Dec 24, 2007

Presente de Natal

Ao leitor

“Au lecteur”, Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire
Tradução despretensiosa: Guto Leite


A estupidez, o erro, o pecado, a avareza,
Ocupam nossos espíritos e moldam nossos corpos,
E nossos remorsos amáveis nos alimentam,
Como os mendigos nutrem seus parasitas.

Nossos pecados são naturais, nossos arrependimentos são frouxos,
Nós nos fazemos pagar com generosidade nossas confissões,
E entramos animados novamente no caminho lamacento,
Crendo que o choro vil lava todas as nossas manchas.

Sobre o travesseiro do mal está Satã Trismegisto,
Que embala longamente nosso espírito encantado,
E o metal nobre da nossa vontade
É todo evaporado por este sábio químico.

É o Diabo que porta os fios que nos movimentam!
Nos objetos repugnantes, encontramos atrativos;
A cada dia, descemos um passo em direção ao Inferno,
Sem horror, em meio às trevas que fedem.

Assim como o pobre devasso que beija e come
O seio martirizado e uma antiga prostituta,
Nós roubamos, de passagem, um prazer clandestino,
Que esprememos bem forte como uma velha laranja.

Estreitados, formigantes, como um milhão de helmintos,
Em nossos cérebros festejam um povo de Demônios,
E, quando respiramos, a Morte em nossos pulmões
Desce, rio invisível, com lamentos surdos.

Se o estupro, o veneno, o punhal, o incêndio,
Ainda não bordaram seus desenhos agradáveis,
A tela banal de nossos destinos medíocres,
É que nossa alma, pena!, não é ousada o bastante.

Mas entre os chacais, as panteras, os cães de caça,
Os macacos, os escorpiões, os abutres, as serpentes,
Os monstros esganiçando, gritando, grunhindo, rastejando,
Na infâmia doméstica de nossos vícios,

Ele é mais feio, mais cruel, mais imundo!
Embora não solte grandes gestos ou gritos,
Ele faria, de boa vontade, da Terra um fragmento
E em um bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! – o olhar cheio de um choro involuntário,
Ele sonha cadafalsos fumando seu cachimbo.
Você o conhece, leitor, este monstro delicado,
– Leitor hipócrita, – meu semelhante, – meu irmão!

Dec 22, 2007

Poema em prosa, prosa em poesia

Da conversa de dois amigos, extraio um dos grandes conflitos que assola o elemento humano. Ela dizia que se lembra de cada ação que lhe tenha rendido risos ou aborrecimento. Ele dizia que costuma esquecer tudo, que assim é mais fácil. Salvo a distinção sexista, que, acho, não acredito, qual das duas posturas diante dos fatos passados é mais adequada? Ou, para que diacho serve a memória? Vem-me às idéias certa crença epistemológica aprendida na escola de que a História serve para não repetirmos os erros do passado. A memória, parte individual e íntima dos fatos, nos serviria, provavelmente, de maneira análoga, para não nos enfiarmos de novo em antigas enrascadas. Mas, se a humanidade já se mostrou inapta na arte de não repetir os erros documentados (vide os americanos que sempre cederam armas e a retribuição destes grupos às dádivas concedidas), o que nos autoriza a ser capaz de esquivarmos dos erros previamente cometidos nos antes de nossas vidas? Parece-me que temos algum controle sobre o periférico e o temporário, mas o aquilo que é de cerne vem de forma imperativa. Não há memória que ensine a respeito das erráticas e inevitáveis proezas coincidentes no destino.

A máquina maravilhosa

os cenhos olhando-se lentes desolados
os toques de resquício
os abraços da pele por contigüidade arenosa
tudo se dividindo em plátano penhasco ou
vontades submersas nas asas dos copos líquidos

círculos de níquel metonímicos no pano gasto
orfanatos paróquias entidades casas de espírito
franjas repartidas com o frontispício das quinas
segmentando os corpos
as mesas de café rodas metálicas dos vícios

um peitoril esguio um maço de Malboro Light
um semáforo agudo solo de violino
um sebo uma feira um laço uma galeria de arte
um riso

o vão caudaloso do contorno a linha o lírico da Zona Leste
onde um beijo duvido indefinido é nada é vago
o dia feito maquinaria sátira de carinhos
magros

p.s.: criando...

