Nov 30, 2006

Do avesso

Minha cidade desaparece quando chove, para ressurgir-se do avesso. Debaixo de milhões de gotículas, mínimas, a cidade reverbera seus problemas habituais, sua inquietude, suas grosserias de esquinas, sua torrente de ódio. Certamente para o poeta, imerso, literalmente, neste panorama, os dias de chuva em minha cidade são lancetadas contínuas no centro da alma. Ainda bem que o poeta para si guarda laudéis e escudos. Uma solidão partilhada de um amor máximo (viva Garcia Marquez!), um monte de amigos leais (viva Victor Hugo!) e minha arte. Tais proteções são como guarda-chuvas de aço contra a cidade violenta. Tais proteções fazem com que não chova tanto abaixo do resguardo e bloqueie parcialmente meus olhos para as explosões de água, suor e sangue. Após uma noite inquieto, sinto-me bem e pronto para completar as lacunas com poesia.

Nov 29, 2006

Os remédios

Há alguns dias comecei a tomar Citalopran. Recebi diversas críticas a respeito de pessoas com quem realmente me importo e pondero, quando suas opiniões divergem da minha. No caso específico deste anti-depressivo, sei que a razão exclusivamente se encontra de posse dessas pessoas. Infelizmente, alguns assombros da vida não carecem tanto de razão e também me entristeço com essas pessoas de minha necessidade momentânea de pulsão em cápsulas. Ando apartado, por motivos diversos, de meus quatro grandes amores: ela, minha família, minha arte e meus amigos. Não há poeta que suporte sem o mínimo auxílio daqueles comprimidinhos brancos.

Pasalix

não tem gosto de laranja
seria naturalmente
se sua cor ou sua forma
redondas
não mentissem o se esperar

tem gosto sim de dormência
de sentidos exaltados
de contos precipitados
de móveis se arredondando
o quarto ruir mudando
as cores os devaneios
ondulando caindo
tudo laranja
dormiu

ao menos nos primeiros dias
depois passa-se o efeito
placebo das avessas
e já não tem gosto de nada

Acordei com vinte sentidos esta manhã...

Nov 28, 2006

Encontro com o poeta

No domingo último tive um grato encontro. Há muito tempo, um velho amigo, muito mais poeta do que eu, havia desistido, ou temporariamente preterido seus escritos, para poder envolver-se mais em assuntos sócio-políticos. Conversamos à moda antiga sobre arte, papel do artista, concepções estéticas e estáticas, possibilidades contemporâneas e afins. Depois peguei-me a pensar na impossibilidade de haver muitos como ele por aí. Não seria de bom tom tantos que pensem tanto como ele. Em homenagem, um poema simples do ano passado:

Mirisola

enquanto não sou
obrigado
trabalho
com arte
o ofício do necessário

Tímido pela falta de inspiração, apesar dos diversos motivos atuais para inspirar-me.

Nov 24, 2006

Em jejum

Hoje acordei triste. Um pouco em razão das reações causadas pelo comprimido de ontem, outro pouco por saber que será preciso tomar outro hoje. Tenho um desamparo constante no mundo, de falta de abrigo. E os únicos olhos que me entendiam, como um contrato de alma, estão distantes. À noite retomo a guarida dos meus amigos, em busca de um pouco mais que afinidade. Busco a causa, sempre, de levantar cedo, de ter o canto dos pássaros à minha janela, de falar com as pessoas, de ter contato, de sorrir, de sofrer. O mundo contemporâneo, em boa maquinaria histórica, transportou as causas a tempos remotos e isolou-as sob a alcunha do "fato". Não quero ter de expropriar-me ao máximo, obviamente, por pulsão, mas às vezes é tanto esforço para ter-me concentrado neste espaço de amor vulgar e cordialidades, que penso verdadeiramente no caso. Segue um poema de hoje, ainda sem reparos, que mais vale o silêncio hermético dos versos, do que o brado do bardo.

