Feb 17, 2008

Mais uma prova da falta (vale o cartoon)


Flat

“E canterò di quel secondo regno
dove l’umano spirito si purga
e di salire al ciel diventa degno.”


Lá está Abulhasan, deitado, com um saliente conforto sob a nuca (jamais precisara de algo, hoje menos), no centro de um cômodo pequeno “mas é dele”. De certo o que basta, basta a alguém, essencialmente; far-se-ia, então, daquele flat de incríveis diagonais, um absurdo da incomodidade dos nossos tempos. Seria o caso de tantos, não do nosso homem. Cabisbaixo a rigor, amparado pela calma de não ter pressa alguma, de trazer os olhos fechados, de sorrir discretamente de um sonho que nunca saberemos, nem nos soaria grato saber, qual é. “Aranha!” Aperta-se o quarto com a presença do outro, esta no lugar em que três planos se encontram: o de continuar limpo, sozinho e prostrado. “Ainda o despudor de construir casa num canto do sossego alheio. Valha-me Deus tal desrespeito!” Quase imperceptível, o fruto do tapa despenca, sangue verde, parede abaixo. Nem dá tempo de Abu fechar os olhos. “Outra!” Ele deveria saber que, na vida de todas as espécies, companhia é necessidade fundamental. Matou a segunda. “Ora essa, mais duas, namoradas, no canto inferior direito. Morram, danadas, se não pela invasão, por este amor-inseto que presencio!” Mais duas ao céu das aranhas, se tiveram a indecência de inventá-lo. Eis, talvez a única com alguma coragem dentre todas, martiresca, tecendo perpendicular e heróica ao rosto impaciente, aí tragada engenhosa pelo protagonista, que tosse. Aqui, acolá, mais uma, muitas, em tudo, milhares e, cada vez menor, o homem transpira ódio e posse de seu cubículo ingênuo e higiênico. Bate muitas, muitas, muitas, muitas vezes (1) a fim de desfazê-las todas. Ofega, pois ofegar é verbo; cansa, que o cansaço é natural. E após o último vivente, Abulhasan olha em volta, retorna à disposição inicial e morre de novo.

(1) Do lado de fora, um funcionário exemplar, com sonhos de um dia ter ao menos tal flat para descanso, amedronta-se com tamanho barulho e sai de perto.

Feb 10, 2008

As questões de sempre

Pode parecer uma coisa estúpida, mas acredito que algumas decisões estão sempre em voga na vida das pessoas. Não algumas para todas, mas algumas para alguns, particularíssimas. Eu, por exemplo, sempre preciso tomar novamente a decisão de escrever da forma como é preciso que eu escreva e não da forma como acho que vou ser apreciado. Escrever dessa última, é não passar da repetição de modelos obsoletos de fazer arte! E não que, neste caso, o termo obsoleto seja ruim, já que insiro nessa categoria Shakespeare, Pessoa, Rimbaud, Dante, Homero e outros tantos dos maiores gênios que a humanidade desproduziu. Mas acredito que a verdadeira qualidade que os traduziu como artistas foi a forma como significaram o universal e o particular de suas épocas, não copiando os modelos que os antecederam e deixando modelos para que não sejam copiados depois deles.

Se tenho ou não talento, só pode ser decidido historicamente, termo totalmente avesso a mim, aos meus e ainda mais às linhas deste blog. A única ação válida que resta a este pobre aspirante a poeta é escrever, naturalmente, copiosamente, ingratamente. Escrever, porque os vermes não comem menos este ou aquele homem.

Segue o que me resta:

Dois por um

eu não ia dizer nada
e “você viu que vão tirar de circulação as notas de um real?
uma violência"

Feb 6, 2008

O eco das filmagens

Agora com as burocracias no acerto, trago uma letrinha de um samba que a Abra grava na próxima quarta para a trilha de "Revés", filme de uma grande amiga. Como sempre, espero a severa crítica dos porventurosos freqüentadores. Ainda, para que não seja postagem perdida, deixo a genialidade de Wilde, que a custo findei nesses últimos dias o retrato: "Porque, excetuada a morte, podemos sobreviver a qualquer coisa hoje em dia". A todos sua parte do gênio!

Revés

Guto Leite, Gui Alves & Daniel Coelho

Queria ter se dado bem,
Não deu.
Queria ter um pequinez,
Morreu.
Ficou um mês em cana certa vez
Porque mentiu,
Viveu dois anos fora do Brasil.

Queria ter falado inglês,
Não deu.
Queria ter amado alguém,
Morreu.
Nunca criou juízo.
Nunca tirou um dez.
A sua vida toda foi
Revés, revés, revés.

Tentou bancar o tipo mau,
Não deu.
“Um filho só é o ideal...”
Nasceu!
Ficou um mês de cama,
Recebeu a extrema-unção,
Levou o hospital na prestação.

Tentou Artes na Federal,
Não deu.
No amor pequeno e trivial
Nasceu!
Teve o enterro cheio e hoje, aos pés de Deus,
Joga conversa fora, mesmo ateu.

Cheio da Terra, estreita hoje aos pés de Deus,
Muita conversa fora, mesmo ateu.