Feb 17, 2010

lentes de contato (parte 3/4)

É interessante como, em doze horas, vai-se de Léon a Pollux. O homem naturalmente metropolitano que ontem à noite castigava uma indócil criatura marginal, cópula em crina, a fim de arrebatar-lhe seus breves momentos de candura; hoje está reduzido a um garoto quebradiço e acuado, mínimo de compostura, máximo de medo, de uma grandiosa violência em potencial. O dobro de passos retorna do alto. Metade afasta-se pela porta. “O senhor quer candidatar-se a nossa vaga de jardineiro? Que ótimo!” Pantufas amenizam o andar pesado de um homem robusto, da segunda juventude, cabelos lisos, rosto corado, grandes olhos azuis por detrás de óculos grossos à moda sessentista.

Esse homem de nome Rubens, por ser rico, admira levemente a pele engrossada de trabalho que protege o corpo incólume de Edgar. O de baixo também admira Rubens, por ser rico; mas, diferente do primeiro, rapidamente sublimaria qualquer dos seus dias por uma chance de se tornar outro. Melhor, de ter sido; já não há tanto o que fazer. “Tô muito precisado, doutor”. O papel de cada um se decidindo. “É, todos nós precisamos de algo, meu filho”. Cristalizados. “Onde que o senhor mora?” Cabe dizer que se olhamos bem e nos reconhecemos, e muitos poucos de nós o fazem, somos todos impreterivelmente de Shakespeare.

Pergunta que antes incomodava o corpo, aguçando as mulheres, podia ser dita nesta manhã sem grandes constrangimentos, espera. “Campo Belo, doutor”. “Acordou cedo, não? Uma hora e meia, duas horas daqui?” “É, por aí”. “Estrangeiro”, pensa. “Que merda, é sempre a mesma pergunta!”, pensa. Não era a primeira vez que ele pedia emprego, e nunca gostou. “Mas gosto de levantar cedo, patrão. A viagem é bem tranqüila”. Glória ao dinheiro e à mentira, colunas frágeis da nossa pretensão! “E a experiência? Onde o senhor trabalhava antes?”

(continua mais uma vez...)

No comments: