Aug 22, 2008

O leitor principiante de si mesmo

O bom de aparecerem concursos literários é que te obrigam a revisar muito coisa no intuito da tarefa impossível de escolher algo para a participação. Ou se é escritor de ofício, e tem no mínimo duas dezenas de textos aproveitáveis. Ou não se é escritor de ofício, e inscreve sempre os mesmo textos, reiteradamente. Como estou mais para aquele do que para este, acabo encontrando outra dificuldade: há uma grande quantidade de textos de que só me lembro após lê-los, principalmente contos (minha já tão citada aqui falta de talento para com eles). Por mais assustador que seja abrir uma pasta (no computador) e ler uma dezena e meia de arquivos "desconhecidos", está aí algo que recomendo a todos, a experiência de ser leitor do próprio texto! Segue um encontro feliz que tive hoje, embora ainda traga evidente minha falta de traquejo. Espero expiar-me no esquecimento. Um fim de semana de muita arte a todos!

A História de Duas Tribos

Diante da urgência, ele retirara o isqueiro do bolso e se propusera a acender aquele monte de lenha seca depositada entre eles. Em resposta, os oitos jovens que tiritavam dentro de seus casacos chisparam olhos esbugalhados em sua direção. Não havia para eles mal maior do que se valer daquele mecanismo, mesmo que lhes custasse alguns momentos gelados e desagradáveis a mais. Ainda, mesmo que aquele jovem fosse reconhecidamente liberal em seus modos, além de novo no grupo, de maneira alguma poderiam deixar que aquela imprudência soasse natural e se alastrasse caoticamente no coração de todos. “Guarde essa máquina, rapaz, é melhor que façamos à moda antiga”. Embora nunca houvesse concordado com tudo aquilo, Marcos consentiu por sua condição de alheio acenando com a cabeça e retornando o objeto frio ao bolso esquerdo. Tadeu, novamente grave, buscou em sua mochila verde musgo e de cordões pretos, dois generosos pedaços de granito, arredondados, e em pouco menos de quinze minutos, já se puderam ver faíscas tímidas começando a crepitar dentre a lenha.
O brilho ali sombreava agora cinco barracas pelas árvores da mata, diminuindo consideravelmente o espaço incólume da clareira com luzes e sombras. As conversas principiadas por aqueles jovens favoreciam ainda mais o desconforto, sentido exclusivamente por Marcos através de uma inconfundível sensação de aperto. Por ora, decidiu-se permanecer quieto, com o cobertor à altura da cintura, a fim de sentir todo o calor da fogueira sem entrepostos. Permaneceu relativamente absorto durante todo o tempo, e não foi pouco, em que uma das mulheres do grupo, Leila, contava a todos sua reiterada rotina de casa, trabalho, filhos, marido e cama.
“E o que você acha, Marcos, de ter que chegar todo dia no mesmo horário?” “Quê?” Estancou com suas reflexões pirofágicas imediatamente. “Onde?”. “No trabalho...”. E todos riram, alguns levando seus cobertores à boca, tentando dissimular. “Bom, Leila, eu trabalho em colunas”, disse irônica e propositadamente. “Engenheiro? Arquiteto?”, interrompeu César, que até aquele momento tinha a atenção fixada em Leila. “Não, jornalista, escrevo colunas semanais em alguns jornais de São Paulo”. “Ah”. “Faço também uns poeminhas, mas nada apresentável”, ele quis se gabar. “Digo isso pra justificar que não tenho um horário fixo de trabalho, tenho prazos, mas, desde que eu os cumpra, posso trabalhar quando quiser”. E os outros iriam retomar a conversa, como se de antes de sua intervenção, “Mas se me permitem, acho que talvez essa seja a forma ideal para todas as áreas. Trabalhar com prazos, dentro de um máximo de horas diárias...”. “Mas isso não daria certo em manufaturas, por exemplo”, desafiou Tadeu. “Acho que daria sim, só que com prazos menores, objetivos menores e alguém gerenciando toda a operação. É impressionante o que se consegue com acordos e cooperatividade...”. Dessa vez, todos riram largamente e Marcos sorriu beneplácito, erguendo o cobertor até a altura dos ombros.
E prosseguiram metodicamente com a conversa, o que cada vez mais reduzia Marcos a um canto da roda dos jovens. Em alguns momentos trazia demoradamente o cobertor sobre o rosto, fechava os olhos e imaginava-se no paraíso de seu lar, seu conforto, todas as comodidades incontáveis que existiam em pouco mais de três por quatro. Seu colchão, seu travesseiro de ganso, suas frutas, o belo casaco de couro que não trouxe para não sujar. Além dos contraventores preferidos por ele: a televisão velha e chiada, o aparelho de som que precisava ser esquentado antes de realizar o para quê foi feito, o forninho, que tanto o serviria naquela hora, ornado de uma ferrugem espessa e de tempos.
“Talvez possamos fazer o seguinte, em vez de estipular uma ordem para as histórias, poderíamos propor um prazo, dentro do qual cada um seria obrigado a explicar sua ficção” – crepitou Tadeu, e todos riram mais uma vez. Marcos, ainda mais tímido, não conseguia de forma alguma achar naquela celebração pastiche algo harmonioso. Percebera, já há algumas semi-horas atrás, a dinâmica do grupo, e o que pareciam intervenções espontâneas de seus participantes, soavam para ele como estranhamente regulares e monótonas. Então, gargalhou forçadamente, buscando se assemelhar à euforia comum, e propôs, “Faço as honras, Tadeu! Se a fôrma é minha, eu que faço o bolo”. Ninguém riu. E a chama foi-se acalmando vertiginosa até que houve silêncio para que o intruso se colocasse.
