Feb 24, 2010

O Carnaval das Paródias

Já disse o Chico em entrevista: "comecei colocando outras letras nas canções que já existiam".

Antes de saber disso, eu já fazia um bom número de versões de poemas célebres pra treinar o pulso, as palavras que cabem, entender o ritmo dos poetas etc.
Como estou transcrevendo as minhas antigas agendas para o computador, achei uma dessas brincadeiras, dei uma afinada nos versos e envio como prova do que pode aparecer no carnaval das paródias. Muita poesia e humor a todos!

poema de sete fáceis

quando nasci um anjo gordo
desses que chamam diabo
disse vai carlos ser fuck na vida

as casas expiam os homens
que correm das mulheres
a tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos enxofres

o Bond passa cheio de pernas
pernas pra quem te quero
pra que tanta perna meu deus pergunta o continuísta
porém o estúdio
não pergunta nada

o homem atrás das suíças
é sério simples e sofre
quase não conversa
tem muitos vários amigos
o homem atrás dos óculos e das suíças

meu eu por que me abandonaste
se sabias que eu não era eu
se sabias que eu era um rato

terra terra vasta terra
se eu me chamasse inglaterra
seria uma rima e seria uma solução
terra terra vasta terra
mais farsa é a minha nação

eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
é eu não devia mesmo te dizer

Feb 22, 2010

nosso silêncio diário

Terminado o conto (que rapidamente me lembrou dos esforços que faço para escrever prosa), volto em algumas reflexões sobre o silêncio.

Com as férias universitárias, as muitas obrigações em casa e minha mãe em viagem, tenho ficado longos intervalos de tempo em silêncio. Alguns dias sempre, às vezes uma semana, quando não ligam por engano, ou quando não tenho que trocar breves palavras com as funcionárias do supermercado.

Nesses momentos, minha voz vacila como se fosse possível errar e desaprender. Costuma sair baixa, grave, para dentro, e não raro ouço um "ahn?" como resposta. Talvez seja assim sempre. Só não o percebemos porque ficamos pouco sem falar, temos urgência do verbo. A voz, toda vez que se exibe no universo audível, rompe camadas densas de silêncio ao custo da força inteira da alma.

A voz ordinária é ausente de alma, por isso não faz força.

Nesses dias de silêncio, na verdade, tendo a falar comigo. Não alto, refletindo - penso que não preciso falar fora para escutar dentro, esse diálogo eu travo silenciosamente -, mas para sentir o pulso dos meus versos, de todos os textos que escrevo, diariamente.

Imagina a falta de jeito da minha boca, acostumada nos últimos dias a só dizer poesia, quando é solicitada a responder a uma fala de máquina: "tem cartão bom clube?"

Não. A única resposta possível.

Feb 19, 2010

lentes de contato (parte 4/4)

Edgar pensa não haver relação alguma entre experimentar e trabalhar. Nunca trabalhou antes, talvez menino, da época que eu não o tinha sob as vistas. Por isso, ponderemos, torna-se muito difícil sua aventura laboriosa. A Esfinge, próxima de devorá-lo, pergunta se já experimentou antes. Claro que sim. Diversos e em muitos lugares. De celas a coberturas. Tudo do bom. “Trabalhei numa casa no Itaim, do doutor Noronha”. “Ah, que coincidência, do doutor Noronha, grande banqueiro. E muito justo”. “É”. “Quanto tempo trabalhou pra ele?”

Dez anos antes, em um apartamento na Lapa, uma mulher deixa seu marido. Ele, sentado a um metro e meio da televisão, finge prestar atenção à overdose sangüínea de um noticiário. Assalto à mão armada, formação de quadrilha, oito anos, seis presos, cinco escondem o rosto. Cenário. Ela sai por trás do sofá, pela porta, duas malas. Não bate, gira lentamente a chave. Dois cliques. Mis en Cène também com um único traidor. Ele chora pouco. Assim como no preso que não se esconde, nele não há sombra envergonhada de qualquer desvio. Vai ao quarto, o filho dorme. Encosta a porta, sem cliques. Encore de l’audace, em outro cômodo, beija o bebê que, agitado, livra-se da fantasmagoria. Da janela, perde-se em uma avenida onde carros dão movimento à noite quando passam. Anos.

“Dois?” “É, e alguns meses”. Ótimo. “Ótimo! O senhor poderia me dar licença alguns instantes, enquanto troco esses óculos por umas lentes de contato. Nunca me acostumo”. A outra metade retorna escada acima. “Bom sujeito, esse doutor. Humilde. Como se fosse nós, mesmo.” Busca uma chance, quem sabe? “Trabalho uns meses arrumo uma grana, vou pra Minas, ou pra Bahia...” Não quer mais casar. Filhos, pra quê? Ofício aprendido, se perde o mendigo. “Acho que três dá”. A gorda entra na sala e vence os degraus com um ar empregado.

Três minutos depois, desce. “Desculpe, senhor, mas o patrão sente-se indisposto e pede que o senhor retorne em uma semana para resolverem a questão da vaga. Tudo bem?” “Tudo”. Indisposto?! Ela acompanha Edgar até a porta da casa. “Acho que dá pra eu voltar na quinta ou na sexta, se o Moreira me pagar a comissão”. Despedem-se sem palavras, sem intimidade possível. Ela não se dá para cúmplice. “Se não pagar, há sempre a vendinha da Vila Mariana”. Finalmente, ao fundo, Edgar não ouve o som criminoso e frenético da foice, da enxada e das mãos do jovem Agenor, que trabalha competentemente naquela casa há três anos. Jamais passou pelas ideias de Rubens demiti-lo. Jamais.

FIM

Feb 17, 2010

lentes de contato (parte 3/4)

É interessante como, em doze horas, vai-se de Léon a Pollux. O homem naturalmente metropolitano que ontem à noite castigava uma indócil criatura marginal, cópula em crina, a fim de arrebatar-lhe seus breves momentos de candura; hoje está reduzido a um garoto quebradiço e acuado, mínimo de compostura, máximo de medo, de uma grandiosa violência em potencial. O dobro de passos retorna do alto. Metade afasta-se pela porta. “O senhor quer candidatar-se a nossa vaga de jardineiro? Que ótimo!” Pantufas amenizam o andar pesado de um homem robusto, da segunda juventude, cabelos lisos, rosto corado, grandes olhos azuis por detrás de óculos grossos à moda sessentista.

Esse homem de nome Rubens, por ser rico, admira levemente a pele engrossada de trabalho que protege o corpo incólume de Edgar. O de baixo também admira Rubens, por ser rico; mas, diferente do primeiro, rapidamente sublimaria qualquer dos seus dias por uma chance de se tornar outro. Melhor, de ter sido; já não há tanto o que fazer. “Tô muito precisado, doutor”. O papel de cada um se decidindo. “É, todos nós precisamos de algo, meu filho”. Cristalizados. “Onde que o senhor mora?” Cabe dizer que se olhamos bem e nos reconhecemos, e muitos poucos de nós o fazem, somos todos impreterivelmente de Shakespeare.

Pergunta que antes incomodava o corpo, aguçando as mulheres, podia ser dita nesta manhã sem grandes constrangimentos, espera. “Campo Belo, doutor”. “Acordou cedo, não? Uma hora e meia, duas horas daqui?” “É, por aí”. “Estrangeiro”, pensa. “Que merda, é sempre a mesma pergunta!”, pensa. Não era a primeira vez que ele pedia emprego, e nunca gostou. “Mas gosto de levantar cedo, patrão. A viagem é bem tranqüila”. Glória ao dinheiro e à mentira, colunas frágeis da nossa pretensão! “E a experiência? Onde o senhor trabalhava antes?”

(continua mais uma vez...)

Feb 15, 2010

lentes de contato (parte 2/4)

Quase no final de sua jornada, de volta ao momento do conto, ele diminui o passo, com medo de suar. Prefiro olhar como o jovem Borges. Se as ruas entediadas são as entranhas de um homem, o nosso é a faca, que a princípio rasgou violentamente e agora passeia viscosa saboreando a ocasião corriqueira e não vital de ser nobre, o gozo infinito de caber. Ele confere os bolsos. Do direito, desembainha letras, tipografias molhadas, solicitando a presença de um jardineiro. O papel diz-lhe vagamente o que deseja. Segue ambicioso e perambula. Visto que não há nada notável em perambular, saio, corto um tomate, salpico moderadamente de sal e retorno a tempo de encontrar Edgar, desarmado, às portas do número 119 da Rua Marquês Diderot de Ville. Nem se enxergasse bem, entenderia a exuberante ironia deste lugar.

Como o destino é meticuloso, se o desposamos! No instante em que o suburbano se aproxima, e uma garoa de camurça alegra alguns, decepciona outros e a maioria não nota; uma senhora gorda, de vestimenta bicolor e lógica, com um laço prudente na cintura, despede-se de duas crianças feias, mas ricas, e permanece do lado de fora de um Audi preto, com rodas de ligas metálicas, que se apressa e passa por Edgar, não por cima. Um happening. Os olhos vivos do menino, o mais novo, encontram o menino dentro do homem do lado de fora do carro. Acolhido, encolhido, amordaçado. Ambos! Há uma cumplicidade contrabandeada para fora deles que não cabe na história.

