Nov 28, 2007

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Hoje teria algumas coisas a dizer sobre a finalização de um roteiro, sobre o "Câmera clara" (Barthes), sobre poesia, sobre rever grandes pessoas (amigos são contingências), sobre Molière, sobre a composição de uma balada... mas um fato inesperadamente ruim com uma amiga me fez lembrar da inevitabilidade do silêncio. Não que o mundo saia apressado do silêncio, mas corre para ele inefavelmente. Diante da força poética do fato, os versos me parecem tão dispensáveis quanto versos.

p.s.: agradeço muito às visitas e comentários, sempre forças de oposição aos meus silêncios.

Nov 25, 2007

Experimentação

Nessa semana, acabei de ler "A estrutura da lírica moderna" (Friedrich) e não posso me esquivar da grande influência que este livro e os poemas por ele indicados me causaram. Mesmo que anacrônica e, obviamente ultrapassada, a proposta do simbolismo (europeu, principalmente) é vasta e desafiadora. Como resistir à tentação de levar a linguagem à última rocha do penhasco? Como saber equilibrar o corpo do verso neste espaço ínfimo da vertigem? Como disse a uma professora, "ando com a pulga de que o concretismo é uma espécie de simbolismo às últimas conseqüências". Pode ter sido, mas é preciso fazer de novo. E de novo. E de novo. Como o limite se expande, sobre lírica delongando o mundo, encontrar a região limítrofe é sempre uma empreitada válida. Seguem alguns versos de experimento, lembrando que o blog não me deixa reproduzir as ondulações que prentendo na margem esquerda dos versos. Agradeço também imensamente as visitas recentes e os comentários. Tudo muito bem-vindo.

A morte dentro do lago

um barco letárgico flutua no lago da noite
nele foi plantado
um corpo

tudo indica ter sido suicídio não assassinato

o número exagerado das pequenas tábuas suspensas
a indiferença costumeira dos peixes e dos insetos
o pó superficial que deita a casa de máquinas
o verde conspurcado e lento o mexerico das algas

nada é indício

o vento amarelado traz sensações de incômodo
quando dobra
há um movimento suspeito no corpo
do barco

Nov 21, 2007

É preciso causar polêmica

Ontem participei de uma matéria sobre poesia contemporânea (quem quiser, edição de sábado do JT)e, tirando a parte que matéria jornalística sobre poesia ser algo essencialmente estranho, conheci o que alguns escritores jovens andam fazendo com seus versos. Salvo algumas diferenças de perspectiva, a impossibilidade de se configurar movimentos literários atualmente e a diluição do sujeito moderno, temas em que sempre apostei, pareceram uma espécie de pensamento constante. Dentre os recém conhecidos, destaco uma jovem senhorita carioca que me lembrou, em suas falas ríspidas, algo que já tinha, razoavelmente, esquecido: é preciso causar polêmica! Não só nas canções e shows, como tenho feito. A poesia é preponderantemente um veículo apropriado para a controvérsia. Então, trago um poema antigo esperando causar a velha rusga e revolta.

Poema antigo

Morava, um casal de virgens donzelas,
Cabelos em duplos corpos de esfinge,
No grande castelo. “Todos, ouvi!” Eis
A dor imensa, pois vai-se uma delas.

Amiga longe. “Morte à sentinela!”
É hoje senhora, a criança virgem.
Vestido manchado. “Todos, ouvi!” Eis
Tensão (e calma...), pois volta a donzela.

Canto dos olhos da velha? Remelas.
A labareda eterna não se extingue
E toda a virgindade se enovela.

(São cambalhotas no Lago dos Cisnes?)
A falta de viço a degolé a lenda.
(Quer algo mais antigo do que virgens?)

Nov 19, 2007

Um poema

Posto hoje umas das minhas poesias mais recentes. Excessão porque provavelmente trago-a já em estado cristalizado, ou ao menos bem próxima disso, em vez dos rascunhos que vergonhosamente costumo trazer ao blog. Deixo também a gratidão àqueles que têm sido excessivamente generosos com o poema.

