Aug 29, 2008

Dois poemas?


título do poema acima: "Shit"

Caríssimos, que saudade! Já ouvi um grande amigo dizer que fazer blog de poesia requer muita coragem, porque é uma arte com mais demora e requinte. Não sei, trato poesia como conversa de bar (que acham?). Existe um pressuposto teórico para isso: o único juiz possível para minha arte é a história. Claro que não vou omitir que adoro ótimas críticas e me preocupo e reviso meus versos com críticas ruins, contudo, durmo tranquilo na possibilidade que nem eu, nem qualquer outro, pode saber exatamente até onde vão meus versos. Daqui a um ano meus versos resistirão? E dez? E cem? E mais? É inútil preocupar-se com isso, então faço do blog meu caderno aberto de rascunhos e recebo, com muito prazer, todos que desejem comentar, podar, acrescentar, crescer ou sumir com meus poemas. Deixo aqui dois deles, aliás. Dois? Poemas? Rascunhos, sempre rascunhos. O que não é rascunho, é morto.

p.s.: domingo sigo para São Paulo de carro (!!!) a fim de acompanhar a gravação de outro de meus roteiros, o que resultará em alguma intermitência neste espaço. Certo que perdem muito pouco! Certo que não perdem nada que não esteja vagando dentro de si mesmos. Muita arte!

o velho relógio

dos antigos relógios de ponteiro vêm
reluzindo os aros metálicos que alguns trazem ao pulso

os que não obtiveram tal privilégio do acaso
da roda da fortuna levam o relógio do pulso desses últimos

mas ainda existem anti-quadros alguns relógios
verticais nas madeiras de estar das salas que não mudam

o eixo a quem sempre cabe saber o número da polícia
de segundos até o fim do expediente é o leva-e-traz do fluxo

Aug 27, 2008

Trading

Saudações, queridos! Embora eu esteja criando bastante (poemas, canções e contos, principalmente), tudo tem me saído de maneira muito confusa nestes dias. Como se esperasse na folha um embalo sem jeito, para depois tomar uma forma mais propriamente minha, que ame e apresente aos outros com um orgulho comedido. Por essas imperfeições, eximo meus eventuais leitores de tal desconforto. Aliás, até mesmo os exorto a ter em mãos aqueles que erram bem menos do que eu (não estou sendo argumentativamente rígido): Baudelaire, Pessoa, Dante, Shakespeare e companhia. Não, não indico qualquer brasileiro. Dos que conheço, e mortos, todos erram igual, senão pior! Há até alguns que erigem suas estátuas no túmulo de nossa frágil cultura majoritariamente iletrada, mas "deixai os mortos em paz". Dos vivos, há um e uma que são sublimes, mas omito seus nomes por egoísmo de leitor. Sim, eu sei que todos esses são incomparáveis e não devo me sentir miserável por não versar como eles, mas o que posso fazer? Tem dias que aquela criança que seus pais prenderam há tempos dentro de você acorda com mania de grandeza. Como o adulto a mantém dentro da jaula, sigo modesto, mas imensamente decepcionado com minha mediocridade.

p.s.: tudo é fictício!

Aug 24, 2008

A arte e os infortúnios

Nem sempre o mundo nos traz boas novidades. Aliás, dizem as más línguas do subsolo, que quanto mais consciente, mais difícil é manter algum equilíbrio que seja razoável. Uma vida tranquila, para mim, é um relevar de coisas. Às vezes, um estado de sublimação dos males. Alguns eventos, de súbito, podem trazer de novo o reconhecimento da misarabilidade, uma conversa (por e-mail) entre amigos, uma notícia ruim com alguém querido, um retrato antigo de familiares mortos... Não sei, e realmente reflito muito sobre isso, se a arte é o que nos guarda dessas adversidades ou o que enfeita nossos contratempos.