Em jejum

a tristeza como um comprimido
dois
pela manhã
antes do leite
sem contra-indicações

traz na fórmula
saudades-desamparos
em cápsula do futuro

já dentro em partes
despedaça-se no organismo
em movimento
e quando encontra canto que lhe guarde
dói

mas dói tanto tanto
em tanto me exila da verdade
em tanto concubina da distância
que pouco dá vontade
de tomar o leite

Nov 23, 2006

Como é bom ganhar presentes

Há muito tempo não ganhava um presente como o que ganhei ontem, presente pleno, fruto de desejo, com um cartão amoroso e preciso. Sou notoriamente um homem difícil de se agradar com presentes. Há até mesmo o caso da festa natalina e familiar onde, cercado por algumas dezenas de pessoas, disse que não tinha gostado do presente, mas que reconhecia a intenção por detrás do equívoco, e por isso estava feliz com o que ganhara. Decepção geral! Mas presentes como o de ontem me fazem lembrar da graça e delicadeza de receber um presente acertado. Muito obrigado! Também me faz lembrar de uma definição de Santo Agostinho para o presente... hum... antes é melhor eu conceiturar semioticamente os tempos a fim de um entendimento melhor. O passado é o referido pelo discurso de maneira completa e anterior a nós. O futuro é projetado discursivamente e também nos é inacessível. O presente, por mais que pareça que não, também se encontra fora de nossa alçada discursivamente. Pois sempre que é remetido já não é mais e quando o acertamos em cheio, esvaziamos o discurso. Por exemplo: ficar repetindo "é", estarei me referindo ao presente, mas sem nenhuma significação vinculada. Depois da circuvanegação, vamos ao Santo, que diz que Deus é o único ser que pode se inscrever de maneira plena no presente, pois é capaz de influenciar nele, alterá-lo, sem que para isso passe a tratá-lo como passado de Si mesmo. Não sei se me fiz entender, de toda forma, é bastanet complexo, mas proporcionalmente grato quando se compreende. Uma pérola deste que é um dos quatro pilares teóricos da Igreja Católica, que Deus a tenha! Um aparte, hoje pedi a Deus que não estivesse brincando comigo, pedi que realmente me deixasse viver este sentimento que Ele inspirou em mim por uma mulher e que eu não fosse perdê-lo num tempo obrigatório que terei de viver longe de minha fonte amorosa. Agora, revendo as postulações de Santo Agostinho, acho que pedi a Deus para ser um pouco Deus nos próximos dois anos.
Post Scriptum: por favor, visitem também o blog "Presença", onde foi postada hoje outra poesia minha. Flores, para quem gosta de flores.

Nov 22, 2006

É preciso ler os gregos


Alguns parcos leitores de meus excertos criticaram explosivamente meu posicionamento acerca da substancialidade das palavras, uns disseram que as vêem como "míseros ornamentos", outros, como "única ponte para se acessar o real" (um ou uma, não digo, em específico, acusou-me de não acreditar em namoros... peço aos demais a licensa de desconsiderar sumariamente este comentário). Pois bem, opiniões tão diferentes só corroboram minha opinião de que os dois extremos são igualmente defensáveis e, por meio desta tópica, mais precisamente, tópica do uso do argumento do outro ("Retórica", Aristóteles), dou por encerrada a questão... De qualquer forma, agradeço a todos os comentários e muito me felicito por serem minimamente indícios de vida, de espírito em chama, como diriam os clássicos, mas peço que doravante sejam postados no blog e não enviados ao meu e-mail pessoal. Como vivo deste blog e a ausência de leitores pode me trazer problemas de ordem argento-prática, em silêncio, adulo vocês postando um conto, também das antigas, que considero em aberto. Encorajo a todos, portanto, a sugerir alterações, complementos, cortes e afins, além dos sempre bem-vindos comentários e críticas.


Quando se morre

Dentre ocasiões inevitáveis (isso, obviamente, sem considerarmos o fato de que toda ocasião adquire o estatuto de inevitável, se remetida e a uma perspectiva contínua e relativística do tempo), a morte talvez ocupe a posição de maior destaque no intelecto humano. Por isso ou para isso, quando se morre, após um tempo considerável de vazio pré-criativo, começa-se novamente a tecer o mundo em que o corpo irá se enganar pelos sentidos durante um tempo determinado e que varia de vez para vez.
Por saber-se onipotente na trama engendrada a que se submete, e depende, o espírito humano arquitetou mecanismos que o impedem de morrer ao sinal de qualquer situação adversa (o que certamente seria uma saída preferível, mas pouco engrandecedora). Dois deles fabulosamente se revelaram imprescindíveis para a perpetuação da vida: a impossibilidade de saber quantas vezes já se deu o processo e a incapacidade de se descobrir qual das pessoas imagina tudo, enquanto o resto lhe serve de meio para entreter-se. Na pretensão e no eterno dorme o demiurgo.