Es fangt nur an, kämpfen wir weiter. Edgar confere sua roupa, enquanto avança morosamente por entre as colunas do portal. A criada, acho que leio Silvana bordado em seu avental, retrocede, foge mesmo, da chuva, para debaixo da marquise. “Pelo anúncio, dona, de jardineiro”, atira o pretenso empregado, antes que ela chame ajuda. Não haveria socorro agora, se ele fosse bandido. O dono da casa é empreiteiro, um capitalista de coragem. Confia em poucos. Prefere a segurança de seu muro e de sua Beretta 92, 9mm, fundos, terceira gaveta destrancada da esquerda, escrivaninha do escritório. Pode ser desapego, pouco o que perder. “Limpe os pés e entre, senhor, que já vou chamar o dono da casa”. Silvana se vira e ouvimos o barulho de seus sapatos subindo a escada.

(continua mais duas vezes...)

Feb 13, 2010

lentes de contato (parte 1/4)

Descobri uma forma de voltar a mexer nos meus contos, que não são muitos. Pelos próximos dias, vou postar por aqui um conto, de parte em parte. Espero não estar abusando deste espaço.

Começo pelo primeiro conto que escrevi (metódico, eu?), se não me engano, em 2005. Todos os comentários são obviamente bem-vindos. Prosa nunca, nem de longe, foi meu forte.

lentes de contato (parte 1)

São oito em ponto no relógio do Paço. Longe dali, Edgar, negro socialmente, vence de forma viril a distância que o separa do centro. Um olhar periférico acusa a herança clássica e desgastada das vizinhanças, mas ele não sabe disso. Sabe das construções quadradas, das grades em grande número, da pouca ferrugem, dos cães raivosos, mas alimentados, das guaritas; tudo muito disciplinado e regular. Paisagem sem susto. Ele não gosta. Direta e rudemente não gosta. Arrisco atribuir-lhe associações passadas, sem sua permissão, com base nos preconceitos que sempre me serviram bem; mas não divaguemos enquanto nosso protagonista sobe a rua tão disperso em reflexões de proletário. É preciso contá-las.

Hoje acordou ainda escuro. “Porque gosto”, mente consigo. Levanta-se espalhafatoso, de ruído intencional. A doce Maria, no meio dos lençóis, diluída, ronca levemente o descanso merecido. Abre os olhos um momento, dopada, xinga baixo, ele não ouve, tomba o corpo pendularmente para o outro lado, e volta a roncar para sair do conto. Edgar entra no banho, imagina-o quente. Frio. “Bom pra acordar”, mente de novo. Demora-se até quando dura o sabão e despede-se da paz de se ter água massageando a nuca sem ressentimentos. Com a toalha na cintura, ajeita seu cabelo marrom e baixo, quase uma símile de si mesmo. Queria ser mais forte, “um cavalo”, como dizem as moças que moram por lá, mas é gordo, pensa que é verme. Queria gostar de se ver nu.

São vinte minutos de balaio, a Kombi velha que sempre leva os homens bem cedo até o metrô. Maus cheiros, medo, perfumaria nacional e azedume, barulhos, insegurança. Nunca aceitou a conversa de ser pobre. “E quem gosta?” Depois do vime, mais duas horas de chacoalha até a estação mais próxima dos Jardins. Edgar já está cansado. A essa altura, poderia pensar, “por que o metrô fica a tantas quadras dos Jardins?”. Mas ele não pensa. Sente, no corpo, mas não pensa.

(continua...)

Feb 10, 2010

As possibilidades da vanguarda

Das poucas discordâncias teóricas que tenho com meu orientador - e é bom que existam, pois não discordar em nada de alguém que se admira é ainda pior do que discordar de tudo -, a questão da vanguarda certamente ganha um lugar central.

Concordo com ele e também tenho poucas dúvidas de que a vanguarda é, no todo ou em parte, um reflexo da exigência humana pelo novo, especialmente acirrada nestes tempos de tudo-mercadoria. Concordo ainda no que tange ao perigoso quadro de valores que uma cultura de vanguarda implanta, o do novo a qualquer custo, que acaba gerando patéticos objetos de arte até alguém vire, possivelmente uma criança, e diga "mas, peraí, isso aí é só uma lata de lixo" ou "papai, por que ele usou essa rima?". Não tenho filhos, por isso são todos poetas.

Discordo, entretanto, quanto à impossibilidade de existência contemporânea das vanguardas. Acredito piamente (talvez seja esse o advérbio exato) que ainda há espaço para elas e que o problema de sua atual inexistência, ou pior, sua proliferação frágil (que acaba dando no mesmo) é mais profundo do que sonha nossa vã prospecção.

Numa geração iludida com o oásis do conhecimento infinito e virtual, e, na prática, com pouquíssimo tempo para pesquisa estética séria, a busca pessoal e intuitiva por novas disposições formais para a própria obra acaba cedendo a resoluções fáceis, extremamente provisórias e apressadas. Problema amplificado justamente pela exposição democrática (que acho ótima) a diluir bons artistas na multidão de auto-enganos.