cortejos de outono

nas primeiras sombras de outono
os pássaros são folhas confundidos
que se afastem os homens
que são grandes
do baile nos paralelepípedos

só as aves mais frágeis folificam
ante as asas inaptas para o altivo
que se afastem mulheres
seus vestidos
cuja borda lhes fere e abafa o trino

pelos dias que houver até o início
do invisível movimento dos pistilos
que se afastem os braços
dos meninos
da penugem eriçada do arre pio

o sol corre imóvel ao seu estio
o corpo ao meio-fio a dor cipreste
que se afastem as folhas
pelos bicos
e nas flores coloridas se aquietem

Aug 22, 2008

O leitor principiante de si mesmo

O bom de aparecerem concursos literários é que te obrigam a revisar muito coisa no intuito da tarefa impossível de escolher algo para a participação. Ou se é escritor de ofício, e tem no mínimo duas dezenas de textos aproveitáveis. Ou não se é escritor de ofício, e inscreve sempre os mesmo textos, reiteradamente. Como estou mais para aquele do que para este, acabo encontrando outra dificuldade: há uma grande quantidade de textos de que só me lembro após lê-los, principalmente contos (minha já tão citada aqui falta de talento para com eles). Por mais assustador que seja abrir uma pasta (no computador) e ler uma dezena e meia de arquivos "desconhecidos", está aí algo que recomendo a todos, a experiência de ser leitor do próprio texto! Segue um encontro feliz que tive hoje, embora ainda traga evidente minha falta de traquejo. Espero expiar-me no esquecimento. Um fim de semana de muita arte a todos!

