May 26, 2010

o começo de uma narrativa

Como está dito num banner eletrônico aqui no blog, estou participando de um laboratório de escritores da editora 8 Inverso. Nesta semana, escolheram o começo da minha narrativa para figurar em seu site na última segunda, 24 de maio, o que me deixa mais à vontade para trazê-la para os leitores daqui. Um grande abraço a todos e espero não decepcionar tanto com a evidência do meu esforço em fazer prosa.

Só haveria futuro

Os números nunca se acenderam tão lentamente. Até a cobertura ainda seriam onze lâmpadas pequenas e vermelhas sob quatorze vãos: um, dois, três... Ao menos estava sozinha. O elevador é um dos poucos lugares no mundo onde se estar sozinho é uma vantagem, o que é especialmente significativo para Flora, incapaz de lembrar da última vez em que se imaginou simultaneamente sozinha e feliz. O que fará quando o vir flertando com aquela mulher de voz magra e comportada que interceptou na manhã corrente com o cuidado da mão no bocal? Só agora, com um tempo imenso para pensar nos impulsos que a levaram até ali, Flora reflete que talvez tivesse sido melhor deixar passar, como das outras vezes.

Com os números crescendo em contagem regressiva, Flora retorna ao Passat branco em que via César cortar o subúrbio na juventude. Sentadas à frente de sua casa, as amigas comentavam unânimes que o motorista não valia muito, embora nenhuma tenha escapado de sua conversa fácil e de alguns amassos ao som conveniente de Cazuza. Só ela casou com ele. Mesmo após a traição flagrada nos tempos de noivado, em que toda a família se envolveu e perdeu-se a madrinha mais bonita. No quintal, aos fundos da casa dos pais, Flora acreditou catolicamente no juramento de César de que ele não aprontaria de novo. Hoje sustenta aos mais próximos que estava certa e não entende os motivos da impopularidade do marido entre os seus.

Sete. Os filhos vieram logo para engrossar o argumento e o amor entre eles. Se poderiam servir a ela como amuletos definitivos contra a solidão, rapidamente se transformaram em mais um motivo do quanto era bom que o marido continuasse por perto. Apesar de sua intransigência natural e alguma violência, ele sempre se mostrou um pai bastante presente na vida deles. Dos médicos ao longo da infância até o trabalho precoce do caçula, César era suficientemente firme e zeloso. Não trocava fraldas, claro, nem tinha intimidades com a mais velha, coisas para a mãe; contudo, é preciso louvá-lo igualmente pelo relativo sucesso das crianças. Se Flora pode sorrir diante do espelho pelo futuro dos filhos, em duas cabeças repousam os mesmos louros.

As lâmpadas e a caixa chegam mais perto do ápice. Surpreender uma traição é certamente mais difícil do que trair. Existe algo de irreversível nisso – coisa rara no mundo de Flora e de todos. Há, por outro lado, a recuperação do orgulho, mas ela nunca foi uma mulher especialmente orgulhosa: filha do meio, com um corpo de curvas acentuadas, bonita, sim, mas de uma beleza caseira, não de tirar do sério os olhos masculinos, mas de convidá-los para uma vida regrada, sem sobressaltos. Seu azar foi a existência de César, que parece não ver incompatibilidade entre os amores da rua e os de casa. Será que ele a ama assim como ama aos filhos? Que diabo a levara a sair correndo, do jeito que estava, atrás de uma discussão?

As portas se abrem e os olhos de Flora rapidamente encontram a figura do marido em meio a mesas redondas, toalhas de linho e ternos. De frente para ele, uma senhora, quinze ou vinte anos mais velha, escuta entediada a fala eloqüente de César. Ele não a traía! Ele não a traía! Contentíssima em se desfazer de uma série de atos que cogitava ainda há pouco, nem nota que os olhares dos outros começam a se acercar dela. Menos por sua beleza natural e seus cabelos cacheados, mais pela camiseta branca suja de molho, a calça jeans e os chinelos, o contraste visível que a deixava no patamar mais baixo do grande salão. Algo como se uma cozinheira, servente talvez, tivesse errado a porta de entrada e fosse um incômodo vivo a tantos negócios.

A senhora que janta com César, farta da sobremesa, flutua os olhos até encontrar a figura de Flora. Com a sinceridade comum a seus bens e idade, deixa que saia um riso fino, baixo, inocente, dos mesmos que tem até hoje ao rever O grande ditador. Surpreendido no meio da verbalização de um gráfico, seu futuro parceiro comercial se vira, deparando-se com a mulher alguns passos à frente do elevador fechado. Os olhares de muitos, o rosto pálido, o sobrepeso, o sorriso e o indicador dos andares (confundido com uma auréola) davam-lhe um ar de madona. Qual?

