Oct 29, 2008

Da capo to coda

Notícia boa para os escritores, mas não notícia nova! A Petrobrás mantém um generoso programa de incentivo em que uma das categorias prevê o financiamento da escrita de um livro em prosa ou poesia, além de uma generosa ajuda à editora que se propor a publicá-lo. Poderia parecer algo suspeito, mas uma fonte inatacável me disse que é um trabalho muito sério e justíssimo em relação às escolhas. Portanto, aqueles que se animarem, e tiverem bons livros e projetos na gaveta, eis uma grande oportunidade para publicação (dentre os leitores habituais, sei que o Heyk e, talvez, a Béa já se prontifiquem). O prazo é dezembro, sigamos! Por hora, e por conta de uma semana de Seminário sobre o imortal Machado (ainda mais imortal nas celebrações infindáveis do centenário de sua morte), deixo o poema que abre e o poema que fecha minha próxima tentativa de multiplicar relevâncias. Conto com a crítica impecável que encontro sempre por aqui e que me anima e incentiva imensamente!


primeiro as nuances depois a voz
− uma chuva branda – divide os guarda-chuvas
o corpo
debruado
perpetua em sua cesta a desembocar no futuro

se há algo imutável
no fim de todas as coisas
este é o silêncio

a morte dentro do lago

um barco letárgico flutua no lago da noite
nele foi plantado
um corpo

tudo diz ser suicídio não assassinato

o número exagerado das pequenas tábuas suspensas
a indiferença constante dos peixes e dos insetos
o pó superficial que deita a casa de máquinas
o verde conspurcado o mexerico das algas

nada é indício

o vento amarelo traz sensações de incômodo
quando dobra
há um movimento suspeito no corpo
do barco

Oct 22, 2008

Traduzir

Como alguns sabem, há oito meses mudei-me para Porto Alegre, para dar uma ajuda pra minha mãe num momento complicado. A pior parte deste processo, certamente, foi perder a chance de um amor e a companhia dos meus amigos. Se pensarmos bem, artistas de alma são meio atemporais, acidentalmente vivos e despertos, criando incessantemente à espera de que faça o máximo possível de sua arte antes de morrer ou se tornar célebre. Exageros à parte, a chance do amor, como todo amor entre homem e mulher (e variações), foi esfriando com o tempo e zut!, acontece, como dizia o mestre Cartola. Dos meus amigos, entretanto, a falta se transformou numa pedra de praia, cercada pela areia, e da qual só sabemos ser antiga e irremovível. Passei meses com este tema rondando os meus versos, escapando com graça da minha poesia, ou melhor, comigo o rondando, escorando-me, dele desenhando com as pálbebras a linha azul distina do que vai haver. Semana passada, assim que me deitei, vieram exatamente estes versos que se seguem, única tradução que posso dar para amizade, ou pelo menos para a minha.

a flor de gelo

féretro é uma palavra com um cheiro frio
nenhum dos meus amigos está morto
quando os vejo sofro de saudades

Oct 20, 2008

Dedicatória


Dedico nossa arte aos geniais compositores mortos - Cartola, Noel, Tom, Chico, Gil e Caetano - que por testamento lembraram de nós em seus espólios. Dedico aos menos talentosos que hoje dizem o que é bom, que importam de suas viagens aquilo que a maior parte dos outros está gostando e impõem como modelo. Dedico ao nosso cinema, Spartacus das favelas, que erige suas imperfeições na ressalva de que o bem mais valioso do artista há de ser sua licença poética. Dedico ao nosso teatro, antecipadamente, que surgirá assim que julgarmos que basta o tempo de velarmos as décadas precedentes. Dedico à nossa dança, que dança? Dedico aos nossos poetas, todos pela cartilha de uma prosa bem feitinha que vem do interior de Minas e que, por esmero de senhor, arranjou-se linha a linha. Dedico nossa arte à ditadura, não àquela, horrenda, das mortes explícitas, mas a esta que ainda estica sua sombra de silêncios, permitindo que algumas opiniões sejam interditas, que aloja bastiões das guerrilhas nas presidências eméritas de clube e que deseducou tanto nosso povo - do berço esplêndido, artístico, de bom ouvido, pernas, intrépido e obstinado - que só faz arte popular hoje quem compõe rap ou novela. Dedico nossa arte àqueles que se enganam. Quando por fim e novamente tomarmos as passeatas como o grande entretenimento sabatino e juntos protestarmos Contra a Mediocridade da Nação - sem saber que tal cartaz é logicamente impossível -, embora, claro, os pobres levem as bandeiras e tudo o que for pesado, dedico nossa arte aos bem retaliados. Dedico também aos que se eximirem no ócio de suas casas, afinal é mesmo o tempo próprio para o sono. De tudo o que fizemos e que somos, e do qual sou culpado na carne por vinte e três pares, dedico nossa arte ao fim que se aproxima, que há de chegar logo, dedico para isso, e não haver mais no mundo a ilusão do artista!