A História de Duas Tribos

Diante da urgência, ele retirara o isqueiro do bolso e se propusera a acender aquele monte de lenha seca depositada entre eles. Em resposta, os oitos jovens que tiritavam dentro de seus casacos chisparam olhos esbugalhados em sua direção. Não havia para eles mal maior do que se valer daquele mecanismo, mesmo que lhes custasse alguns momentos gelados e desagradáveis a mais. Ainda, mesmo que aquele jovem fosse reconhecidamente liberal em seus modos, além de novo no grupo, de maneira alguma poderiam deixar que aquela imprudência soasse natural e se alastrasse caoticamente no coração de todos. “Guarde essa máquina, rapaz, é melhor que façamos à moda antiga”. Embora nunca houvesse concordado com tudo aquilo, Marcos consentiu por sua condição de alheio acenando com a cabeça e retornando o objeto frio ao bolso esquerdo. Tadeu, novamente grave, buscou em sua mochila verde musgo e de cordões pretos, dois generosos pedaços de granito, arredondados, e em pouco menos de quinze minutos, já se puderam ver faíscas tímidas começando a crepitar dentre a lenha.
O brilho ali sombreava agora cinco barracas pelas árvores da mata, diminuindo consideravelmente o espaço incólume da clareira com luzes e sombras. As conversas principiadas por aqueles jovens favoreciam ainda mais o desconforto, sentido exclusivamente por Marcos através de uma inconfundível sensação de aperto. Por ora, decidiu-se permanecer quieto, com o cobertor à altura da cintura, a fim de sentir todo o calor da fogueira sem entrepostos. Permaneceu relativamente absorto durante todo o tempo, e não foi pouco, em que uma das mulheres do grupo, Leila, contava a todos sua reiterada rotina de casa, trabalho, filhos, marido e cama.
“E o que você acha, Marcos, de ter que chegar todo dia no mesmo horário?” “Quê?” Estancou com suas reflexões pirofágicas imediatamente. “Onde?”. “No trabalho...”. E todos riram, alguns levando seus cobertores à boca, tentando dissimular. “Bom, Leila, eu trabalho em colunas”, disse irônica e propositadamente. “Engenheiro? Arquiteto?”, interrompeu César, que até aquele momento tinha a atenção fixada em Leila. “Não, jornalista, escrevo colunas semanais em alguns jornais de São Paulo”. “Ah”. “Faço também uns poeminhas, mas nada apresentável”, ele quis se gabar. “Digo isso pra justificar que não tenho um horário fixo de trabalho, tenho prazos, mas, desde que eu os cumpra, posso trabalhar quando quiser”. E os outros iriam retomar a conversa, como se de antes de sua intervenção, “Mas se me permitem, acho que talvez essa seja a forma ideal para todas as áreas. Trabalhar com prazos, dentro de um máximo de horas diárias...”. “Mas isso não daria certo em manufaturas, por exemplo”, desafiou Tadeu. “Acho que daria sim, só que com prazos menores, objetivos menores e alguém gerenciando toda a operação. É impressionante o que se consegue com acordos e cooperatividade...”. Dessa vez, todos riram largamente e Marcos sorriu beneplácito, erguendo o cobertor até a altura dos ombros.
E prosseguiram metodicamente com a conversa, o que cada vez mais reduzia Marcos a um canto da roda dos jovens. Em alguns momentos trazia demoradamente o cobertor sobre o rosto, fechava os olhos e imaginava-se no paraíso de seu lar, seu conforto, todas as comodidades incontáveis que existiam em pouco mais de três por quatro. Seu colchão, seu travesseiro de ganso, suas frutas, o belo casaco de couro que não trouxe para não sujar. Além dos contraventores preferidos por ele: a televisão velha e chiada, o aparelho de som que precisava ser esquentado antes de realizar o para quê foi feito, o forninho, que tanto o serviria naquela hora, ornado de uma ferrugem espessa e de tempos.
“Talvez possamos fazer o seguinte, em vez de estipular uma ordem para as histórias, poderíamos propor um prazo, dentro do qual cada um seria obrigado a explicar sua ficção” – crepitou Tadeu, e todos riram mais uma vez. Marcos, ainda mais tímido, não conseguia de forma alguma achar naquela celebração pastiche algo harmonioso. Percebera, já há algumas semi-horas atrás, a dinâmica do grupo, e o que pareciam intervenções espontâneas de seus participantes, soavam para ele como estranhamente regulares e monótonas. Então, gargalhou forçadamente, buscando se assemelhar à euforia comum, e propôs, “Faço as honras, Tadeu! Se a fôrma é minha, eu que faço o bolo”. Ninguém riu. E a chama foi-se acalmando vertiginosa até que houve silêncio para que o intruso se colocasse.
