Apr 29, 2008

Concisão contemporânea?

Nessa odisséia de concursos literários, editais e festivais de música, achei um concurso de haicais promovido pela Secretaria do Estado do Paraná. Como meu contato com essa forma foi sempre bem escasso (histórias literárias e Leminski, no máximo), corri ao site indicado no edital do concurso para aprender mais a respeito e compus sete ou oito poemas do gênero. Salvo a forma muito estrita e o "termo de estação" quase obrigatório, esse modelo de origem japonesa traz, pelo menos, a ausência das rimas e a concisão como características muito recentes em nossa tradição lírica. Não sei se os leitores de hoje encontram paciência ou relevância em epopéias, odes ou, até mesmo, sonetos. Também desconfio que se impressionem com tal ou qual rima tirada da algibeira. Em algumas vezes, às vezes muitas, tenho a impressão de que estes poemas são mais compostos mais para um determinado escol e para a academia do que propriamente para quem os queiram ler. Enfim, não seria tacanho a ponto de afirmar que os haicais são o caminho da poesia, obviamente, mas pelo menos trazem boas sugestões e caminhos interessantes, a serem seguidos, adaptados ou abandonados. Seguem os experimentos.

Imerso na pedra
Rústica, sobrevive um
Coração de estátua.

Pássaros na chuva
Sobrevoam as mais raras
Áreas do possível.

Os cascos faíscam
Os espíritos dos jóqueis,
Se o cavalo é arisco.

Apr 25, 2008

Incursões ao teatro


Nessa segunda, começa uma fase estranha nas minhas produções. Já havia escrito antes musical e cinema, mas nunca algo próprio para ser encenado em palco. Embora seja bem curtinho, acho que tive uma amostra das dificuldades de se escrever estritamente para teatro. Espero não decepcionar minhas colegas que confiaram suas atuações ao meu texto. Gostaria, claro, de contar com o costumeiro contraponto de extrema qualidade a que sempre sou submetido neste blog. Grande abraço a todos e arte, da maneira mais intensa!

p.s.: não passamos na semifinal do festival, mas, de toda forma, a recepção do público, dos organizadores e a alegria dos integrantes da banda fizeram valer os vôos a Sampa e as viagens!

O que revela o amor

No palco, quatro personagens representam quatro fases da vida de uma mesma mulher. À frente, do lado esquerdo, é uma menina, que brinca com um enorme coelho de pelúcia. No sentido horário, em diagonal, ela está com um longo vestido, segurando uma taça vazia. Em seguida, sentada a uma mesa, é consolada por uma garrafa de aguardente. Por fim, à frente, do lado direito do palco, ela está velha, assistindo à televisão, em uma sala de estar. Ela é a mais imóvel de todas, pois todo o resto é a forma como ela se lembra da vida.
Todas agem normalmente em suas respectivas cenas, quando a mais nova começa a falar. Há uma dinâmica nos movimentos fora de foco de cena. Neste primeiro momento, tudo feito com força e agitação.

MENINA: No começo da minha vida, eu era assim. Cheia! A vida que transbordava de mim enchia tudo o que me cercava e os dias eram uma coleção de romances. Romance, não no sentido que se dá, mas afeto, carinho, cuidado. A lei física e básica de que todos os corpos se atraem. Assim eu era com tudo e tudo era assim comigo. O sonho e a vigília eram os meus olhos se movendo. Faltando algo nas coisas, se eu fechasse um deles. Só naquele tempo eu sabia que o único amor possível é imediato e pequeno. É por isso que as pessoas brincam. Brincar é a única forma de amar de verdade.

Diminui-se um pouco a dinâmica dos movimentos de todas as cenas. A menina, em silêncio, volta a brincar com seu coelho de pelúcia. A mulher de vestido começa seu testemunho.

MULHER DE VESTIDO: Depois, descobri um mundo de brincadeiras mais interessantes. Homens, mulheres, amigos, parentes, colegas de trabalho, almas, paixões... Cansa! Mas os resultados são muito, muito, melhores! A vida se tornou uma grande festa de gala, onde estou sempre bonita, elegante, no centro das atenções. As pessoas passando, as bebidas passando. Não senti muito bem o gosto das coisas, mas provei de tudo! Pouquíssimas vezes eu fiquei com a taça vazia, como agora, e em todas elas apareceu alguém que a enchesse. (Alguém lhe enche a taça) Obrigada. O amor é isso, um encher de taças.

Decresce ainda mais a intensidade dos movimentos das mulheres. A mulher de vestido é interrompida pela que se embriaga.

BÊBADA: Se casei? Claro que casei. Tive um casal de filhos de encher os olhos. Mas fiquei no meio do caminho, né? Não sou minha mãe, infeliz, mas casada, até o fim da vida. Não sou minha filha, que aos vinte anos decidiu não se casar e não ter filhos. Hoje eu imploro pra eles virem almoçar comigo um domingo por mês. (Grande pausa) Tive câncer de mama, nada mais baixo. Gastei os meus amores maduros na ioga, na esteira, no bingo, e nisso aqui. (Tomba um pouco a garrafa de pinga) Não fui triste. A cachaça não bate a porta, não grita, não revida, se eu jogo fora! Queima por dentro, mas só nos primeiros goles. Com certeza eu tive menos primeiros goles do que os outros. Ta aí, o amor é um copo de pinga.