Oct 18, 2008

Boas novas

Este é um post especial de boas novas que me ocorreram nestes tempos! A minha amiga e diretora Paula Sabbaga topou a canção "Em nome do pai" para seu filme e a Abracabrália vai gravar o samba no fim de novembro. Estou em força máxima com meu amigo e parceiro Guilherme Orosco para conseguirmos logo logo editar o Júlio César (personagem de charges deste blog)! Finalmente achei o tom do próximo livro de poemas que, até onde entendo - e não é muito - vai com jeito à altura da página 50!

Como sempre me disseram que não se contam as boas novas, visto que o primeiro impulso das gentes é ruim, atrelo às conquistas um semi-piripaque que tive nesta semana. Na quinta-feira, depois de umas mil páginas desde segunda, dentre outros afazeres, não consegui mais ler ou fazer nada que custasse esforço mental. Também surgiu uma dorzinha no centro da cabeça que só hoje veio dar lugar a Graciliano Ramos.

No cimo da balança repousa um poema.

soneto do próximo instante
a g. m.

no fim da manhã quando tudo está ermo
e as janelas e portas são laços de enfeite
permaneço imóvel num passado enfermo
com olhares prestes a inventar deleites

o sol que passeia feito um cão soberbo
surge no vão das tábuas nos batentes
no esforço extremo sobre o tempo ileso
põe tudo a mover-se em sua sombra quente

apesar dos corpos, luzes decadentes
ainda ignorarem a força que há em torno
todo o estático irá quebrar-se e urgente

entra na pressa e no furor de um forno
no ar que arremessa soam alguns pingentes
e a casa em festa perde os seus contornos

Oct 15, 2008

A jangada de pedra

Os críticos mais tradicionalistas freqüentemente propõem entraves aos romances de Saramago. Dois dos mais razoáveis seriam a falta de verossimilhança das personagens, que invariavelmente se apresentam como filósofos natos, como também uma certa e mesma chave com que o romancista ergue todos os seus livros e que os põe a funcionar. Há, entretanto, uma qualidade tão esmagadora na prosa do autor português, que deveria fazer esquecer essas ressalvas. Não uma qualidade estética, que a priori não possui qualquer poder mnemônico, nem qualidade gerativa, que a política do homem não redime sua obra; mas talvez uma característica que poderíamos chamar de "qualidade de recepção". Saramago renova no leitor a vontade de ler romances! O leitor mede, pesa, paga o livro, toma fôlego e, nas primeiras páginas, diz consigo: "Por que parei de ler romances?" E promete: "De hoje em diante lerei, pelo menos, um romance por semana!" Finda a leitura, infelizmente, tomará nas mãos um romance de outro autor - Flaubert, por exemplo, impressionantemente sem defeitos - e aquele pensamento se postará imperceptível nas paredes da memória. Até, porventura, numa estante, se deparar com o sorriso de outra jangada de pedra.

Fica um poema dedicado a este distinto criador português de sonhos:

poema jardineirinho

mãe e filha cultivavam cores ao fundo de casa

certo dia a pequenina

se a gente não planta nada
elas não têm de morrer
a semente é que faz a flor não ser para sempre

a mãe enterra os olhos na larga sombra das telhas
nas mãos de terra nas covas
herdadas no rosto da filha

Oct 10, 2008

Homenagem a Gabriela

Depois da ladainha do post passado, que trazia um poema a dois versos do ridículo, o deus que cuida da poesia e seus aliados me foram muito generosos nestes dias. Não é caridade se medirmos o alto nível de sacrifícios que me exige diariamente. Enfim, vou feliz para o fim de semana depois de alguns poemas que achei bons, uns dois não muito felizes e um que acho com alguma chance de posteridade. Posto aqui um dos que gostei, sem história prévia, pois espero que ele fale por si. Homenagem também a uma amiga de alma, inteligente e bela, a quem Deus, o original, o das igrejas, só não fez minha irmã porque erra vez ou outra. Arte e paixões a todos!