Notícias da Espanha

houve o dia em que todos os lagos da Espanha
congelaram
as praias foram para longe
tirando a Espanha dos lados
mais bonitos
mesmo o amor de sotaque
tornou-se impossível nos montes
de pedra
que havia na Espanha

ao perceberem como se entendiam
todos os seres
vivos da Espanha !precipitem!
no abismo cálido que se formara
entre o gelo indefinido
e a terra
se viram pó de água
aqueles que optaram
por ficar na Espanha

os objetos como que despertados
amaram-se os objetos
como que despertados amaram-se
os objetos amaram-se
e não houve
mais qualquer mal intacto
ou sentimento
que seja delírio de melhora
a Espanha apodreceu

Nov 17, 2007

Fragmento

Em vez de trazer hoje qualquer reflexão, poema, trecho, música, fragmento, opto por trazer fragmentos de grandes autores de poesia moderna (dito moderno o que vem depois de Eliot e Baudelaire). Mais do que simplesmente o cansaço advindo de outro dia intenso de produção, pauto minha escolha na certeza de que o homem contemporâneo não pode ser nada além de fragmento.

"Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir sont amant"
("Zone", Apollinaire, 1913)

"Ses rêves en pleine lumière
Font s'évaporer les soleils,
Me font rire, pleurer, rire,
Parler sans avoir rien à dire."
("L'amourese", Éluard, 1924)

"La luna branca quita al mar
el mar, y le da el mar. Con su belleza,
en un tranquilo y puro vencimiento,
hace que la verdad ya no lo sea,
y que sea verdad eterna y sola
lo que no lo era."
("La luna blanca", Jiménez, 1916)

"El otoño vendrá con caracolas
uva de niebla y montes agrupados."
("Alma ausente", Lorca, 1935)

Os demais fragmentos cortam em outra hora...

Nov 16, 2007

Intensamente

Sou partidário do intensamente! Tão importante este advérbio, que deveria ser nome, auto-sustentável. Absolutamente independente de toda e qualquer obrigatoriedade de companhia. Sentir, amar, ser, morrer, rir: todos os verbos deveriam prestar-lhe reverência. Talvez criar seja a exceção à regra, que a comprova. Ontem escrevi cerca de quinze páginas entre cinema, prosa, poesia... Viver, morrer, criar intensamente!

Dois sextetos perfilados

nas cores todas claras
interiores
diluem-se as outras saias
na forma de sombra rápida
que o dia amealha
destroçam-se os amores

no sangue da memória
a ausente
o visco dos instantes
as parvas se entreolham
todo o restante é opaco
infelizmente

Nov 15, 2007

Trilha sonora

Como da última vez tivemos alguns problemas com a liberação dos direitos autorais para trilha sonora (sobre essa discussão recomendo o site do Creative Commons), dessa vez me propus a compor eu mesmo a trilha. É um processo muito diferente do usual, mas tem seus atrativos estéticos e sua dificuldade desafiadora. Sem mais delongas, eis o sambinha...

Revés
Letra e melodia: Guto Leite

Queria ter se dado bem,
não deu.
Queria ter um pequinez,
morreu.
Ficou um mês em cana certa vez
porque mentiu.
Viveu dois anos
fora do Brasil.

Queria ter falado inglês,
não deu.
Queria ter amado alguém,
morreu.
Nunca criou juízo.
Nunca tirou um dez.
A sua vida toda foi
revés, revés, revés...

Tentou bancar o tipo mau,
não deu.
"Um filho só é o ideal".
Nasceu!
Ficou um mês de cama,
recebeu a extrema-unção.
Levou o hospital
na prestação.

Prestou Artes na Federal,
não deu.
No amor pequeno e trivial,
nasceu.
Teve o enterro cheio
e hoje aos pés de Deus,
muita conversa fora,
mesmo ateu.

Cheio da terra estreita,
hoje aos pés de Deus,
joga conversa fora,
mesmo ateu.

Nov 2, 2007

Poema dedicado

Quanto da arte é feito de entranhas? Quanto feito daquilo que se pretende belo? Mesmo sabendo que tais questões não são nem devem ser mensuráveis, sinto-me culpado por ambos, quando, por acaso, acesso a qualquer uma dessas pontas do sublime. as gravações correm muito bem, com pessoas emocionadas em algumas cenas no set e tudo. Vencido pela pressa, deixo um poema dedicado.

Canto XVII

a noite carrega a luz para fora das casas
acende-as

os homens que à primeira luz
saíram
chegam apagados

as luzes que a noite acende
fora das casas
despedaçam-se

brutalmente
os rostos se contraem
no espaço peque
no que sonham

quanto mais os cenhos apertados
desfiguram os cílios
de sua árdua natureza de trabalho

mais a noite segue retomando
o espaço à corrente

e assim que não se reconhecem
reconciliados
as luzes apagam de novo
a noite fora