“Houve um tempo, há alguns séculos num mundo que não o nosso, onde duas tribos, talvez as únicas existentes naquele lugar, mas não estou certo disso, por ter fraca memória, mantinham uma relação tão íntima quanto é possível se estabelecer entre dois povos distintos”. Os olhos dos outros jovens, aceitando o momento justo e imotivado das histórias em torno da fogueira, concentraram seus olhos uns em Marcos, outros em um ponto indiferente, onde pudessem direcionar outros sentidos ao entendimento. “A Tribo dos Homens era farta de alegria. Sempre que sua condição possibilitava, organizavam banquetes e bebedeiras nas quais todos se congregavam, cantando, contando história, poemas, casos acontecidos com os amigos, que ao ouvir, não se zangavam, mas sentiam-se gratos ao contador por fazer dele fonte de entretenimento aos demais membros. Não somente as festividades, mas tudo obedecia a essa ordem fortuita, mas não aleatória, em que a situação proporcionava de tempos em tempos o conforto de despreocuparem-se do todo. Sua ética: não privar de qualquer um o prazer da celebração e do acaso. Sua religião: somente não podiam sacrificar seu contentamento, independentemente dos motivos”.
“De onde está tirando isso?”, interveio, grave, Rubens. “De dois grandes escritores” – explanou Marcos – “Kafka é o autor original da história, mas foi também reescrita por Borges”. “Você está inventando... não existe isso de dois autores reescreverem a mesma história”, observou Lígia graciosamente (esta que o apresentara antes a seus amigos). “Claro que existe, é isso que os escritores fazem a todo tempo! Nem lhes contei sobre a outra tribo e vocês já estão me interrompendo...”, riu, em silêncio. Aqueles que tinham os olhos nele notaram o esboço de riso.
“A Tribo dos Outros pode ser vista como um contraponto de equilíbrio. A estes tudo se resumia ao trabalho. Mesmo que ao fim da tarde não se ocupassem de seus afazeres domésticos e de suas próprias colheitas, a dedicação de todo o restante do dia na realização das ocupações da Tribo dos Homens, a quem serviam, já lhes era suficiente para o cansaço. Pode lhes parecer que eram infelizes, mas não, principalmente no tempo em que acudiam todos os anseios da tribo vizinha é que se realizavam. Era algo religioso, a admiração absoluta em ver como eles eram capazes de desfrutar tão bem do tempo, enquanto os próprios, inferiores, sempre se viam à roda de obrigações e responsabilidades. Sua ética: de maneira nenhuma interferir no trabalho do outro. Sua religião: já disse”.
“Adão e Eva”, alguém disse. “Adão e Eva...? Não, qual o trabalho de Eva a não ser dar trabalho a Adão?”, e todos riram com Marcos, que se sentiu seguro e pronto para guinar de vez sua história. Assumiu ar imponente: “Após umas poucas gerações do establishment, a Tribo dos Homens timidamente começou a cansar-se dos festejos. Não ocorreu de maneira notável, a princípio, mas alguns de seus membros passaram a abandonar celebrações por quererem melhores as obras já feitas por seus escravos. Um entrelace melhor em seus colchões, pluma mais seleta no onde recostavam a cabeça, frutas mais doces nos vasilhames de cabeceira, casacos de maiores animais, ou mais perigosos. Essa espécie de ambição passou ocupar cada vez mais pessoas da Tribo dos Homens, até que restou somente um pequeno grupo ainda ocupado na realização dos festejos: os Fudidos”.
“Ao verem que seus senhores, alguns os chamavam de deuses, não mais se empenhariam na arte que mais admiravam e consideravam essencial, os Outros perderam a obrigatoriedade e devoção que possuíam e retornaram às suas casa e à realização de seus afazeres íntimos e particulares”. Algo da fogueira refletia no olhar de Tadeu e Marcos percebeu isso. Um fogo-fátuo deslocado e pretensioso, como se já houvesse percebido até onde aquela história poderia chegar. Dessa vez Marcos não sorriu porque não queria demonstrar nada. “Com o passar de alguns meses, visto que não se compraziam de sua nova incumbência, embora muito mais lucrativa do que a anterior, decretaram guerra à Tribo Dos Homens”. Alguma movimentação de surpresa.
“Mesmo diante de um ataque inesperado, a Tribo dos Homens foi capaz de resistir por mais tempo do que se esperava. Entretanto, ao fim de seis dias de incontáveis corpos, restaram somente os Fudidos, poupados mediante a promessa de que continuariam com seu modo de vida e se multiplicariam para logo darem mais trabalho à Tribo dos Outros. Por entenderem corretamente que o mito vale mais do que a letra, nunca propuseram lei ou educação que vigesse a maneira necessária de conduta, em vez disso, criaram religiões, lendas e histórias que seriam propagadas de diversas formas e que juntas resultariam numa compreensão relativa dos membros da Tribo. O controle mais eficaz e invisível que se foi capaz de imaginar. Fim da história”.
E todos, principalmente Tadeu, embasbacados e aos poucos, recolheram-se a seus dormitórios acossados por aquela revelação. Lígia, única que o fizera por inércia e que não compreendera absolutamente nada, retornou em instantes e insinuou-se para Marcos, que em seguida entrou de um salto em sua barraca.

