Dec 26, 2006

Deslocamento

É notório que a época das festas traz certo deslocamento aos mais sensíveis. Nem me refiro a mim, que tenho aprendido a ser de ferro, ao menos de longe, de ferro. Refiro-me a muitas das pessoas que tenho encontrado tristes, deslocadas, e outras tantas que se sabem infelizes, mas externam imensas capas de normalidade e sossego. Anteontem presenciei o rompimento de umas destas capas num beijo de canto de porta, realmente fabuloso. Por se tratar de pessoas que amo muito, ainda mais fabuloso. Deveria escrever uma ode a estas almas audazes, temerárias... a essas almas pertinentes. Tenho certeza de que meu Deus nasceu mais por pessoas como estas, que infelizmente tenho reconhecido cada vez menos. Em troca da ode, um haicai.

Terço budista

por me querer bem
parte da felicidade
ao pulso esquerdo

Boas festas e desfestas!

Dec 18, 2006

Contraponto

Pelo teor, de certa forma, erótico de minha última postagem, resolvi contrapor um texto quase etéreo, também feito hoje. Ando bastante inspirado, graças aos meus amigos, minha arte, meus planos, minha bonita. Em agradecimento,

De nossas naturezas

às vezes penso em guardar
os dias
ingênuo
de que são clarões
que não se guarda

marcas de água
em folha fina

por ter meu amor guardado
numa dessas marcas
clarão ela mesma
do passado
me engano de que até o raio
possa
ser guardado
no presente
e o úmido mantido na corrente
qualquer de um rio

rios são folhas puxadas
do avesso

tenho-me etéreo
imenso no breve
papel molhado clarão
amar é ser pequeno como alguém que logo não existe

Dec 17, 2006

O que não foi o começo da noite de ontem (ao menos fora de mim)

Por não morarmos sozinhos ou juntos, temos problemas práticos para o amor: hora e lugar. Digo o amor do verbo fazer, não dos outros, em que somos complementarmente perfeitos. Como é bom, então, quando conseguimos resolver as praticidades e deixar que o restante se esparrame. Ainda em seus lábios, retirei delicadamente sua saia, deixando que o tecido me ajudasse nas carícias às suas pernas. Próximos o máximo possível, nunca o bastante, revelei seus ombros, suas costas, seus seios, seu ventre. Certo de que cada parte de seu corpo merece atenção igual e irrestrita, reneguei de vez seus lábios à força delicada de seus dentes e beijei as infinitas possibilidades que seu corpo apresentava para mim. Não me apressei nem dediquei qualquer atenção a um lugar específico. Nestas horas, tenho a sensação exata de que seu corpo reconhece, além de minha admiração completa de sua força feminina, meu desejo constante por qualquer ângulo possível, meu reconhecimento da perfeição humana de seu corpo. Enlacei meu braço direito por trás de suas costas e, como um carinho longo, mas brevíssimo, desabotoei seu sutiã e desta vez dediquei-me demoradamente a cada um de seus seios, com a certeza de que havia tanto amor, prazer e cuidado, que mesmo o tempo desistiria de sua pressa para estar conosco, assistindo. O corpo dela, absolutamente em silêncio (à exceção dos lábios, também dos olhos), disse-me quando parar. Circundei-a, então, totalmente e postei-me às suas costas, de pé. Com as duas mãos puxei seus cabelos para cima e comecei a beijar demoradamente a área da nunca, costas, ombros. Retribuir minimamente a graça daquelas inúmeras e pequeninas sardas que prenunciavam a harmonia sublime de seus movimentos de adiante. No mais, tinha, sua pele, a cor matinalmente branca da promessa. Já destituído da submissão que sempre seu corpo me impunha, invariavelmente, desci beijando e acariciando suas costas, as curvas delineadas, a área da cintura... Foi quando me buscou com as mãos, ergueu-me e afundou em mim, e definitivamente, aquele incomparável par de olhos verdes.

Dec 14, 2006

De pronto

Não sei se bom ou ruim, mas logo que postei meu último comentário, algumas pessoas reclamaram da confusão do texto e da não fluidez do estilo. Talvez tenha sido por um dia não inspirado, talvez tenha sido de propósito que realoquei tantas vírgulas aos seus não-lugares de origem, como também esqueci-me de colocar outras tantas no lugar em que deveria. Tenho estado tentado a este exercício de fusão entre forma e conteúdo, na verdade. Até que ponto posso versar sobre falta e causar a sensação de falta pela forma de meu texto? É possível sugerir pela forma um sentido oposto ao que o conteúdo brada ferozmente? E que vestígios precisam ser deixados pelo escritor para que o leitor não se perca neste engodo? Este blog é um tubo de ensaios.