“Houve um tempo, há alguns séculos num mundo que não o nosso, onde duas tribos, talvez as únicas existentes naquele lugar, mas não estou certo disso, por ter fraca memória, mantinham uma relação tão íntima quanto é possível se estabelecer entre dois povos distintos”. Os olhos dos outros jovens, aceitando o momento justo e imotivado das histórias em torno da fogueira, concentraram seus olhos uns em Marcos, outros em um ponto indiferente, onde pudessem direcionar outros sentidos ao entendimento. “A Tribo dos Homens era farta de alegria. Sempre que sua condição possibilitava, organizavam banquetes e bebedeiras nas quais todos se congregavam, cantando, contando história, poemas, casos acontecidos com os amigos, que ao ouvir, não se zangavam, mas sentiam-se gratos ao contador por fazer dele fonte de entretenimento aos demais membros. Não somente as festividades, mas tudo obedecia a essa ordem fortuita, mas não aleatória, em que a situação proporcionava de tempos em tempos o conforto de despreocuparem-se do todo. Sua ética: não privar de qualquer um o prazer da celebração e do acaso. Sua religião: somente não podiam sacrificar seu contentamento, independentemente dos motivos”.
“De onde está tirando isso?”, interveio, grave, Rubens. “De dois grandes escritores” – explanou Marcos – “Kafka é o autor original da história, mas foi também reescrita por Borges”. “Você está inventando... não existe isso de dois autores reescreverem a mesma história”, observou Lígia graciosamente (esta que o apresentara antes a seus amigos). “Claro que existe, é isso que os escritores fazem a todo tempo! Nem lhes contei sobre a outra tribo e vocês já estão me interrompendo...”, riu, em silêncio. Aqueles que tinham os olhos nele notaram o esboço de riso.
“A Tribo dos Outros pode ser vista como um contraponto de equilíbrio. A estes tudo se resumia ao trabalho. Mesmo que ao fim da tarde não se ocupassem de seus afazeres domésticos e de suas próprias colheitas, a dedicação de todo o restante do dia na realização das ocupações da Tribo dos Homens, a quem serviam, já lhes era suficiente para o cansaço. Pode lhes parecer que eram infelizes, mas não, principalmente no tempo em que acudiam todos os anseios da tribo vizinha é que se realizavam. Era algo religioso, a admiração absoluta em ver como eles eram capazes de desfrutar tão bem do tempo, enquanto os próprios, inferiores, sempre se viam à roda de obrigações e responsabilidades. Sua ética: de maneira nenhuma interferir no trabalho do outro. Sua religião: já disse”.
“Adão e Eva”, alguém disse. “Adão e Eva...? Não, qual o trabalho de Eva a não ser dar trabalho a Adão?”, e todos riram com Marcos, que se sentiu seguro e pronto para guinar de vez sua história. Assumiu ar imponente: “Após umas poucas gerações do establishment, a Tribo dos Homens timidamente começou a cansar-se dos festejos. Não ocorreu de maneira notável, a princípio, mas alguns de seus membros passaram a abandonar celebrações por quererem melhores as obras já feitas por seus escravos. Um entrelace melhor em seus colchões, pluma mais seleta no onde recostavam a cabeça, frutas mais doces nos vasilhames de cabeceira, casacos de maiores animais, ou mais perigosos. Essa espécie de ambição passou ocupar cada vez mais pessoas da Tribo dos Homens, até que restou somente um pequeno grupo ainda ocupado na realização dos festejos: os Fudidos”.
“Ao verem que seus senhores, alguns os chamavam de deuses, não mais se empenhariam na arte que mais admiravam e consideravam essencial, os Outros perderam a obrigatoriedade e devoção que possuíam e retornaram às suas casa e à realização de seus afazeres íntimos e particulares”. Algo da fogueira refletia no olhar de Tadeu e Marcos percebeu isso. Um fogo-fátuo deslocado e pretensioso, como se já houvesse percebido até onde aquela história poderia chegar. Dessa vez Marcos não sorriu porque não queria demonstrar nada. “Com o passar de alguns meses, visto que não se compraziam de sua nova incumbência, embora muito mais lucrativa do que a anterior, decretaram guerra à Tribo Dos Homens”. Alguma movimentação de surpresa.
“Mesmo diante de um ataque inesperado, a Tribo dos Homens foi capaz de resistir por mais tempo do que se esperava. Entretanto, ao fim de seis dias de incontáveis corpos, restaram somente os Fudidos, poupados mediante a promessa de que continuariam com seu modo de vida e se multiplicariam para logo darem mais trabalho à Tribo dos Outros. Por entenderem corretamente que o mito vale mais do que a letra, nunca propuseram lei ou educação que vigesse a maneira necessária de conduta, em vez disso, criaram religiões, lendas e histórias que seriam propagadas de diversas formas e que juntas resultariam numa compreensão relativa dos membros da Tribo. O controle mais eficaz e invisível que se foi capaz de imaginar. Fim da história”.
E todos, principalmente Tadeu, embasbacados e aos poucos, recolheram-se a seus dormitórios acossados por aquela revelação. Lígia, única que o fizera por inércia e que não compreendera absolutamente nada, retornou em instantes e insinuou-se para Marcos, que em seguida entrou de um salto em sua barraca.

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