Dec 19, 2007

Um ponto qualquer do globo e sua volta

É estranho terminar um dia tendo feito tudo a que eu havia me proposto antes dele ("with benefits"). Estudei inglês, francês, canto, pandeiro, violão e compus música, roteiro, poema... O estranho é a sensação enganosa de controle que ganhamos. A perda da certeza constante de iminência da morte e do fracasso. A qualquer instante, contudo, que buscamos fôlego, lá estão eles, à espreita, calmos como o tempo dormente depois do relógio, e antes dele. Só se ariscam vermelhos quando pensamos que o valor do risco é dependente dos tropeços rápidos de Cronos, mas não pensamos nisso. As agendas são feitas para a automação do espírito. Nela cabemos isentos de pensamento, perfeitamente. Hoje foi um dia fácil porque me espremi dentro de dezenove de dezembro.

p.s.: quando crio muito, enfim...

Dec 18, 2007

O próximo trabalho

Passei toda a tarde de hoje, graças a uma noite péssima que me custou a manhã, entretido no meu próximo trabalho, digamos, sério. Estou finalizando um terceiro roteiro para, mais uma vez, trabalhar com meu amigo, diretor, Ivan Rodrigues. Basicamente, trata de um disparate histórico, que, agora que está registrado, posso comentar com mais liberdade. Eis o mote: por alguma causa não explicada no filme (mas que devemos explorar em produções seguintes), descobre-se que Malthus estava certo em suas teorias. Os países mais pobres, então, decidiram por adotar uma medida chamada "estado senil". Esta medida consiste em "orientar" as pessoas com mais de sessenta anos a realizarem testes de senilidade, com a pena de "supressão" para aqueles que, por acaso, sejam reprovados. Aos que atingirem a idade de 85 anos, a supressão estatal é imperativa, a não ser que o próprio presidente intervenha com o benefício da salvaguarda ao cidadão, por alguma espécie de mérito (artístico, social, político). O que inicialmente se apresentara como uma maluquice da minha cabeça, ao desenvolver a primeira versão do roteiro, se configurou bastante complexo e com várias conseqüências previamente não previstas, mas que já foram incorporadas ao segundo e terceiro tratamento (também com as idéias do Ivans e de outras pessoas). Será que todas as idéias já estavam previstas no mote original, eram proporcionadas por sua enganosa simplicidade ou foram construídas a posteriori por nós para deixar a idéia mais interessante? Por favor, quem se animar a comentar o mote, dando idéias, críticas, sugestões, é muito bem-vindo. Heia-oh! que o único simples é o complexo!

p.s.: agradeço também às muitas visitas ao myspace da minha banda. Se me virem por aí, avisando-me, me curvo.

Dec 11, 2007

O Isso

Ando de certa forma em desespero. Tenho estudado bastante os movimentos e principais forças do modernismo para poder, enfim, escrever meu projeto de dissertação de mestrado. A causa do desespero consiste em imaginar para onde caminha nossa literatura e como se desenvolve a produção dos autores que se disponham a fazer arte hoje em dia. Só para ser sucinto, quando, há uns trezentos anos, atravessamos a ponte entre o mimético e o subjetivo, já deixamos descuidados parte de nossa sanidade. Ao prosseguirmos o cansaço, entre o subjetivo e o sensorial (ou simbólico), poucos restaram que pudessem viver sem roer os dentes. Por fim, acredito, resta abandonarmos este último para ir atrás do "isso", do indizível, do objeto além do passível de crítica, justo por ser tênue, por correr ao largo da linguagem. É possível? Esta é minha sensação e, talvez, para onde caminhem meus versos. Esse é o meu "isso". Os loucos dentro da minha cabeça jogam "queimada" com suas camisas de força quando me pergunto: e depois?

Trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças

p.s.: quem puder, dê uma conferida no espaço da banda em que canto, no myspace. O link tá aqui do lado direito. Parte das letras de música que posto aqui podem ser ouvidas e baixadas por lá. Imenso e dedicado abraço a todos!

Dec 9, 2007

Pau a pau

Gostaria de postar hoje parte do mote do próximo filme em que estou trabalhando com meu parceiro de cinema, Ivan Rodrigues, mas como sempre, deixo a cabeça ao canto que se apresente, esqueci a última versão do roteiro no computador de casa. Opto, então, por um poema de gosto duvidoso, como forma de não deixar as linhas de minha aventura incipiente, quando for postada, num âmbito reconhecidamente inferior. Agradeço muito as visitas, comentadas e não-comentadas, que tenho sempre notícia. Poesia, que é preciso poesia!

Ocultismo

Sabe-se que todos os seres têm um anjo
(ou a maioria).
O oculto é que estes anjos
têm para si
outros na hierarquia.

E como, quanto mais se sobe,
das linhas
à perspectiva,
mais é esperado da alma
que se acalme,

os últimos também
se arranjam
com anjos em menor número,
mas grande melancolia.
E amém por diante.