Dec 13, 2006

A definição pela falta


Pode parecer cético demais, talvez um pouco soturno, mas acho que a vida se define pela falta. Desde a falta original, não a que pensa, a outra, de não sermos Deus, de andarmos pela Terra, e todas as faltas subseqüentes, tudo é feito por aquilo que falta para sermos completos, ao menos em algo. Principalmente a questão do valor é que se dá pela falta. Quais são seus desejos na vida? Responda... Duvido que não passem pela falta de algo que não tenha hoje e até mesmo os sonhos já alcançados, só o são pela oposição de algo que não eram antes de ser, ou das condições do sonhador antes de alcançá-los. A maioria das faltas perpassa a vida sem grandes estragos ou estremecimentos. Algumas delas causam desconforto, obsessão, insônia... fazem com que a rotina, de certa forma, dependa de suas formulações pra construir-se adiante. Outras delas, seletíssimas, deixam tamanha lacuna que qualquer felicidade se transforma em pouco mais que alguns instantes de euforia e abismo. Estas podem levar ao ápice às avessas de não sentir falta alguma de nada e delgar a falta máxima aos outros.

Dec 10, 2006

Seguindo a série

Seguindo a série "assuntos que não me dizem respeito", assaltou-me esta tarde a reflexão, para mim, inédita, que talvez mereça ser compartilhada e propagada. Com esta nova cultura midiática de exploraçao, criação, apropriação e modificação da imagem das pessoas públicas, notavelmente, dos atores; como podemos esperar que estes continuem exercendo com plentinude sua arte. Cabe a ressalva que talvez este endeusamento dos atores não seja artifício tão novo, mas duvido que, com estas características, seja fenômeno anterior aos anos 80 ou 90 do século passado. Provavelmente, criamos tanta empatia com determinada personagem quanto seu argumento seja compentente e o ator se esvazie de si mesmo para compor aquela personagem específica (alguns diretores renomados usavam somente atores amadores em seus filmes, talvez por isso). Destarte (sem trocadilhos), é impossível por exemplo que uma pesonagem se torne absolutamente crível se, ao se inciar o filme, exclamemos eufóricos, "olha só, a Nicole Kidman", que, em si mesma, já é uma segunda personagem (divorciada do Tom Cruise, neurótica, segundo ele, de ascensão íngreme em sua carreira sem muitos motivos aparentes, quero dizer, com somente motivos aparentes etc.). O espectador, toda vez que se dispões a ver um filme qualquer (ocorrência maior nos filmes mais badalados), se depara com um desfile de inúmeros personagens a mais do que aqueles que realmente o autor do roteiro decidiu por inserir em sua trama.

Realmente, não tenho qualquer propriedade para discutir cinema e suas repercussões no real. Volto à minha insignificância de poeta. Sou? De toda forma, assistam a "Syriana".

Dec 8, 2006

Mais um supérfluo


Apesar de um amiga ter feito o gratíssimo elogio de que "Ostras" me redime de escrever mais pelos próximos meses (agradecido), insisto em comentar assuntos supérfluos de experiência vivida. Agüentem! Preciso escrever roteiros em breve e, quando isso acontece, procuro aumentar minha dose diária de filmes, então parti para os nacionais, vendo, nos últimos dois dias, "O homem do ano" e "Meu tio matou um cara". A diferença dos dois, a meu ver? Pretensão! Enquanto o primeiro se enche de armas estéticas, propõe-se a discussões sérias, prioriza cenas fortes... pouco realiza competentemente de qualquer destes; este último, por sua vez, pouco pretende de qualquer coisa e diz muito em suas nuances! É claro que a atuação no filme de Jorge Furtado, algumas em particular, são pífias e realizam a náutica função de âncoras das demais, mas é certo que o filme, em geral, se apresenta muito mais interessante e gracioso do do que aquele em que o Murilo Benício não abre a boca para falar seu texto. Declaro-me partidário sempre dos despretensiosos! Mesmo quando não alcançam o limiar da arte.

