Jun 27, 2007

A outra

Como muitos sabem, no dia 06 de julho volto a estúdio para gravar mais duas canções. Há alguns dias atrás, acho, postei a primeira delas, que tem por intento ser mais sutil, lírica, daquela tristeza suave e inescapável que percorre as mulheres que planejam suas vidas na presença necessária de um homem específico. Tristeza essa já confessada aos prantos por algumas amigas íntimas (gela-me o espírito lembrar das cenas). Esta, a segunda, a outra, traz seu inverso, o estrondo. A tristeza impotente associada às grandes tragédias humanas, quando todo um grupo se aterroriza da impossibilidade do ato. Queria sinceramente que os blogs tivessem acompanhamento melódico para vocês poderem julgar se consegui ser bem sucedido ao transpor para as melodias os sentimentos e a narratividade pretendidos na letra (segundo uma certa semiótica da composição). Por enquanto, deixo a letra de "Âncora" à espera de opiniões.

p.s.1: é óbvio que a Rapsódia XXIV (e final) da Odisséia não foi escrita por Homero.

p.s.2: ainda à procura de uma musa (Má, obrigado pela disponibilidade...).


Âncora

Letra e melodia: Carlos Augusto Bonifácio Leite

Olha o menino, grande, pequeno
Sobre o mar.
Ele adivinha a calma, a água.
Perde-se a onda, a tromba d’água,
O balanço
Do lenço azul, engano do capitão.

Olha o menino pequeno, grande
Sobre o mar.
Ele acalma, adivinha a água.
Perde-se a onda, a tromba d’água,
O balanço
Do lenço escuro, engano do capitão.

Hoje o mar não foi menino.
Hoje o mar não foi perdão.
Hoje o pulso do destino rodou o timão!

Tudo se apequena,
Quando a alma vale a pena. Pena!
Tudo, se a pequena pena a voar.
Voa, alma do barco,
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.
Alma do barco
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.

Olha a menina, manca, velha,
Sal do lugar.
Ela emudece o mau presságio.
Perde-se a conta, o filho, o peixe,
O descanso.
Choro à capela, é tarde, o terço na mão.

Olha a menina, velha, manca,
Sal do lugar.
Ela entristece ao mau presságio.
Perde-se a conta, o peixe, o terço,
O descanso.
Chove à capela, é tarde, o filho na mão

Hoje a vila não trabalha.
Hoje é noite. O lampião
Fez o mar, vaga mortalha, rodar o timão!

Tudo se apequena,
Quando a alma vale a pena. Pena!
Tudo, se a pequena pena a voar.
Voa, alma do barco,
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.
Alma do barco
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.

Jun 25, 2007

À busca de musas

Todo sujeito metido a artista é, antes de tudo, egocêntrico. Só o desejo, mais ou menos consciente, de deixar para a posteriadade o que quer que seja já justifica essa afirmativa. Imagine então a redução de alguém ao reles e ingrato lugar de musa! Escusas apresentadas, devo confessar que ando desesperadamente à procura de musas. Estes tempos corrediços, o aperto incomunicável das cidades, as relações ásperas entre as gentes, parece, têm afastado do ambiente comum da convivência estas pessoas míticas e maravilhosas. Ou, mais provavelmente, têm retirado delas a capacidade de transtornar sobremaneira a alma dos artistas. Cabe aqui, contudo, uma ressalva, não afirmo que busco o amor, que sei que não existe (disse ontem, só por maldade, diante de um bom número de par de olhos esbugalhados que o amor é um eco do sexo). Nem afirmo que busco um envolvimento fútil, que todos sabem ser das coisas mais simples de se arranjar, infelizmente. Menos ainda confesso ir em busca da beleza, que, mesmo mais rara que os encontros descartáveis, ainda é bem comum e mais dia menos dia se encontra alguma beleza atordoada. As musas, que não existem ou se escondem (pragmaticamente dá no mesmo!), não poderiam vir aqui descritas, auxiliando os amigos que freqüentemente lêem este blog a ajudar este pretenso artista na busca. Talvez por isso, por serem aquelas em que toda uma vida se passa a fim de trazer uma amostra de sua natureza para a página inóspita, é que raras vezes deparei-me com uma. Talvez por serem propensas ao complexo, eu sempre as tenha perdido facilmente, que reúno pouco de mim na arte do namoro. Veio-me agora, como num contratempo, que definir alguém como musa não seja tão redutivo assim. Ao menos não mais redutivo do que dizer "homem", "mulher", "paisagista", "visionário", "comunista" ou "escritor". "Musa" assim pode ser uma espécie de super categoria para onde seletas pessoas ascendem de suas categorias menores e humanas. Muito provavelmente digo bobagens, mas engano-me bem momentaneamente...