Os movimentos de todas estão quase mínimos. A menina acaricia o rosto do coelho, delicadamente. A mulher da festa passa o dedo no bocal da taça. A mulher embriagada, deitada no chão, rasteja-se minimamente em direção à garrafa. A velha desliga a televisão, levantando-se.

VELHA: To me cansando das novelas. Fico longe! Não mostram nem de perto o que é viver. Só as mulheres de meia idade e as velhas estúpidas gostam de novelas. (Abre a porta da rua) Fui feliz e infeliz. Fui amada e desamada. Fui filha, mãe. Mandei, obedeci. Fui bonita! E aprendi a entender como o tempo mudou minhas belezas. Tudo isso é natural! (No meio do público) No que é natural, não há ressentimento. O cruel da vida é o mistério. É não saber nada sobre o próximo segundo. E é isso que dá a sua graça. O que eu não vivo, eu sonho. Envelhecer é, por isso, passar a sonhar mais. (Se agacha e puxa a flor do meio do público) A morte é uma flor arrancada. Toma! Toma! (Oferecendo ao público. Assim que alguém aceita) Difícil saber quando se vai... O amor?

Todas as mulheres se encolhem, abraçando o joelho com as mãos.

Apr 17, 2008

Música por instinto

O assunto de hoje é de fora pra dentro. Viajo a São Paulo para participar de um festival de música, defendendo a música "Revés", minha, de Daniel Coelho & Gui Alves. Lembrei-me então de algo, a meu ver, interessante com relação à composição desse música. Quando a diretora do meu último roteiro (parceria com Ivan Rodrigues)autorizou que fizéssemos a trilha, fiquei alguns dias começando e desistindo de melodias e letras. Quando finalmente veio, numa noite de meio de semana, escrevi nuns cinco minutos toda a letra e gravei a melodia num gravador. Alguns meses depois, quando fomos gravar, nosso produtor e os verdadeiros músicos da banda comentaram como foi feliz o uso da melodia em tal ou qual frase, como ela parece refletir e casar com a letra, além de uma frase de que me lembro perfeitamente: "esse trítono ficou muito bom, Guto". Embora eu saiba o que é um trítono e outras partes mais técnicas, o interessante é que nada foi construído conscientemente ou planejado. Disso surgem, pelo menos, duas hipóteses: ou minha cabeça, a partir do momento em que foi exigida, trabalhou na tarefa subconscientemente para depois içá-la ao nível consciente, ou o sensível tomou as rédeas no momento em que estava mais predisposto a isso. Claro que há outras hipóteses menos razoáveis, mas atenho-me a estas para ainda acreditar em um pensamento de Schopenhauer, aqui um pouco deslocado, de que a forma gera inatividade ao espírito, ou, os espíritos só realizam algo válido quando não se guiam pelo método. Posso concluir isso? Segundo ele mesmo, sim, eu posso.

Segue a letra da música, quem se animar, pode ouvi-la pelo link. Muita arte e rebeldia de espírito a todos!

Revés

Queria ter se dado bem,
Não deu.
Queria ter um pequinez,
Morreu.
Ficou um mês em cana certa vez
Porque mentiu,
Viveu dois anos fora do Brasil.

Queria ter falado inglês,
Não deu.
Queria ter amado alguém,
Morreu.
Nunca criou juízo.
Nunca tirou um dez.
A sua vida toda foi
Revés, revés, revés.

Tentou bancar o tipo mau,
Não deu.
“Um filho só é o ideal...”
Nasceu!
Ficou um mês de cama,
Recebeu a extrema-unção,
Levou o hospital na prestação.

Tentou Artes na Federal,
Não deu.
No amor pequeno e trivial
Nasceu!
Teve o enterro cheio e hoje, aos pés de Deus,
Joga conversa fora, mesmo ateu.

Cheio da Terra, estreita hoje aos pés de Deus,
Muita conversa fora, mesmo ateu.

Apr 14, 2008

Outro poeminha


Nó nas tripas

devo tê-lo
feito com força
no centro do laço

quase precário
de ser desfeito
no amor das pontas

com as pontas
de outros dedos
pode ser firme

orgânico
emaranhado
de carne e sangue

pode ser seco
de pouca conta
umedecer-se

entre os tecidos
de qualquer forma
é certo que prende

o que não sei
ao que vem comigo
que até estranho

quando me contam
que tal morreu
de nós nas tripas

se morrer é o nó se desatando

Apr 11, 2008

Poema-piada

Nem mais...


O caçador e as moscas

meu poema é um exímio caçador extremamente gripado

acerta um tiro na mosca
outro para qualquer lado

quando vão averiguar
todos os tiros errados deram num mata-moscas


Nem menos... Vamos viver enquanto nos é permitido viver bem!