Dec 6, 2006

Ostras

São nestes momentos que menos gosto da arte, quase tenho medo dela. O mundo range, não ouvem?, levando o dia hipócrita dos desapaixonados à frente. Quando o ouço, agora o ouço!, meus sentidos despertam de maneira incontrolável, palavras em diversas línguas se fundem no meu espírito, como se tivesse muito a ser dito simultaneamente e nada no discurso para dar cabo. Não consigo fazer muito quando isto ocorre. Somente andar de um lado para o outro, compor canções, poemas, contos, roteiros, até o cansaço. O cansaço prévio e potencial de sentir tudo à moda do sr. Campos. Choro também, bastante, nestes dias em que a arte me toma para ela e desossa depois, para acanhar meu espírito em versos estonteados. Hoje tinha vinho, o que invariavelmente me acalma, me dá o sono possível de quem se entregou por todo o dia a alguma coisa. Agora vem aquele desejo ambíguo de ser tomado novamente amanhã ou esquecido. Também penso em quanto sou inacessível aos outros quando estou neste estado e tenho medo. E choro de novo.

Ostras
a Hume

nunca vi de perto uma ostra
nem pretendo
sei de sua natureza imersa
e fria
como as jóias

imagino-as pedras vivas do oceano
escuro
que começa nos abismos

quanto valem
sempre está turvo
azul
além das imensidades

as almas dos artistas
são ostras degeneradas
de presença
nunca poderão ser tocadas
ou salvas
pela pérola

A arte da surpresa

Uma das coisas mais graciosas do mundo é quando somos surpreeendidos. O gênio humano parace ter essa paixão pela surpresa, talvez única forma de ludibriar a natureza macilenta da rotina. Podemos ser surpreendidos por fatos (na visão perelmaniana do termo), coisas e pessoas, em diversas intensidades e jeitos, que podemos julgar boas surpresas ou surpressas ruim, sempre tendo em mente que a obrigatoriedade de reavaliação por parte do espírito nunca pode ser de cunho totalmente ruim. Espero... Uma das premissas básicas do objeto artístico, e esse é de fato o motivo de todo o prelúdio, é causar em quem o admira doses intensas de surpresa em um tempo curto ou doses moderadas da mesma a cada recontato com a obra. E grande parte de graça de objetos que tentaram o estatuto de arte e, a meu ver, não conseguiram, está nos breves momentos em que causa essa sensação de surpresa! No meio de trocas de canais, vi esta definição no filme "Sleepless in Seatle": "E por que ela era maravilhosa?" "Não sei ao certo, ela tinha milhares de pequenas coisas que formavam a perfeição do que a gente era junto". Talvez seja fruto de meu atual estado de paixão, mas achei supreendentemente bonito, tangencialmente universal. Hoje definitivamente foi um dia de saudades.

Dec 5, 2006

O inalienável


Antes de tudo, grande abraço aos meus queridos que têm visitado o blog, cada um de seu jeito próprio vem trazer suas peculiaridades, seus manejos, sua arte. Admiração intensa por todos vocês que já postaram neste espaço até hoje, muito de alma essa admiração!


Estou doente desde ontem, uma gripe extensa no corpo. Doenças irremediavelmente lembram a morte, o que me fez pensar na seguinte questão. De todos os bens ganhos e perdidos ao longo da vida, o único deles inalienável é a morte. Por vontade, por descuido, pelo acaso, lá está ela no fim do espaço como conhecemos de cada um. De todos os outros fatos podemos nos desfazer, com maior ou menor desprendimento. Cabe um aparte que vivo buscando um abrigo seguro que me deixe distante da minha arte, que dói, que exige, que pensa sandices... mas é cravada em minha alma, como disse a bonita. Voltando ao assunto, a morte é o presente de embrulho controverso reservado a todos nós num tempo que desconhecemos, onde nada será comemorado. Ou tudo! Quando passaremos a viver na lembrança de nossos queridos, que é espaço e tempo muito mais piedosos e engrandecedores. Caberia um poema, mas transcrevo um conto. Deixando cada um com a extensão que lhe cabe dessa reflexão de Montaigne.


Flat

“E canterò di quel secondo regno
dove l’umano spirito si purga
e di salire al ciel diventa degno.”

