Feb 13, 2010

lentes de contato (parte 1/4)

Descobri uma forma de voltar a mexer nos meus contos, que não são muitos. Pelos próximos dias, vou postar por aqui um conto, de parte em parte. Espero não estar abusando deste espaço.

Começo pelo primeiro conto que escrevi (metódico, eu?), se não me engano, em 2005. Todos os comentários são obviamente bem-vindos. Prosa nunca, nem de longe, foi meu forte.

lentes de contato (parte 1)

São oito em ponto no relógio do Paço. Longe dali, Edgar, negro socialmente, vence de forma viril a distância que o separa do centro. Um olhar periférico acusa a herança clássica e desgastada das vizinhanças, mas ele não sabe disso. Sabe das construções quadradas, das grades em grande número, da pouca ferrugem, dos cães raivosos, mas alimentados, das guaritas; tudo muito disciplinado e regular. Paisagem sem susto. Ele não gosta. Direta e rudemente não gosta. Arrisco atribuir-lhe associações passadas, sem sua permissão, com base nos preconceitos que sempre me serviram bem; mas não divaguemos enquanto nosso protagonista sobe a rua tão disperso em reflexões de proletário. É preciso contá-las.

Hoje acordou ainda escuro. “Porque gosto”, mente consigo. Levanta-se espalhafatoso, de ruído intencional. A doce Maria, no meio dos lençóis, diluída, ronca levemente o descanso merecido. Abre os olhos um momento, dopada, xinga baixo, ele não ouve, tomba o corpo pendularmente para o outro lado, e volta a roncar para sair do conto. Edgar entra no banho, imagina-o quente. Frio. “Bom pra acordar”, mente de novo. Demora-se até quando dura o sabão e despede-se da paz de se ter água massageando a nuca sem ressentimentos. Com a toalha na cintura, ajeita seu cabelo marrom e baixo, quase uma símile de si mesmo. Queria ser mais forte, “um cavalo”, como dizem as moças que moram por lá, mas é gordo, pensa que é verme. Queria gostar de se ver nu.

São vinte minutos de balaio, a Kombi velha que sempre leva os homens bem cedo até o metrô. Maus cheiros, medo, perfumaria nacional e azedume, barulhos, insegurança. Nunca aceitou a conversa de ser pobre. “E quem gosta?” Depois do vime, mais duas horas de chacoalha até a estação mais próxima dos Jardins. Edgar já está cansado. A essa altura, poderia pensar, “por que o metrô fica a tantas quadras dos Jardins?”. Mas ele não pensa. Sente, no corpo, mas não pensa.

(continua...)

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