Nov 6, 2008

Poemas bêbados


Foi comum no começo do último século, na poesia, a existência de poemas curtos, visando densidade, muito subjetivos e que buscavam um corte agudo no real. A esses poemas chamaram "impressionistas". Isso eu soube há pouco, no meu conflituoso e duradouro namoro com a teoria. Já conhecia Leminsky, claro, mas daí fui atrás de gente viva e achei Adília Lopes, uma poetisa portuguesa que ainda pratica esse tipo de verso e com uma qualidade primorosa. Ano passado, ainda ignorante das camisas-de-força teóricas, apresentei alguns exemplos meus destes poemas a alguns amigos, também poetas, que surpreendentemente precisaram ser convencidos de que se tratava de poema e não de trocadilhos, ou "nadas", ou um dos meus tão vergonhosa e frequentemente comuns sarcamos com amor. Estamos neste caso levando nossas práticas um passo adiante ou, mais do que atrasados, revivemos uma poética coadjuvante do século passado? Apesar das minhas atuais preocupações hepáticas - resultado de certo sarcasmo divino comigo -,comparo estes poemas, e por que não dizer os poetas que os fazem? ou todos, a bêbados que avançam, retrocedem, andam de lado, absolutamente bêbados daquilo que são obrigados a sorver diariamente de real.
(os poemas que seguem figuram no meu próximo livro, ainda em construção)

modernidade

sá-carneiro suicidou-se
por não-se-opor
pessoa também teria se matado

tic tac

um calmante por favor


negócio da China

os manuais masculinos estão em chinês
as chinesas não têm manuais chineses


trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças


o que é natural a um corpo

as horas são fundas
o tempo raso
a vida é um corpo que emerge

5 comments:

Anonymous said...

Praticamente Hai-kai. Gostei do trava-linguas e onegócio chinês, são sutis, e desdobráveis.... no melhor do seu estilo.

Anonymous said...

gostei do "trava-língua". gosto da palavra "carcaça", faz-me ver além dos ossos.

william said...

Por coincidência ontem numa livraria do centro dei uma lida numa autora que não conhecia a Adília Lopes...

Gostei do seu" o que é natural a um corpo".
Abraço

Victor Meira said...

É bem legal. A figura estrela com muito protagonismo. Fica sozinha lá, e por isso ganha mais possibilidades.

Poesia livre de gordura mesmo. A relação curta entre figuras cria relações de enigmas desconsertantes.

Legal, guto.

Guto Leite said...

A melhor parte dos meus post são os comentários, certamente! Reúnem-se neste espaços os mais fervorosos inimigos do meu ceticismo ao mundo!
Arte!