Aug 19, 2008

Mesura

O exame foi ótimo! Bem menos doloroso do que o senso comum e a internet dizem que é. O que foi perfeito ao medo absurdo de dor e de agulhas. Em retrubuição a este pequeno gracejo que o mundo me fez hoje, posto um poema há algum tempo guardado dos olhos. Não que seja especial, é mais um corpo que se enconsta em outro sem deixar-se perceber.

mesura

com licença
toda
foi dando toda a licença
posso
claro
um peso leve se escora

os olhos a voz
usarás por agora
− hesita − leve
mira somente um quarto
de azulejo
nunca desvia o rosto porque chora

alguém diz que desenhos trazem sonhos

Aug 16, 2008

Minha singela homenagem a Caymmi

Hoje faleceu (infelizmente, mas, ou todos nos deixam uma hora, ou uma hora nós deixamoss todos) um dos maiores compositores já visto nestas terras. Enquanto os demais de grande porte - Caetano, Chico, Gil, Noel - mobiliza(va)m seus artícios para o engenho da canção, Caymmi parecia simplesmente ecoar as maravilhas e tristezas que o circundavam. Até mesmo suas composições mais racionais que se celebrizaram na voz de Pequena Notável, são extensões de céu, mar, montanha, festa, gente. Talvez por isso atualmente não seja tão reverenciado. Caymmi construía objetos exclusivos do sentir. No tempo em que as pessoas sentiam, ele foi o maior de nossa canção. Fecho esta mínima homenagem com uma frase do Chico e um poema meu. A frase é a seguinte: "É possível compor como Caetano ou como eu componho, não é possível compor como Caymmi". E o poema é este:

no domingo de minha morte

no domingo de minha morte
quase chorarão os meus amigos
os políticos nas ruas mais sombrias
dançarão valsas com crianças pobres

nas salas mortas da Academia
um papel de bala aproveitando o vento
se moverá entre as carteiras
rumo à ilusão da porta

está fechada

aquelas que um dia e porventura
me inspiraram versos ou canções
procurarão avidamente nos catálogos
o número da loja de molduras

e o tempo que nunca avança
− horas são as durações dos fatos −
seguirá o mesmo para os outros
o entorno frio de meu corpo exposto

chorarão meu pai e minha mãe

Buarqueanas

Ontem à noite conheci a arte de dois grandes atores! O primeiro deles, Juliano Barros, corporal, intenso, com ótimas gradações de expressão e muitíssima facilidade para cambiar do registro dramático para o cômico. A segunda, Ekin, ágil e precisa. Herdeira da prática clown, faz com que seu corpo saiba exatamente onde e quando estar no espaço, exímia na minúcia, é responsável por parte dos melhores momentos da peça. É sempre muito bom se deparar com atuações tão seguras e plenas, ainda mais com atores tão jovens!

Quanto à peça, "Buarqueanas" (no Teatro Júlio Piva, em Porto Alegre, até início de setembro), é uma boa peça. Minhas ressalvas vão para alguns deslizes musicais cometidos pela banda, que permanece no palco ao longo da peça, algums intervenções dos atores (ao escolherem, por exemplo, uma atriz com pouco traquejo para se mostrar sensual, ou uma não muito afinada para fazer o solo) e algumas escolhas de texto. Embora seja praticamente um texto extraído da obra de Chico Buarque, das peças e canções, o recorte em alguns momentos da peça não me pareceu muito feliz e, além disso, nosso melhor compositor não é decerto nosso melhor dramaturgo e muitas das falas evidenciam essa fragilidade original. Tudo isso, entretanto, não desautoriza a escolha de passar uma noite agradável na companhia dessa Companhia. Uma peça honesta, sincera e muito recomendável.

Hoje ouço uma banda que há muito quero ouvir, amanhã vou ao show de Danilo Caymmi. Abri bem um saborosíssimo fim de semana de samba!

Aug 14, 2008

Patternidade II

Ainda nos desdobramentos das questões de "patternidade", ao mesmo tempo em que alivio desavisados leitores dos meus versos desajeitados para ouvidos moucos, trago aqui uma tradução despretensiosa que fiz pra um soberbo poema de um dos melhores poetas que já passaram por aqui. Este, talvez pai de todos aqueles que se proponham a escrever na modernidade. Com cummings e Baudelaire, finalmente alço este blog a um patamar aceitável de poesia de qualidade.

Ao leitor
(“Au lecteur”)
Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire


A tolice, o erro, o pecado, a sovinice,
Ocupam nossos espíritos e trabalham nossos corpos,
E nós alimentamos nossos amáveis remorsos,
Como os mendigos nutrem seus parasitas.