Finalizo comentando que a capital do Brasil amanheceu com sua típica manhã de início de verão. Calor ao sol, frio dentro das casas, gélidos apartamentos, em parte, metáfora de alma. Também gostaria de indicar um site de poesia independente, o Presença (www.blogpresenca.blogspot.com), onde foi postada uma poesia minha nos últimos dias. Vamos todos expandir, expandir... Vale a visita, senhoras e senhores.

Nov 21, 2006

A substancialidade

Ontem no "Genésio" (bar muito bom da Vila Madá, mas um pouco caro), um casal de desconhecidos travava árduas discussões com o restante da mesa acerca da possibilidade de estarem ou não namorando. Tudo muito banal, sem propósito e muito mais ligado às experiências individuais de cada um deles do que a posturas diante de costumes tradicionais. Minha única intervenção foi perguntar a eles se estavam apaixonados, o que gerou um silêncio funesto na mesa por alguns segundos, alguns risos, mas enfim... A reflexão que me tomou durante dois ou três minutos depois do ocorrido, e que talvez importe mais do que se a Carlinha é namorada do Gigante ou não, é de que as palavras guardam seu peso e sua substancialidade de maneira análoga à possibilidade de uma ocorrência. Explico-me: é tão verdade que afirmemos que as palavras não tem peso nenhum e o que vale é o instante ou a projeção de que derivam, quanto afirmarmos que mais vale o acordo sobre o fato,instaurado pelo discurso, do que o próprio fato em si. Assim, a palavra namoro, tão discutida entre os dois arquitetos, teria naquele instante peso nenhum e todo o peso possível, simultaneamente, a depender das possibilidades em que estiver, ou vai estar, inscrita. Pois o fato oculto na curva da possibilidade de ocorrência pode ter todo o valor do mundo - e assim, corpo, peso, substancialidade, importância - ou ser somente atavio do espírito, motivo de angústia, como aqueles riscos de fogo que eu via nas festas juninas de minha infância mineira. Se bem que os buscapés sempre machucavam alguém mais tolo!
Como lembrete: de hoje a domingo rola um seminário de cinema e psicanálise no Centro Cultural Banco do Brasil, não que eu tenha ido em versões anteriores, ou mesmo tenha saído muito de casa ultimamente, mas pelo nome (sem circunstância) parece bom.

Nov 20, 2006

A ópera do malandro

Em muitas vezes, mesmo felizes, gostamos desta idéia de volta ao útero, de retorno a sensações prazerosas ou de conforto. Muito da minha vida neste momento é desse retorno, desse acerto de contas com a memória. Então escolhi para postar hoje, sem mais delongas, um dos meus poemas mais imberbes, de oito a dez anos atrás.

Castigo

Nos tacos corridos
Da casa morta,
Os passos vêm vindo,
Transpassam portas.

Tamanho o medo
Que me derrota,
Altera-se o enredo,
Nota por nota.

O frio porão,
Invade, o ser.
Os sonhos são só
O que posso ver.

Enfim se aproxima,
Vem falar comigo:
_Meu querido filho,
Acabou o castigo.

P.S.: o título da postagem se refere a uma das músicas eclipsadas do musical do Chico, só como referência de reflexão.

Nov 19, 2006

O fim

Todas as coisas no mundo começam de um fôlego, se definimos fôlego como algo depois do que é e antes do que vai ser. O fim é o que verdadeiramente importa e vem acompanhado de bandeiras, passeatas, passistas, tanques e nudez. O começo, o outro limiar do fôlego, só tem autenticidade quando não se anuncia. Se precisou ser proclamado, distinguido, requsitada sua valência, é que não tem forças para ser chamado por si só de começo de algo. Autêntico foi meu amor pelo mulher que me incentivou a começar a escrever neste blog, mas não este blog, que se vale de um pequeno proêmio a fim de alcançar seu intuito inaugural. Somente o amor, em geral, seria suficiente para gerar dedicação e postagens? Sim, certamente, mas valho-me também do amor de e por alguns poucos que já haviam me encorajado estas paragens e do meu amor pela arte, sobretudo, como razões de começar estas aventuras. Este blog, por fim, é feito de poemas, canções, roteiros, contos, peças, romances, musicais e tudo o que for permitido enquanto forma para vazar o verbo. Agradeço de já os olhos claros da minha bonita e de outros alheios que irão derramar uma paixão ou outra nestas linhas. Não prometo retribuição ou comentário, mas comente, se quiser. Mas, principalmente, pegue o que encontrar de arte e vá depurar em ausência suas sensações!