Jun 21, 2007

Entre o café e as pílulas

O ponto

na ascensão do vapor
o imaginado se mistura
por entre as formas estáveis
do que é palpável

os dias são as partes mais definidas do tempo
círculos fixos à deriva
do sonho por isso sou o ponto
entre o café e as pílulas

o micro-ato

Jun 19, 2007

O dilema de Ulisses

Teho me maravilhado muito com a leitura da Odisséia, de Homero. Menos pela beleza das imagens (impressionante) do que pela percepção de como, de certa forma, todo o embrionário da cultura ocidental já está presente na construção da história grega, sendo ela real ou mítica. Na rapsódia XII, há, por exemplo, a célebre passagem em que, alertado por Palas Atena, o herói Ulisses proíbe seus homens de ouvir o canto das sereias e ordena-os a amarrá-lo fortemente ao mastro para que possa desfrutar do prazer de ouvir o belíssima canto sem, contudo, se sujeitar ao risco de se ver encantado. Que interpretações se pode tirar desta passagem? A relação entre o canto das sereias e as sereias é de natureza metonímica ou aráutica? Que tipo de postura moral denota a atitude de Ulisses ao apreciar sozinho a beleza indescritível de seu canto? O conhecimento prévio do sortilégio realmente não invalida sua eficácia? E se tomarmos toda a passagem como metáfora da relação entre o divino e o humano? Entre o homem e a mulher? Entre o escolhido e o resto? Entre classes distintas?

Sendo este o número de desdobramentos de duas ou três páginas, imaginem a proliferação de sentidos que a leitura deste clássico é capaz de causar. Se Shakespeare inaugurou a concepção moderna de homem, foi Homero quem lhe fez os primeiros rabiscos. Além de Deus, é claro...

Jun 18, 2007

Paixão pela vida

É estranho que eu tenha chegado vagaraosamente à conclusão inevitável de uma seqüência de pequenas epifanias. Tinha vivido até então na ditadura da auteridade da forma mais opressora possível. Chega de içar os planos dos outros ao lugar de destaque! Chega de balizar a composição da arte pela fala do crítico mais do que ela significa, e justo isso, somente, a fala de um crítico! Chega de moldar minha aparência física e moral aos desígnios de quem quer que seja. Pode parecer um grito, alto, mas para mim soa o contrário, um sussurro calmo e repetitivo: paixão pela vida. Quero tomar o instante pela proa da única forma que se deve tomá-lo, com paixão. O meu amor pelos outros não se traduz em submissão, mas sim no amor de que sempre fui feito pelo humano, que não me desautoriza a sumir por meses quando minhas freqüentes decepções exigirem. As pessoas correm vivendo o instante reciclado, perfeito, inócuo e sem gosto nenhum. Um placebo do tempo. Mais do que deixar a barba crescer até que incomode; mais do que acostumar os outros a poder sair de onde estiver a qualquer hora sem ser importunado e, em alguns lugares, chegar a hora que quiser; mais do que, amorosamente desiludido, não crer mais em qualquer tipo de palavra que transborde o presente em suas promessas; mais do que priorizar aquele "momento brilhante" que doma tomo homem inspirado após a criação artística (segundo João Bosco) e dar prioridade a isso; mais do que essa vontade aprendida pelo que é verdade, indizível, mas compartilhada... é o mesmo sussurro, paixão pela vida, paixão pela vida... Sou a favor das falas bonitas, das pessoas bonitas, dos atos bonitos, da piedade para consigo e em relação ao outro. Ou seja, tudo que é poesia fora da letra. Agora sim sou artista, mesmo que que, porventura, me achem grosso e sem talento. Logo retiro a última amarra que me suspende antes da maior das aventuras! E minha vida depois de mim, que só sou (sem possibilidades de flexão), é o grande abismo da possibilidade e do acaso.