Nossos pecados insistem, nossos arrependimentos são lassos,
Nós nos fazemos pagar generosamente as confissões,
E voltamos animados pelos caminhos lamaçais,
Crendo, por prantos vis, lavar todos os nossos laivos.

Na almofada do mal está Satã Trimegisto,
Que embala longamente nosso espírito encantado,
E o rico metal de nossa vontade
É todo vaporizado por este sábio químico.

É o Diabo quem tem os fios que nos movem!
Nos objetos repugnantes, encontramos encantos;
A cada dia, para o Inferno, nós descemos um passo,
Sem horror, em meio às trevas que fedem.

Assim como um devasso pobre que beija e come
O seio martirizado de uma antiga messalina,
Nós roubamos, de passagem, um prazer clandestino,
Como uma velha laranja que esprememos bem forte.

Apertados, formigantes, como um milhão de helmintos,
Em nossos cérebros festeja um povo de Demônios,
E, quando respiramos, a Morte, em nossos brônquios,
Desce, rio invisível, com inaudíveis gemidos.

Se o estupro, o veneno, o punhal, o incêndio,
Não foram ainda bordados em seus desenhos agradáveis,
O esboço banal de nossos destinos lamentáveis,
É que nossa alma, arre! não é ousada o bastante.

Mas entre os chacais, as panteras, os cães de caça,
Os macacos, os escorpiões, os abutres, as serpentes,
Os monstros esganiçando, gritando, grunhindo, rastejantes,
Na infâmia doméstica de nossos vícios,

Ele é o mais feio, mais cruel, mais imundo!
Embora não solte grandes gestos nem gritos,
Ele faria, de boa vontade, da Terra um fragmento
E em um bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! – o olho carregado de choro sem razão,
Ele imagina cadafalsos fumando seu cachimbo.
Você o conhece, leitor, este monstro comezinho,
– Leitor hipócrita, – meu semelhante, – meu irmão!

Aug 13, 2008

Patternidade

Não sei se é comum, mas vira e mexe bato à porta de algum ser do passado com um teste de D.N.A em mãos exigindo os meus direitos. No colegial, por exemplo, após um absolutamente estúpido esforço matemático, bolei uma nova fórmula pra se descobrir o número de algarismos das mantissas; meu professor, após consultar a universidade, descobriu que um matemático medieval fizera o mesmo. Na universidade, escrevi um roteiro que dividisse as telas e guiasse o foco de atenção (ou desguiasse) pela cor e pelo som; nos processos de filmagem, descobriu-se um filme que utilizava o processo. Nas minhas atuais leituras, descubro e e cummings. Não que seja tudo idêntico (lembro que os filhos não são ipsus litteris seus pais), mas muitos dos padrões lá estão, inconfundíveis! Filhos são por definição menores do que os pais (os últimos homens serão mínimos). É, realmente a originalidade é um pedaço de ar depois do abraço.

poema de meio de
sonho


ser-
iam
os grilos Jesus-
cr
istos

p.s.: há uma forma aqui impossível de ser reproduzida.



you no

tice
nobod
y wants

Less(not to men

tion least)&i
ob
serve no

body wants Most

(not
putting in mildly
much)

may

be be
cause
ever

ybody

wants more
(& more &
still More) what the

hell are we all morticians?

p.s.: in Complete Poems, Volume 2 1936-1962 (1968)

Aug 11, 2008

Fôlego de leitura



Depois de dias seguidos postando poemas, resolvi dar um tempo pro fôlego. Não que não tenha escrito muito, seguidamente (talvez efeito da morte iminente que me escuta à espreita), mas é que talvez o poema seja algo mais homeopático do que intermitente. Talvez uma imensa besteira, mas tendo a acreditar que à prosa esteja reservado o tratamento dia após o outro, continuamente. O poema não, até dos mais despretensiosos podem revirar o leitor em suas certezas. Lembro-me de um poema de Adília Lopes, por exemplo (sim, mudei de idéia): "Podia ser muito feliz / se não fosse muito infeliz". Perfeito!

Só um louco abre um livro de poemas no intuito de leitura.