Deus, portanto, imenso
e manso,
dorme enquanto vigia,
cinco ou seis anjos
putrefatos.

Dec 5, 2007

Saco de gatos

Sabe o que eu poderia fazer agora mesmo? Deitar-me na primeira cama que encontrasse, sobre os lençóis, e embalar-me. Embebedar-me. Emburrar-me. Embaraçar-me. Embaralhar-me. Embrulhar-me. E ir embrulhando, embrulhando, desenfiar o braço pela boca e pregar do lado de fora: “Gatos”.

Dec 4, 2007

Amador da arte

Há uma sensação permeando a vida das pessoas. Se não há realmente, eu a crio, então há. Um certo teor de descuido nas ações, preocupações, carinhos, na forma geral de tratar outra pessoa. Não falo do descuido pontual ou fortuito, a esse todos estão sujeitos, por desconhecer a abrangência da vontade do outro e pela força destruidora do hasard, mas falo do descuido como premissa de vida, como axioma que organiza o quadro de ações morais. A ausência completa da noção de que há, além de si, outro eixo, que reúne vontades, medo (propositadamente no singular), limitações, crenças... É muito mais fácil viver dessa forma, organismo independente e transversal, mas certamente é outra das grandes ilusões em que se tem erigido a vida ("a vida é um sopro, né?"). De minha parte, cabe entender e criar, entristecer e criar, café e pílulas, esquivar-me. Tenho dado essa resposta num roteiro, numa peça, nos poemas, nas músicas. Tenho respondido na forma arredia com que me relaciono, não se percebe? Ironicamente, a única resposta que tenho encontrado é transformar-me neste organismo independente e transversal, com a diferença de que no medo de descuidar-me do outro, não o trato. Por lá ser mais forte, no traço, torno estritamente um amador da arte.

Dec 2, 2007

Charlatão


Sonhei ontem à noite com todo o primeiro ato de uma peça. Ainda não sei os outros... Na verdade, mesmo este me embaralha. Não sei a que vem, nem se funcionaria interpretado. É como se fossem pequenas representações de como o gênero humano lida com a questão do tempo. Me soou tão charlatão este sonho, a peça, a postagem, que deixo o cartoon feito um memorial à minha natureza artística enganosa!

Dec 1, 2007

Onde?

Voltando do silêncio, se é que dele se volta, compus com mais um parceiro diferente esta semana: Daniel Coelho, grande baixista e amigo. O que gostaria de comentar é a respeito de como o processo de compor pra quem já escreve é engraçado, complicado ou, até mesmo, impossível. Escrevo poesias desde pequeno e, por isso, colocar palavras num determinado ritmo, acerca de um tema tal, gerando uma construção específica de sentido, no ambiente da canção, não é algo que necessite de muito esforço. Claro, com a qualidade dubitável de sempre, mas, ao menos, não me demoro muito. O problema para mim, e talvez o problema para muitos dos compositores que foram antes escritores (ou se pensaram escritores, enfim, não é possível ser formalmente rigoroso fora do silêncio, desculpem a digressão), é definir com clareza o tom do lirismo utilizado. Não se pode ser rebuscadíssimo, "olha que bela música parnasiana", mas também não é adequado visar demais a linguagem popular, ao custo de se perder a profundidade de uma imagem ou rima bem construída e compor algo que só reitere os clichês de sempre. Como resposta, ando sempre à casa dos clássicos, tanto originalmente letristas (Noel, Cartola, Chico, Gil), quanto os que primeiro se arriscaram bidimensionalmente (Vinícius, Leminski, Cazuza ), nem que seja para deixá-los em seguida, a xícara vergonhosamente fumegante. Deixo a letra que fiz, razão de toda esta dúvida, no espio da xícara fumegante.

A noite do fim do mundo
Música: Daniel Coelho
Letra: Guto Leite


Vou me arranhar, rasgar-me em trapos,
Se a gente não chegar num trato,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.
Eu vou sumir, cair num rio,
Achar meu corpo no baixio,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.

Se você sorrir
Medos de menino,
Vou admitir,
Que fim?
Se a manhã disser
Sombras do destino,
Eu vou ser mulher
Ruim.

Vou rebentar, a corda agüenta,
Me saciar no amor de rendas,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.
Eu vou correr, fugir de tudo,
Molhar meus olhos moribundos,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.

Vendo o que tiver,
Abandono os filhos,
Me agarro a qualquer,
Que fim?
Se a noite fugir
No cantar dos sinos,
Eu vou ser ruim,
Mulher!