Oct 15, 2008

A jangada de pedra

Os críticos mais tradicionalistas freqüentemente propõem entraves aos romances de Saramago. Dois dos mais razoáveis seriam a falta de verossimilhança das personagens, que invariavelmente se apresentam como filósofos natos, como também uma certa e mesma chave com que o romancista ergue todos os seus livros e que os põe a funcionar. Há, entretanto, uma qualidade tão esmagadora na prosa do autor português, que deveria fazer esquecer essas ressalvas. Não uma qualidade estética, que a priori não possui qualquer poder mnemônico, nem qualidade gerativa, que a política do homem não redime sua obra; mas talvez uma característica que poderíamos chamar de "qualidade de recepção". Saramago renova no leitor a vontade de ler romances! O leitor mede, pesa, paga o livro, toma fôlego e, nas primeiras páginas, diz consigo: "Por que parei de ler romances?" E promete: "De hoje em diante lerei, pelo menos, um romance por semana!" Finda a leitura, infelizmente, tomará nas mãos um romance de outro autor - Flaubert, por exemplo, impressionantemente sem defeitos - e aquele pensamento se postará imperceptível nas paredes da memória. Até, porventura, numa estante, se deparar com o sorriso de outra jangada de pedra.

Fica um poema dedicado a este distinto criador português de sonhos:

poema jardineirinho

mãe e filha cultivavam cores ao fundo de casa

certo dia a pequenina

se a gente não planta nada
elas não têm de morrer
a semente é que faz a flor não ser para sempre

a mãe enterra os olhos na larga sombra das telhas
nas mãos de terra nas covas
herdadas no rosto da filha

3 comments:

FlaM said...

Que bonito, Guto!
bj, f

valéria tarelho said...

não li a jangada de pedra (e agora entrou para minha wish list), aliás, sou "semi-analfabeta" em termos de Saramago (QUE v e r g o n h a).
pelo pouco que (pesqui)sei, você "reproduziu" o universo (realismo) mágico, o olhar do mundo pelos olhos de uma criança, as figuras de linguagem elaboradas...

arrisco dizer que "jardineirinho" foi intencional, fazendo um contraponto ao título "a maior flor do mundo"...não sei.

o que sei é que você criou um clima de incomensurável ternura logo no primeiro verso e por tudo seu que já conheço pude perceber o cuidado com a poesia em si.
extremamente feliz, o resultado!

um beijo, de gratidão!

Guto Leite said...

Caríssimas, obrigado! E fiquei muito feliz, Val, foi a primeira vez que alguém citou outro poema meu dando a sensação e obra e tals. Obrigado mesmo pela generosidade. Sigamos e arte!