Aug 8, 2008

Um final de semana de namorados

Se tivesse que dar uma dica aos poetas iniciantes, eu daria: esqueça os grandes temas! Amor, por exemplo, há alguns milhares de anos se fala dele, dificilmente se diz algo novo. Como sempre fui péssimo aluno, portanto, péssimo iniciante, posto hoje um poema sobre o amor. Aliás, um poema constante, eu o faço há um ou dois anos, sempre tolhendo versos, aumentando, criando outros... Ainda o considero inacabado. O amor talvez seja isso, uma confissão de incompletude! Um ótimo final de semana de namorados a todos!

Procura-se uma namorada

Procura-se mulher de lábios finos,
Esguios na artimanha do beijo.
Lábios de contornos generosos,
Mínimos ao largo do rosto,
Tangentes à importância diminuta dos prazeres falsos.

Procura-se mulher com olhos de quem nunca teve um namorado.
Para quem tudo surpreende e encanta.
Procura-se aquela que não teme
Enganar-se como uma criança pequena,
E ria dos planos como quem ri dos sonhos
Pois ambos pairam num bruxuleante futuro.

Procura-se mulher de corpo explícito,
Esparramado por todas as ciências mágicas.
Além do obséquio.
Procura-se mulher por baixo de roupas injustas
E temporárias.

Procura-se esta mulher
Que carrega minha alma na bolsa
Como um artefato inestimável,
Mas que constantemente me esqueça
E não se envergonhe disso
Dizendo logo “bolsa de mulher, você sabe”,
Que ria de seu sarcasmo
E de todas as jóias inúteis.

Procura-se mulher que me espante o verbo.
Não por paixão, que a hora sedimenta,
Ou por medo, que cedo vem à tona,
Mas por justiça,
No peso dos motivos.

Procura-se mulher que suma,
Quando sou grave e cortante,
De dar pena,
E volte, assim que julgar preciso
Provar-me, desenvolta,
Do valor comedido dos instantes.

Procura-se mulher sem amigos,
Familiares, conhecidos, animais
De estimação, esbarrões de metrô.
Ou melhor, que os tenha a todos,
Cada qual com sua estirpe,
Mas que traga a certeza de alma
Que tudo neste mundo é por acaso,
Senão o amor máximo.
Portanto, e por ele, valem-se todas as causas.

Procura-se mulher de alma de vento
E coração de pedra,
Para eu me fazer Davi por dentro dela,
Sem, com o tempo, perder-me
A obra-prima.

Procura-se mulher que não minta
Nem queira grandes conceitos da verdade,
Pois nada existe.
Que saiba que as grandes divergências do mundo
Terminam em um abraço
Silencioso. Ao menos deveriam.

Procura-se mulher que entenda poesia
Por afinidade fraterna,
Por parte do corpo.
Que ria redondilhas por onde passa,
Versos livres do grande ao pequeno gesto
E chore sonetos duros, à noite, acuada.

Procura-se mulher que ainda chore
De constrangimento.

Procura-se mulher que se construa
Parte viagem, parte casa,
E tenha perdido todas as passagens,
Ou que não as conheça por descuido
Fazendo-se perdê-las sempre que as acha.

Procura-se mulher que crio, se não existe,
Para que eu possa também ser
Seu namorado que, se não existo,
Ela crie.

Procura-se mulher que já existe,
Pagam-se dez mil reais de vida.

Procura-se esta mulher constantemente
Desconhecida e inacreditável.

Procura-se com urgência
Para que me abra os olhos
Pela manhã
Adentro
E pelo resto do dia
Eu corra sonolento
Para ter-me ardendo de vida
Nos seus olhos
Quando o dia se endivida no limiar do crepúsculo.

Procura-se mulher
Que me feche os olhos
Definitivamente.

Procura-se uma mulher,
Somente esta,
Que vive a portar o válido motivo.

Procura-se minha namorada
Ainda vivo,
Para poder não procurar mais nada.