Apr 9, 2008

Os romanos é que sabiam

Estou lendo, por conta da especialização, mas por prazer, "Satyricon" de Petrônio. Dentre os inúmeros prazeres, as descrições de orgias, as brincadeiras e "tricks" narrados pelo protagonista, uma cena em especial me chamou curiosamente a atenção. Num jantar oferecido por Tremelquião, assim que sentaram à mesa, os homens tinham escravos a seu dispor, que lhes jogavam água gelada às mãos e com extrema delicadeza lhes retiravam a cutícula dos pés (cum ingenti subtilitate tollentibus). Às vezes me pego a refletir, obviamente dentre os prazeres contemporânea e humanitariamente possíveis, em que ponto de nossa caminhada pós românica nos tornamos imunes às pequenas práticas de gozo, aquelas que, para nosso pesar, concentram a maior qualidade dos prazeres?

Apr 6, 2008

A Grande Biblioteca


A cada página que se passa, um enorme barulho de engrenagens e gritos pode ser ouvido no interior da Grande Biblioteca. Desde que implantaram nela o inovador sistema de leitura, e separaram os gabinetes por intelecto e faixa etária, após contínua reclamação dos mais velhos, sempre que se passa uma página, as cadeiras, presas a enormes tubos de aço e de organização, desalojam-se em busca do mesmo livro, em outro lugar, aberto à mesma página ou à página seguinte, para que o leitor possa continuar seu intento. Quando se termina um livro e fecham-no, a Biblioteca busca realizada e automaticamente outro livro fechado para que o ciclo semi-fortuito de leituras não se interrompa. Em cadeiras desconexas, a um canto, ou mesmo sobre a estrutura de aço, encontram-se incontáveis moribundos que em silêncio só se beneficiam da Grande Biblioteca pelos brados exaltados pelas leituras que, ora ou outra, ecoam pelo salão, mas quase sempre chegam em confusa e intermitente balbúrdia. De todo jeito, há extremo esforço de todo o maquinário para manter a ilusão real de movimento na Grande Biblioteca.


p.s.: tenho sido diluído por um número abusivo de leituras e escritos, por isso, a escassez de comentários. Isto não sublima os sempre melhores desejos aos que visitam estas linhas!

Apr 4, 2008

Bill Knott

Salve, amigos! Estive lendo meu blog e achei que ele tem tratando muito de temas pessoais, minhas poesias, pensamentos, enfim, absolutamente egocêntrico. Talvez seja um espelho de minha fase sem muitos diálogos por aqui, mas, de toda forma, isto não se justifica. Assim, estou postando hoje um achado: Bill Knott. Nascido em Michigan, ficou conhecido com The Naomi Poems, publicado em 1968. Atualmente, é professor do Emerson College, em Boston. Espero que também se divirtam, como eu, com seu lirismo preciso e afiado. Ótimo final de semana a todos.

Worse
All my life I had nothing,
but worse than that,
I wouldn’t share it.

Alternative fates
What if right in
the middle of a battle
across the battlefield the wind
blew thousands of
lottery tickets, what then?


Poem
Dear boys and girls,
please don’t forget to
underline my words
after you erase them.


Bad habit
At least once a day,
everyday,
to ensure that my facial
compatibility with God’s is nil,
I smile.

Apr 2, 2008

Intraduzível


As linhas abaixo relatam uma inquietude literária. A quem não se interessa, recomenda-se, gentilmente, que leia apenas o poema.

Aproveitando a grandiosidade sensível e artística dos que sempre me brindam com sua presença, gostaria de colocar uma questão para, caso aceitem, troquemos opiniões a respeito. Que tipo de valor está inerente à intraduzabilidade de um poema? Claro que um contra-argumento natural é apontar que muitos dos grandes poetas (Shakespeare, Rimbaud, Dante, Baudelaire... isto não é uma ordem) foram competentemente traduzidos para diversas línguas. Também não procuro não ignorar aqui os problemas levantados nos últimos cinquenta anos acerca das traduções, que conduziriam as obras traduzidas a serem consideradas quase "versões" da obra orginal. A motivação deste questionamento advém principalmente de dois pontos. O primeiro deles, absolutamente pessoal, diz respeito aos poemas cada vez mais intraduzíveis que tenho feito. Sendo que, ou pela cultura ou pela língua, são transpostos para além da possbilidade de serem traduzidos, remetendo o tradutor somente a uma espécie de mecanismo do poema ou mote, mas não ao poema em si (crenças, crenças). O segundo motivo, menos pessoal, inquere se ser tão imerso assim em sua cultura ou língua de origem adjunta valor ao poema (algo como uma superfície duplamente laminada) ou retira valor do poema, ao torná-lo não-elemento do que seria o thesaurum literário universal? Se alguém puder iluminar esta questão, a gratidão do pretenso poeta será imensa.

Arapuca

meu avô armava a arapuca
todos os dias bem cedo
vinha cuidadosamente
trazendo o saco de alpiste
entre o corpo machucado
e o braço

apoiava com dois dedos
uma frágil madeirinha
cerrando o olho direito
inclinava-a na armadilha
por cima dos grãos de bico
no forro

depois descia pra casa
penitente vagaroso
já na mesa da cozinha
saboreava o baralho
com um copo de cerveja
amiga

que o mataria mais tarde