Lá está Abulhasan, deitado, saliente conforto sob a nuca (jamais precisara de algo, menos agora), no centro de um cômodo pequeno “mas é dele”. De certo o que basta, basta a alguém, essencialmente; far-se-ia, então, daquele flat de incríveis diagonais, um absurdo da incomodidade dos nossos tempos. Seria o caso de tantos, não do nosso homem. Cabisbaixo a rigor, amparado pela calma de não ter pressa alguma, de trazer os olhos fechados, de sorrir discretamente de um sonho que nunca saberemos, nem nos soaria grato saber qual é. “Aranha!” Aperta-se o quarto com a presença do outro, esta no lugar em que três planos se encontram: o de continuar limpo, sozinho e prostrado. “Ainda o despudor de construir casa num canto do sossego alheio. Valha-me Deus tal desrespeito!” Quase impercebível, o fruto do tapa despenca, sangue verde, parede abaixo. Nem dá tempo de Abu fechar os olhos. “Outra!” Ele deveria saber que, na vida de todas as espécies, companhia é necessidade fundamental. Matou a segunda. “Ora essa, mais duas, namoradas, no canto inferior direito. Morram, danadas, se não pela invasão, por este amor-inseto que presencio!” Mais duas ao céu das aranhas, se tiveram a indecência de inventá-lo. Eis, talvez a única com alguma coragem dentre todas, martiresca, tecendo perpendicular e heróica ao rosto impaciente, aí tragada engenhosa pelo protagonista, que tosse. Aqui, acolá, mais uma, muitas, em tudo, milhares e, cada vez menor, o homem transpira ódio e posse de seu cubículo ingênuo e higiênico. Bate muitas, muitas, muitas, muitas vezes[1] a fim de desfazê-las todas. Ofega, pois ofegar é verbo; cansa, que o cansaço é natural. E após o último vivente, Abulhasan olha em volta, retorna à disposição inicial e morre de novo.
[1] Do lado de fora, um funcionário exemplar, com sonhos de um dia ter ao menos tal flat para descanso, amedronta-se com tamanho barulho e sai de perto.

Dec 4, 2006

Agradecimento

Hoje venho somente agradecer a muitos e queridos amigos que tem comparecido ao blog e, parte destes, postados comentários de apoio, de crítica, de opinião etc. Quero também compartilhar dois pequenos sucessos com todos. Ontem recebi a informação de que tenho um fã francês da minha música, que inclusive convidou para que eu toque em seu bar quando estiver em Paris (o que de certa forma é bastante impalpável, até para mim, mas faz parte dos planos para breve), e também recebi uma ótima crítica de minha música e poemas de um grande nome no atual cenário cultural brasileiro. Não cito o nome por princípio e para deixá-los curiosos! Mas ele disse que devo continuar produzindo, ficou impressionado com a qualidade e maturidade dos versos e se disse bastante empogado com minha produção artística. Destes pequenos sucessos me refaço. Destas conquistas diárias me alimento. Como se tudo trouxesse tudo um dia para frente com graça, alegria, desprendimento, poesia bruta. Obrigado, amigos, pelo apoio de sempre, e continuamos nesta luta cotidiana por arte de alma!

Dec 3, 2006

O acaso

Alguns leitores, em conversas de msn, criticaram levemente o ceticismo exibido em "A espera", postado há dois dias. Decerto que demonstra descrença, obviamente, mas não tanta que não possa ser explicada pela definição de acaso. Imagine um dado de milhares de faces. Cada vez que esboçamos um ato, aquele momento antes que o ato seja posto em prática, este dado é lançado e temos como resultado o que aparece na face voltada para cima. É óbvio também que um observador medíocre já apontaria tratar-se de um dado viciado, que na maioria absoluta das vezes reserva ao sujeito a mesma face, a mesma pretensão cotidiana de continuidade. Duvido, entretanto, que qualquer pessoa pudesse apostar algo de muito afeto na certeza do próximo lance (Popper?) sem uma grande dose de receio. Por ser mineiro e ressabiado, não aposto nada em face alguma, mas vivo da poesia posta na face que vier voltada para cima.

Silogismo do acaso

Quando os carros sentem pressa, desopilados de sono, e as fábricas de gatos abrem suas portas despejando mercadoria a quem quer e a quem não quer; dois jovens (sacolas convenientes de plástico) comentam-se, à vista das prateleiras de segurança de um posto de combustível, que cachaça com óleo de freio dá barato.
Memória: único líquido que reflui danos posteriores. Os que se podem acima, hoje têm pra jantar: feijão, farinha e guardanapos. Consistência. Esses hábitos dos ricos entorpecentes. Na quina desobediente da porta, acuada por fantasmas, um respingo de gente de doze anos imaturos adjunta supérfluos.
O coração da jovem senhora Frentista acompanha o apito e os silêncios de um cardiógrafo de anos. Num lençol menina de quase esparrama, a pele curta, mas suficiente, adquire belos tons turquesa. Ele trabalha longe. E a história, que havia morrido há duas noites e na janta de ontem, perambula vivamente no solilóquio mecânico de sua filha.