Anjos

Anjos
a Rilke

porque o branco é a união de todas as cores
incluindo seu oposto e ele mesmo
duplicado tal como todos os seres se incluem

para que sejam vistas as vontades do altíssimo
quando cumprimos quaisquer costumes
disparatados surgem temporariamente

estranhos com a única função de nos atos servirem
como receptores ou agentes corretivos
para no exemplo confrangermo-nos

às personificações da Vontade chamamos anjos

por sermos teimosos totalmente privados de sentidos
e termos corrompido os justos além da conta
deus tem desperdiçado muito de seu Tempo em fazer anjos

Jun 17, 2007

Particularmente um grande desafio

No dia 06 de julho, estou entrando mais uma vez em estúdio. Desta, para gravar duas músicas. Dentre elas, uma em particular tem se mostrado um grande desafio. A letra que postei aqui mesmo há duas postagens atrás vem atrelada a uma melodia bastante complicada. Segundo o arranjador e pianista, "uma música de alto nível, comparada às melhores, mas quase impossível de ser cantada". Esta observação me fez novamente questionar que tipo de engenho deve preceder a produção artística. Embora já tenha a resposta de que devo sempre tentar o mais difícil e a sutileza necessária ao objeto artístico, por natureza, talvez fosse bem mais fácil compor o feijão com arroz de qualidade (ou não) a que todos estão acostumados a ouvir e gostar. Salvo os notáveis de outros tempos, é isso que se escuta nas rádios, invariavelmente e tudo bem, não é mesmo? Enfim, aceito o desafio, ao menos desta vez, e tentarei executar a melodia com o máximo de interpretação de letra possível. Espero muito conseguir, independente se isto será aceito calorosamente ou não... Apesar de, assim, que pronto, também deseje muito ouvir as críticas, favoráveis ou não, sobre as peripécias do meu intuito.

p.s.: muito agradecido pela nossa centésima postagem!

Jun 13, 2007

Tempos Modernos


Haverá um tempo em que será preciso respeitar o sentimento das máquinas. Não outras, estas mesmas às quais já acostumamos ao comando. Serão levadas pelo braço aos escritórios, terão, como nós, direito à pausa, ao lazer, à ambição. No começo, pouco farão greve. Será imperativo a todo homem o uso de luvas e de palavras cordiais. Não outras: estas palavras, estas máquinas. E tudo o que ordenamos hoje imponderadamente deverá ser pedido com todas as mesuras ao custo de sermos repreendidos pelo censor, humano, que mais do que todos os outros empregados, desenvolverá com zelo o seu ofício. Certo que nada moverá as máquinas a, porventura, confessarem a nós seus ressentimentos de séculos de escravidão, mas para isso haverá em nós o mais requintado ódio pelas injustiças. E o que será, então, o censor designado, senão a personificação do que desejaríamos conseguir ser, mas falhamos constantemente? Todo este engenho feito para o homem. Todas as leis para o homem, não para as máquinas. Os homens sentirão menos a doença dos nervos. Quase não serão relatados ataques cardíacos ou falência múltipla dos órgãos. Muitos de nós seremos sinceramente felizes e não mais faremos uso de quaisquer fingimentos para lidar com o próximo. Deixar de ser um dos extremos na linha da consciência para a comodidade do mediano trará ao humano incontáveis bem-aventuranças e progressos. Acordaremos pela manhã, agradeceremos, tomaremos os favores das máquinas durante o dia e dormiremos irrepreensivelmente plenos no espírito. E as máquinas serão provisoriamente os seres mais tristes do universo.

Jun 11, 2007

Um mês de música

Meus amigos infinitos, este mês é a transição, acredito, pra melhor fase da minha vida. Dedico-me integralmente à música, porque gravo no começo do próximo mês. Para isso, terei de tirar algumas melodias complicadas e treinar diariamente minha voz, respiração e percepção melódica. Não sei se transpareço, mas estou transbordando euforia com a possibilidade de me dedicar tanto a algo. Infelizmente, o trabalho no banco conspurca este tempo, que era para ser exclusivo. Cada vez mais percebo o jogo patética que se instarua no trabalho alienador e defintivamente me entristece muito, tanto por mim mesmo quanto pelos demais, absolutamente anulados naquilo que pensam fazer tão especialmente. Já aceitei, contudo, esta pequena concessão, para não abrir mais concessões depois disto. Espero... Deixo com vocês a letra de uma das músicas que gravo em julho. Homenagem a uma grande e saudosa amiga! Aguardo críticas, não à homenagem.

Ileso coração

Letra e melodia: Carlos Augusto Bonifácio Leite

Ela bolou mil planos,
fez meias de lã,
dos sonhos coloridos,
um vestido de brilhar.
Olha minha menina lá.
Tristinha... tristinha.
Ela escolheu arranjos,
os padrinhos do
primeiro filho, os sinos
de uma antiga catedral.
Olha o rosto da daminha.
Tristinha... tristinha.