Aug 6, 2008

Le flaneur

Espero que as caríssimas não me sacrifiquem sem uma segunda leitura, nem mesmo que os queridos tomem estes versos apressadamente como lance de desforra. Escrevi há uns dias e eu mesmo me acusei de machista antes de destrinchar seus sentidos possíveis. É interessante como muito da ironia parace vir numa forma estreita e justa que precede as palavras. Depois da hermenêutica, achei quatro ou cinco saídas irônicas destes versos e pude, enfim, continuar me fantasiando de um homem justo!

elegia do avesso

que não se enganem as mulheres os homens
sempre andam a pensar em sexo
poetas são aqueles que às vezes pensam como mulheres
quando erram

Aug 4, 2008

Um silêncio de fruto

Embora já faça quase dez anos de sua morte, somente agora consigo postar poemas referentes ao meu avô e à parte de minha infância que corri entre os não muito pomares de seu sítio. Estranho é que sua morte nunca realmente me exasperou. É só um silêncio, um silência de fruto, um silêncio de cão. Vai entender estas coisas de vida e morte e tudo que paira entre elas!

abarrotado

por todo o mês de junho
poemas pintavam de preto
algumas árvores
do sítio de meu avô

casca que rompe nos dedos
conteúdo disforme
caroço que alguns engolem
e outros não

esperávamos a época
madrugávamos
sujávamos por dentro e por fora
nossas horas de vigília

guardo contudo a tristeza
numa espécie de ressalva
:
a melhor jabuticaba
nunca sacia ninguém

Aug 2, 2008

Morte e vida severina

Fiquei tão feliz ao ter feito este poema. Rasguei rapidamente a folha de um xerox que tinha espaço em branco e transcrevi duas cópias para amigas que sentam próximo. Acostumadas com minhas brincadeiras, acharam que era alguma traquinagem, que eu estava tripudiando ou algo assim. Talvez também tenha havido um pouco de vergonha da falta do hábito de receber poemas, enfim... Uma delas gostou verbalmente, a outra leu em silêncio cabisbaixo. Ambas exigiram que eu assinasse o presente (assinam-se os demais presentes?).

Não sei se é um presente digno de também oferecer pelo blog. Se não, pela idade, certamente irão ser piedosos comigo. Fiquei tão feliz de ter feito este poema! É um poema que qualquer criança poderia ter feito, qualquer um que se deixasse estar, que estivesse no caminho festivo destes versos. Parece muito meu primeiro poema! Sinal de que estou num bom caminho... Vem-me agora, depois do equilíbrio razoável de um texto introdutório, que se todos lessem poemas com gravidade, cada poeta poderia ficar incumbido de escrever um único poema, um só. Ao longo de toda a vida se debruçaria nele e pronto. Teríamos algumas centenas (exagero? crueldade?) de poemas de uma vida inteira... Imaginem que maravilha!

Ficam as razões de um eufórico sábado à tarde!

o Homem e a Pedra

o desejo é uma pedra jogada para longe
andamos até ela jogamos novamente

envelhecemos

perdemos distâncias e a força
a morte é um último trajeto para perto



p.s.: há uma brincadeira "verbivocovisual" com as palavras "longe" e "perto" que, pelo formato do blog, não puderam ser reproduzidos. Longe, longe do restante do verso. Perto, perto do restante do verso.
p.s.2: Issac, meu caro, não consegui fazer a ótima alteração que propuseste. Ajuda? Arte a todos!

Aug 1, 2008

A morte da metáfora


Um conhecido se matou (sim, suicidar-se não está fora de moda). Pouco o conheci um dia, ainda menos depois que me formei e saí de Campinas. Lembro, contudo, quando o encontrei num bar alguns dias após o 11 de Setembro e ele me disse: "você faz poesia, né? Por quê? Olha isso! Não existe mais metáfora, a metáfora é impossível!". Ele queria dizer, acredito, que há um momento em que a figura impossível está tão perto do conteúdo denotado que as figuras de linguagem se desmancham... Brilhante, genial! Não sentirei a falta desse meu conhecido, mas o mundo o sentirá, certamente o sentirá. A natureza medíocre de nossos tempos sucidirá todos os brilhantes!