Feb 15, 2010

lentes de contato (parte 2/4)

Quase no final de sua jornada, de volta ao momento do conto, ele diminui o passo, com medo de suar. Prefiro olhar como o jovem Borges. Se as ruas entediadas são as entranhas de um homem, o nosso é a faca, que a princípio rasgou violentamente e agora passeia viscosa saboreando a ocasião corriqueira e não vital de ser nobre, o gozo infinito de caber. Ele confere os bolsos. Do direito, desembainha letras, tipografias molhadas, solicitando a presença de um jardineiro. O papel diz-lhe vagamente o que deseja. Segue ambicioso e perambula. Visto que não há nada notável em perambular, saio, corto um tomate, salpico moderadamente de sal e retorno a tempo de encontrar Edgar, desarmado, às portas do número 119 da Rua Marquês Diderot de Ville. Nem se enxergasse bem, entenderia a exuberante ironia deste lugar.

Como o destino é meticuloso, se o desposamos! No instante em que o suburbano se aproxima, e uma garoa de camurça alegra alguns, decepciona outros e a maioria não nota; uma senhora gorda, de vestimenta bicolor e lógica, com um laço prudente na cintura, despede-se de duas crianças feias, mas ricas, e permanece do lado de fora de um Audi preto, com rodas de ligas metálicas, que se apressa e passa por Edgar, não por cima. Um happening. Os olhos vivos do menino, o mais novo, encontram o menino dentro do homem do lado de fora do carro. Acolhido, encolhido, amordaçado. Ambos! Há uma cumplicidade contrabandeada para fora deles que não cabe na história.

Es fangt nur an, kämpfen wir weiter. Edgar confere sua roupa, enquanto avança morosamente por entre as colunas do portal. A criada, acho que leio Silvana bordado em seu avental, retrocede, foge mesmo, da chuva, para debaixo da marquise. “Pelo anúncio, dona, de jardineiro”, atira o pretenso empregado, antes que ela chame ajuda. Não haveria socorro agora, se ele fosse bandido. O dono da casa é empreiteiro, um capitalista de coragem. Confia em poucos. Prefere a segurança de seu muro e de sua Beretta 92, 9mm, fundos, terceira gaveta destrancada da esquerda, escrivaninha do escritório. Pode ser desapego, pouco o que perder. “Limpe os pés e entre, senhor, que já vou chamar o dono da casa”. Silvana se vira e ouvimos o barulho de seus sapatos subindo a escada.

(continua mais duas vezes...)

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