária do sujeito. Todos, nesta perspectiva, lidariam com algum grau de inspiração (uns mais, outros menos), mas só alguns viveriam a felicidade de sentir que suas vontades são adequadas ao tempo em que vivem, enquanto que a maioria, postumamente, é que costuma ser premiada.

No frigir dos ovos, meu amigo, trabalhe, estude, pratique aquilo que tem vontade! Caso se inspire, certamente haverá uma chance maior de estar criando algo interessante e, por conseguinte, fazer parte da loteria do reconhecimento. Ainda tem o dinheiro, o poder, a beleza física, o acaso e outros tantos fatores que viciam essa loteria, certo? Certíssimo! Mas pensar nisso, sobretudo atualmente, é coisa que não recomendo, com o risco de simplesmente abdicar da vontade e conseguir dinheiro fácil em alguma ocupação segura.

Nossa época precisa de pessoas inspiradas! (uma frase perigosamente rebaixada a lugar comum)

Jan 20, 2010

Entre antes e depois

Estou lendo Bauman, um dos principais teóricos do que se tem convencionado chamar de pós-modernidade. Leio, confesso, menos para saber o que é do que para entender melhor aquilo que sinto. Também leio, com menor peso, para tentar explicar com propriedade do que se trata àqueles que acham que pós-modernismo é ver TV e ouvir música ao mesmo tempo, e não são poucos.

Cá entre nós, sou um estranho. Segundo o teórico, aquele que não se encaixa no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo (em teoria, basta não caber num dos mapas, mas tenho o pacote completo). Sou um leitor obsessivo e as aulas sempre me pareceram necessárias somente nos primeiros quinze minutos. Acredito que palavras e assinaturas se equivalem. Detesto mentiras, mesmo as úteis. Sou o tipo do cara que diz que não gosta do presente, caso perguntado. Se, com esforço, consigo mentir e não sou pego pela falta de prática, passo dias me remoendo se deveria ou não ter sido sincero. Tendo a discordar de um número cada vez maior de pessoas quanto à qualidade de certas obras de arte, o que tem me graduado em "chatice". Claro, não nasci estranho. Também, claro, tenho me especializado.

Sinto, como dito no livro, que a sociedade abriga a minha estranheza, em vez de assimilar-me ou aniquilar-me, como soava acontecer no século passado e nos anteriores. E isso é bom. Sem querer reclamar de barriga cheia, só gostaria que isso fosse feito de maneira mais efetiva, que não fizesse parte do engodo. Queria que os estranhos também tivessem acesso ao poder e, por consequência, fossem capazes de mudar algumas coisas permanentemente.

Vivo, por fim, e com força, a impossibilidade de construir-me plenamente numa era em que o comum é ser incerto. Nunca tudo foi tão possível para um número representativo de pessoas! Nunca foi tudo tão temporário! Se Baudelaire estava certo, e um poeta deva traduzir na arte o seu tempo, nossos dias são capazes de em vinte anos, talvez menos, tornar obsoleto um bom poeta. Quantos planos as pessoas são capazes de fazer atualmente? O bom é não fazer planos? Por que você acredita nisso? Pensou sozinho? Bom, bom, continue assim.

Pelos meus cálculos, a última vez que costumávamos viver com tamanha incerteza data dos tempos anteriores à existência vigorosa de civilização. Como nossas necessidades eram mais imediatas (comer, transar etc.), lá se encontravam nossos desejos. Hoje precisamos de mais e nossas vontades migraram, igualando nossas possibilidades de frustração. A existência da sociedade entre antes e agora faz absolutamente toda a diferença e torna essa sensação bastante inédita em nossas concepções de nós mesmos.

Como alguns de meus átomos devem ter dito a um eventual filhote naqueles tempos: o importante agora é sobreviver. Estranhos, repito, o importante agora é sobreviver!

Jan 18, 2010

Casa velha Casa nova

Aos poucos vou arrumando a casa.

Embora eu não acredite realmente em qualquer sentido cósmico com a virada de ano, achei por bem recomeçar aqui assim que voltasse de férias. Não como a casa velha (lembro que assim chamávamos a grande casa da minha infância, dividida com a avó e as tias), feita para mostrar novos poemas, canções, peças, quadrinhos etc; mas renovada, para ser leve, quase sem teto (como se não fossem pesadas as estrelas!). Deixo a gravidade para os livros, os filmes, o cd's e outros meios. Com a casa velha aprendi a ser paciente e a mostrar-me menos.

A casa nova me servirá para devaneios. Será a fachada do verso. Aquilo que o poema parece ser, mas não é. Aquilo que todos entendem à primeira leitura; única, para os que desistem. Não que seja mentira, só não é tudo. A casa nova me servirá como parede entre mim e o mundo, que começa depois dela.

Os novos cômodos deste ano: um livro novo de versos para abril, um cd para julho, meu primeiro livro infantil para o fim do ano (todos eles com parceiros e amigos).

Tenho feito tanto, e de maneira tão nova! Espero trazer para esta casa em breve tudo isso, mas levianamente. Como se todo o universo não morasse num único verso acertado. Como se tudo pudesse ser feito ou não ser.

Aos poucos vou desarrumando a casa.