versos para Gabriela

te gosto tanto, minha amiga,
que queria te ver morta

para mentir aos outros
que nos reconciliamos

este silêncio é o mesmo
que será em teu velório

quando me indagarei
das razões inexistentes

enquanto os outros encontram
a verdade de seus corpos

morra, então, morra logo
morra tão subitamente

que eu nunca mais te perceba
na distância dos remorsos

que de longe eu me aproxime
pros cantos religiosos

e confidencie aos presentes
o quanto nós fomos amigos

que em vez nenhuma brigamos
nunca nos desentendemos

esperando que a mentira
siga a lógica dos corpos

permanecendo verdade
na vigília do velório

Oct 7, 2008

Restos

Há tempos, num evento, o Carpinejar comentou que blog de poesia era prática perigosa, por exigir diariamente grande estro do poeta em sua arte. Não me importei muito com a admoestação à época - até disse algo neste espaço a respeito -, mas hoje me arrependo, por motivo um pouco diverso do apontado pelo poeta. Continuo escrevendo poesia religiosamente, mas meu senso crítico anda severíssimo. Repreendo em mim cada tema, verso, quebra, rima, sobrando-me muito pouco para trazer aos que frequentemente me felicitam com suas leituras. Hoje, excepcionalmente, e me perdoem por isso, sirvo-lhes restos!

Com o tempo, parece, ainda hei de concordar com o Fabro plenamente. Muita arte a todos! E vida!

guizos

a tristeza é um guizo
no pescoço do poema
soando aqui e ali
os seus ruídos

as pessoas ouvindo
que se aproxima o bichano
rápido se emocionam

quanto mais algazarram
enternecidas
mais o corpo do bicho serpenteia

o poema bípede
no entanto
é o que vem soar
melancolia

como força
nua e silenciosa
que um dia enlaçará os gritos

a nudez do verbo entre um verso e outro
a morte que dobra no interior do corpo

Oct 5, 2008

Samba!

Hoje posto em homenagem ao Éverton, do blog linkado "Apesar do Céu". Na sexta, conheci seu projeto de samba aqui em Porto Alegre. Além de uma ótima escolha de repertório, sonoridade e alegria, só de conseguir manter os pandeiros e tamborins nesta terra tão avessa aos requebrados, este poeta já merece meus aplausos efusivos. Posto uma letra de samba que, se a diretora aprovar, figurará de trilha sonora do filme de uma amiga e gravaremos em novembro. Vejamos... Um domingo imenso a todos, repleto de arte, e, aos que acreditam que esta representatividade ainda é uma fórmula válida de política, bons votos!

Em nome do pai
Guto Leite & Thiago Lourenço

Onde será que está?
Será que alguém viu?
Quem pode me contar
Saiu.
Se foi sem me avisar,
Não se despediu.
Por que não quer voltar?
Sumiu.

Às seis da manhã,
Eu vou.
Depois de brincar,
Eu vou.
Correr, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar,
Meu pai.

Sorrir amanhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, abraçar,
Eu vou.
Chorar pra abraçar meu pai.
Chorar pra abraçar.

Vai ver é aquele ali.
Parece comigo.
O mesmo ar, feliz
Menino.
Olá, como é que vai?
De onde que é?
Pensei que era meu pai,
Não é.

Sorrir da manhã,
Eu vou.
Se Deus me ajudar,
Eu vou.
Chorar, pedalar,
Eu vou.
Eu vou para achar meu pai.

Às seis amanhã,
Eu vou.
Brincar de depois,
Eu vou.
Correr, abraçar,
Eu vou.
Correr pra abraçar meu pai.
Correr pra abraçar.

Oct 2, 2008

Do tempo dos cruzados

Às vezes acho em meus arquivos coisas tão antigas! Como este conto, com quem devo ter lutado em 2003 ou 2004, época em que ainda não os temia. Bom que é curto, que quase não existe. Muita arte a todos nesta sexta! Apaixonem-se, por favor!

Déja vu

Quem poderia imaginar que a solução tão buscada para seus anseios se revelaria de forma tão simples? Fez economia por trinta e quatro meses, acertou os detalhes para que os outros pouco sentissem a sua falta e comprou um discreto, mas eficiente, veleiro. Dentro dele, depois de esperadas tormentas de viagem, com a ajuda das estrelas e de um GPS, estagnou-se a poucos metros da Linha Internacional de Mudança de Data. Como a Terra segue de leste para o oeste, indefinidamente, até que provem o contrário, uma vez ao dia, desprende a âncora e manobra seu barquinho pelo vento dentro da região limítrofe e em direção oposta, permanecendo, assim, sempre, no mesmo dia. Em algumas semanas, notou não se sentir mais entediado. Em anos, sua aparência em nada envelheceu, além do comum acobreado de uma vida de marujo. Pesca várias vezes ao dia para hidratar-se. Circunda o barco a nado por alguns metros quando o dia se mostra quente. Achou a eternidade no ermo, na capacidade de deixar de se fazer completo a cada instante. No soslaio de parcos viajantes, fez-se imóvel e eternamente em trânsito, diluiu-se no espaço e no tempo, como a paisagem do segundo antes.