Pedindo licença à senhora, César se levanta e, sem dizer palavra, caminha para sua esposa enquanto retira o blazer escuro dos ombros. Num misto de carinho e vergonha, deposita-o sobre as costas da mulher e aperta o botão do elevador. De toda forma, precisa levá-la dali. Acarinhada pelas roupas do marido, Flora nem percebe o quanto as portas demoram a se abrir, os momentos novamente longos na descida, as luzes se acendendo em ordem contrária. Dali em diante, só haveria futuro. O passado é triste e seu excesso é que a fez desconfiar do marido. Um tanto a contragosto, seus dedos se enlaçam e há o diálogo silencioso entre cabelos e peito. Salvo suas diferenças evidentes, um hipotético observador no saguão diria que saiu do elevador um casal extremamente feliz.

May 21, 2010

Cada poema tem seu canto

E não é que recebo a graciosa mensagem de Dinorah dizendo que achou meu poema "H" de "Poemas lançados fora" e queria postá-lo em seu blog. Mas claro! Não é todo dia que o poema acha um canto justo que lhe guarde. O poema sempre foi teu, Dinorah, só esteve emprestado comigo. Se primeiro o vimos num livro que eu assinava, é que nossos olhos não costumam ver os poemas "em estado de dicionário", quando eles pairam sob a materialidade das coisas. Eu e ele, o poema, agradecemos muito que veio levá-lo para casa.

H

No princípio todas as palavras vinham com agá
antes.
Certo dia, por não se saberem úteis,
resolveram deixar a empresa.

Como sempre há fura-greves
e dedos-duros (embora estes não se encaixem na contenda,
o que em nada impede posarem de figurantes),
ficou o agá de hoje, de há, de halo,
de hipogrifo.

Dinorah, faceira que só ela,
hora tem, ora não tem
o pensado,
mas não dito.

Se bem que, com Dinorah,
o agá não é de princípio.

May 14, 2010

eco poético

Abri o blog hoje sem muito a dizer. Sono mais mestrado menos tempo é igual a pouca literatura, poderia ser uma síntese equivocada. Vou visitar, então, os blogs que gosto de ler e achei um poema bem interessante no blog do poeta Heyk Pimenta (http://heykpimenta.blogspot.com/) e resolvi tentar um eco aqui nestas paragens. Corram lá primeiro, se puderem, que é onde está o sentido mais espesso do poético, para depois conferirem meu eco-brincadeira. Muita arte a todos e obrigado ao poeta Pimenta!
p.s.: desculpem-me a obrigatoriedade de precisar clicar na imagem, mas é que o poema era longa e tem variações importantes nas margens dos versos.

May 10, 2010

O sonho límpido da língua

Participei há duas semanas de um programa de rádio (Dois Pontos) sobre meu novo livro, zero um, que será lançado no próximo mês, com lançamentos aqui em Porto Alegre e em Campinas (mas que já pode ser comprado pelo site da 7 Letras ou na Palavraria, em Porto Alegre). Das muitas perguntas de caráter mais ou menos amplo que respondi, uma ficou ecoando na minha cabeça e só agora eu consigo dar a resposta que queria ter dado no ar.

Assim me perguntou o professor Paulo Seben (aspas arrazoadas), notando que meus poemas variam muito sua forma gráfica no espaço da folha: "quais os critérios que você usa para alinhá-los no centro ou à esquerda?"

Na hora, eu respondi que se tratava de um recurso a mais, que eu tinha aprendido de um poeta jardineiro que eu conheci há tempos, e que depois tinha lido e estudado os concretistas, o que aumentou minha certeza na validade do recurso e na importância de entender o poema TAMBÉM como imagem.

Pois bem, a resposta que gostaria de ter dado é que a defesa de que o poema em si (por seu corpo) não pode constituir uma forma a ser significada vem da crença de que a poesia precisa ser veiculada pela linguagem material com o mínimo de perda possível, o que é claramente ingênuo. A linguagem, todos sabem, está longe de ser transparente e, com generosidade, pode ser considerada, no máximo, opaca.

Manter incólume a forma do poema parece dizer que o verdadeiro sentido segue detrás da linguagem e é ele que o leitor deve inferir em sua leitura. Errado! (Não gosto de ser tão dogmático, me desculpem) A linguagem, inclusive em seus caracteres físicos, constitui boa parte do sentido de um poema, aliás, de todos os sentidos oriundos da linguagem, na verdade. Se eu digo "mato", o leitor pensará na vegetação, no presente do verbo matar, nas formas figuradas como "matar o tempo", "matar aula" etc., mas também pensará nessa nasal interrompida pela oclusiva surda, como se dentro da palavra crescesse uma planta (olha o "t" aí de novo), como um arbusto no meio do mato. Pensará talvez que é uma palavra que demora a nascer, que passa um infinito ainda no meio dos lábios até sair e logo acaba. Creio que, por ser arbitrário, há muito de não arbitrário na escolha que as culturas deram para seus sígnos.

Não? Sim? Na dúvida, por achar que sou poeta e uso a língua como minha matéria de arte, preciso lidar com esse sentido oculto, que corre no nosso inconsciente linguístico para estacionar nalgum canto do verbo, para se atirar subitamente no abismo do nada. Nada? De alguma forma acho bonito esse jeito de matar o nada.