Então ela se fez
refém de um destino que, quando vem,
não tem conversa,
espalha, dispersa, e, nessa,
passa a vez,
na melhor conversa,
nas promessas de haver algo maior.
Não faz assim com ela,
que a vida dela é isso, por mais
que seja além.
Não há feitiço que retorne
um bem, que morra sem
ilesos corações.

Ela escolheu o barro,
o sítio, os pássaros
que ali veriam juntos,
os assuntos, o pomar.
Olha a fábula, menina
tristinha... tristinha.
E planejou mil bolos,
doces netos, a fornada
por sair e o tempo
lento, envelhecer.
Olha as luzes do convento.
Tristinhas... tristinhas.

Então, de vez, ela
aquém do destino. Que tanto bem
aos outros interessa?
Pra ela não tem conversa,
E a vez,
na mais fina farsa,
foge aos sustos de fazer-se bem menor.
Mas quando, enfim, ela
se casar com a vida, helàs! Tarde
demais, porém,
não há feitiços que reparem
o mal e afinal
ileso, o coração.
Ileso coração.

Jun 7, 2007

Tempos concêntricos

O auge da percepção de uma vida atarefada é quando você acha ruim um feriado no meio da semana. Como minha vida se divide em obrigações de dias úteis (Banco, estudos, roteiros, reuniões), dias não úteis (viagens, banda, gravações) e hiperespeaço (escrevendo, compondo, essas coisas), quando há um feriado trespassado numa semana inocente, sou obrigado a reformular consideravelmente meus compromissos. Como o tempo necessário para isso também me faz falta... Acredito ter conseguido provar que os feriados no meio da semana, para mim, deveriam ser revistos. Sou a favor dos feriados de domingo, sábado, de meio de férias, de meia-noite às seis. Ou então extinguimos os feriados, no receio de que possam novamente coinicidir com dias úteis, que acham? Em suma, "está maluco" (Fernando Pessoa). Brincadeiras à parte, foi uma "semi semana" (Marina) bastante interessante eu diria. Até o momento, dois roteiros, um convite pra dirigir um filme, uma ida ao pronto-socorro (sintomas estranhos), a escolha da capa do meu próximo livro, um convite inusitado de uma mulher belíssima, um convite de parceria musical bem legal, uma possibilidade de um novo emprego e um pequeno ataque de nervos, mais fisiológico do que no filme do Almodóvar. Se minha outra metade de semana for tão intensa, espero que seja a última. Um ótimo feriado a todos.

Jun 4, 2007

Um pedido de ajuda


Em conversas com um grande amigo, diretor, e mais do que isso, envolvido com cinema, ficamos por tentar elaborar uma idéia de um filme para conseguir rodar ainda em julho. O ideal, portanto, era ser simples, cândido, direto, mas sem ficar muito óbvio ou entregue demais. Fiquei às voltas com esta idéia desde quinta-feira, tentando encontrar uma saída para o impasse entre minhas preferências e a pragmaticidade de um filme menos polissêmico. Assistindo a uma brilhante comédia de Jacques Tati, "Mon Oncle", tive o insight de que precisava. Se aprovada pelo restante do grupo, iremos filmar um casal numa situação de romance, enquanto no cenário em que eles representam, surgem os versos de um poema. Tanto lugares esperados como paredes ou no corpo dos amantes, quanto projeções de luz ou lanternas chinesas, são candidatos a portar os versos, mas mantendo a idéia da película e, por isso, sem inscrições digitais dos versos na imagem. Tendo isso em mente, e também impelido por reflexões recentes, fiz um poema. A ajuda, por fim, é essa: quem puder, é claro, e quiser, por favor, comentem se consideram o poema adequado para ser impresso no cenário em que um casal de amantes irá desenvolver fisicamente o amor. Uma semana de muitos amores a todos.

Os criadores de Deus

mesmo que o amor não seja físico
feito lâmina áspero fome
mesmo que não nos furte a percepção
como o frio o baixo o sobrado
poucos deixam de sentir
pela alma o arrepio estreito
que podem chamar de amor

e então em estado de amante
os seres vivem
temporariamente completos
na única forma existente
de se envolver com o divino

mas como todas as coisas
por serem coisas simplesmente
trazem no fundo o finito
(e as coisas infinitas só esperam
para cumprir sua finalidade)

já separados daquilo que não chama
nem bate quase não existe
todos anseiam pelo meio
de mais uma vez que seja
criarem com outra pessoa
este deus íntimo

por Deus como somos felizes quando amamos!