Dec 2, 2006

Pequeno grande


Quem nunca leu "As viagens de Guliver", de Johnathan Swift, deveria ganhar algumas horas de sua vida para fazê-lo. Além do apelo inegável da história, é muito próxima a idéia de crescermos e diminuirmos em certas conjunturas de nossas vidas. Apesar da recorrente análise sociológica que a obra suscita, prefiro entendê-la pelo olhar pessoal de que em determinadas circuntâncias temos nossas perspectivas ampliadas ou diminuídas. Podermos sentir-nos grandes, desafiadores, absolutos dentre os pequenos. Em outras horas, indefesos, mínimos, frágeis, compartilhados... Sei que é uma análise mediocre de uma obra como essa, mas queria mesmo somente trazer a citação e dizer o que sinto sobre algo. Aliás, como todas as citações feitas por qualquer um sobre qualquer coisa.

Dec 1, 2006

A espera

Sempre se espera por muita coisa, todos os dias, ansiedades diversas, importâncias diversas, mas parte do que constitui o ser humano enquanto ser de angústia é sua capacidade recorrente de estipular para si objetos de espera. Este assunto é certamente vasto o bastante para ocupar um livro de porte robusto e capa dura. Como não tenho tempo nem disposição para tratados filosóficos neste intervalo de minha vida, abordo somente dois tópicos e incentivo o leitor a pensar sozinho nos demais. O óbvio, por isso essencial, a espera é sempre por um objeto de desejo. Sei que alguns já irão me criticar com base no argumento que também se espera pelo pior, pela morte, mas mantenho minha opinião de que, pervertido ou não, intenso ou não, esperar é ação estritamente associada a um objeto de desej0 e ponto, deixo para o leitor raciocinar consigo a respeito disso. O segundo tópico é que, para as pessoas mais esclarecidas a respeito da vileza traçoeira do acaso, a espera se apóia fundamentalmente no ilógico. Como? Por quê? Todo segundo inédito é passível de infinitas possibilidades e muitas delas agentes especializadas em afastar o homem de seu objeto de espera. Dessa forma, esperar torna-se um ato de fé, de esperança na chance, ínfima ou máxima, de que as coisas tendem a permanecer como foram estipuladas, desejadas ou pensadas. A quem possui a fé em frangalhos, resta a ansiedade aguda em momentos de meia-luz ou desistir da espera como componente da vida. Na impossibilidade do livro, deixo um poema, com a ressalva de que, por impossibilidades técnicas do blog, nunca aparece na disposição em que foi escrito.

O último avião

o último avião traz homens de sapatos quadrados
vincos evidentes de família
maletas de mão papéis martinis sobre a bandeja
alento de se chegar tarde o último avião

traz na bagagem herança da engenharia celeste
em suas linhas hagiográficas seu aço seu barulho
de engrenagem gasta nova gasta misteriosa o último avião
traz o estardalhaço sobre a cabeça às onze e muito

o último avião traz a insônia com sua pasta
atualizada de obrigações impostas pelo pen-
último avião onde também ficaram recostados
a reverência os obrigados os até logos e os volte

sempre no último avião alguém se esquece de alguém
normalmente impessoais relíquias que se perde
o novo vem ao pulso à mão o maduro ao carpete
inexistente o último voa acima avião de nossas cabeças

para longe gasto novo gasto imaginado se interpõe quando chega
o último avião goza do vôo insensato da última espera
ave cafeinados nos halls do aeroporto
quando só o vêem pelo logo eletrônico acima ou abaixo

o último avião reduz-se ao opaco mínimo das siglas e das horas
feito em luzes gráfico calculado da demora
que desde que nela pensam pela primeira vez está presente
e faz parte do dia senta-se toma chá pergunta

das crianças não se vale essa máquina onisciente
pois para elas tudo é o primeiro contato com o solo
seus olhos fixos não embarcam o movimento
o trem de pouso apressado do último avião tanto

quanto um orgasmo chega quem vindo de onde
eriçando ao contrário pêlos já descrentes
quando se enganam de propósito transmutá-lo
em primeiro avião do dia seguinte

anacrônico o último avião está num apontamento
percorre o céu circular sem sabermos se da direita ou da esquerda
ou se de dentro isola múltiplo o último avião da vista que o abraça
demovendo dos sentidos o valor da ordem

já não sabem sê-lo mártir ou messias
o último avião