Não sei se vou chegar a ver melhorias nesse quadro (o que ironicamente me faz concordar com meu orientador, já que os pontos só valem mesmo enquanto estou vivo, não é?), mas reafirmo minha discordância, na certeza de que o comum (e saudável) é ser cético quanto à vanguarda. Sempre foi assim. Sempre se desconfiou da possibilidade de rearranjo formal das coisas, até surgir um artista capaz de fazê-lo com maestria.

Isto é, pode também não ser mais possível e se tornar a última e definitiva derrota de nossa cultura.

Feb 8, 2010

a Gabriel Gramasco

Nos meus tempos de especialização, bolei uma hipótese engraçada sobre a noção aristotélica de verossimilhança.

(Perdoem-me o uso do conceito, mas foi inescapável. Aos não iniciados, trata-se da ideia de que numa narração de qualquer tipo é necessário que cada parte esteja refletida no todo e o todo esteja em cada parte. Trocando em miúdos, uma narração verossímil é aquela em que nada falte ou sobre. Simples assim.)

Voltando à hipótese, qual era? Esta: a verossimilhança é a forma narrativa que encontramos para nos afastar da morte, que é, por definição, avessa a toda narrativa.

Para a morte não importa se está no começo da história, no meio, se vai beijar o mocinho, descobrir a tramoia, desmascarar o vilão etc., ela chega a qualquer momento e encerra a narrativa, uma espécie de Thanatos ex-machina. A morte tampouco é narrada, salvo em histórias religiosas ou de cunho satírico (como o nosso célebre Brás).

Ao nos depararmos com uma narrativa verossímil (abrindo um romance, assistindo a um bom filme...), temos a ilusão de que também no mundo as coisas se dão coerentemente, o que, com efeito, não ocorre. A morte não espera que nossa vida faça sentido pleno antes de se desfazer de nós.

p.s.1: ontem descobri que Umberto Eco, sem falar de Aristóteles, está comigo nesta hipótese maluca.
p.s.2: ontem descobri que um conhecido meu muito gentil morreu num acidente de moto.

Feb 4, 2010

O gênio e o idiota

Sempre me condenam quando digo que o tempo não tem feito bem para os homens.

Normalmente contra-argumentam de duas formas. Em primeiro lugar, porque há boas razões para achar que hoje vivemos em um tempo melhor do que nunca. Em segundo, porque parece não haver possibilidade de medir tempos ou homens melhores uns do que os outros.

Tentando não ser chato, vou esmiuçar brevemente o argumento.

A multidão iguala o gênio e o idiota. Há cem anos, talvez menos, vivemos na era das multidões, de onde é difícil, sendo gênio ou idiota, dizer "eu" sem numerosa oposição.

Embora já tenha havido algumas catástrofes por gênios execráveis (catástrofe é eufemismo), teoricamente é mais fácil cercear um único gênio do que uma multidão de idiotas. Sobretudo a partir do ponto em que a multidão de idiotas passou a legitimar-se discursivamente.

Como ser gênio exige mais sacrifício do que ser idiota, o número de idiotas tem aumentado e estes só se sentem seguros em meio às multidões.

Percebem aonde não quero chegar?

Absolutamente todos os dias eu me enraiveço com algum idiota ilustre na televisão.

p.s.: por motivos óbvios, dispenso citar a multidão de gênios que já comentaram algo parecido.

Feb 1, 2010

novo livro

Tá chegando um novo livro por aí, zero um, em abril, pela 7 Letras. Nesta semana estive revisando o original, daí me veio aquela vontade de postar um dos poemas aqui.

Como me disse um leitor em que confio muito, e repasso as impressões pra tentar escapar de cabotinimso, em parte são os mesmo procedimento do livro anterior (poemas lançados fora), mas agora mais apurados e, aparentemente, com menos erros. Espero que ele esteja certo!

Chega de defender o réu. Em efeito, às avessas. Todo livro de poemas é culpado até que prove o contrário, ou do contrário (?). Segue um dos poemas, culpabilíssimo!

mancebo

quando me prendem o braço
nos arrabaldes de minas

quando perguntam sempre
da saúde dos menores
mulheres são fotos ovais
de generais na parede

quando a varanda se enche
de tios fumando truco
e gritos chamam os homens
pelas travessas quentes

quando as saias dão cor
ao assoalho de tacos
evangélicas e retas
toldos para os olhos baixos

canso quando conferem
nos ombros nos antebraços
quando disputam comigo
espaços que são das coisas
canso de não ser coisa

os andares de madeira
os moldes preservados
os tabacos de azulejo
o cansaço

talvez haja certo cansaço
reservado a cada coisa