Mar 25, 2008

Um conto póstumo de Páscoa


De dias muito cansados, posto um pequeno conto que vai participar de um concurso essa semana. O sorvete é um prato que se come frio... Por que eu disse isso? Vai saber!?

O homem que procurava Jesus Cristo

Há vinte gerações, a família Hairiah consome grande parte de suas posses e de seus filhos em busca de um retrato. Antes que os mais jovens me acusem de incoerência tácita, não é especificamente um retrato como atualmente o entendemos, mas uma pintura, feita aproximadamente no ano trinta da era cristã. É certo que valeria pouco se considerássemos sua qualidade artística (caso haja alguma possibilidade de mensurar o valor artístico inerente às obras de arte), contudo, além da antiguidade, generosa no valor que empresta a todas as coisas, menos às pessoas, Aquele que foi representado na fotografia faz com que seja única dentre tudo já feito em qualquer século de nossa história. A pintura em questão trazia o semblante de Deus.
Desde que um antepassado encontrara, na eterna Constantinopla, um eremita de posse de um lenho da Cruz Sagrada, que disse haver tal pintura, a responsabilidade da procura coube sempre ao filho mais novo do clã. Foi decidido dessa forma, brilhantemente, pois cada vez, a partir do segundo filho (o primeiro se responsabilizava pela logística da busca), que um dos homens da família atingia a idade do Voto, estipulada em 12 anos, tinha por obrigação dedicar todo o seu tempo e educação em busca da Pintura Sagrada. Tal artifício fazia com que muitos homens dedicassem somente alguns anos ao intento e, portanto, o faziam com afinco e dedicadamente, à exceção do último filho, em que recaíam todas as obrigações somadas e tornava-se, simetricamente, relapso e aborrecido. Mantinham, ainda, uma relação onde todos eram considerados aparentados ao homem mais velho e vivo do clã, não seguindo uma linha direta de primogenitura restrita a pai, mãe e filhos.
É bom saber ainda que os Hairiah possuíam somente três indícios (a Trindade) sobre a Obra Máxima: ter sido pintada na ocasião do primeiro milagre de Jesus (talvez seja herético dizer que Ele recusara a inquisição inicial de sua mãe em ajudar com problemas da festa por estar posando, ao lado de dois amigos, futuros apóstolos); estar na casa de uma família de nome Raihiar, uma espécie de anagrama que sempre fomentou a predestinação, segundo os teóricos da família; e que a residência permanente do quadro se encontrava na periferia de Jerusalém.

Miro Hairiah havia procurado todo o dia pela casa com o tapete grená em frente à porta de entrada, última pista que descobrira a respeito do paradeiro do retrato. Por um descuido imperdoável (digo assim porque certamente seria censurado pelo primogênito assim que retornasse a Londres) e também pela pressa, esquecera de fazer reserva em um hotel qualquer da cidade. Poder-se-ia pensar que um sobrenome que visitasse tanto Jerusalém contasse com benevolência da malha hoteleira e facilmente conseguisse a chance de um pernoite agradável, no entanto, os hábitos levemente exóticos da família (empecilhos de sua estadia em qualquer lugar por uma segunda vez) e os últimos acontecimentos de teor político, abarrotando todos os hotéis de jornalistas (profissionais curiosos), fizeram de Jerusalém um dos lugares menos agradáveis da Terra para se passar a noite. Resolveu, então, perambular pela cidade, refletindo sobre os indícios de onde estaria a Obra, pensando em tudo que essa busca imotivada o fizera perder nos últimos onze anos e bebendo um pouco dos deliciosos vinhos e aguardentes servidos nos bares do centro da Cidade Sagrada.
Já tarde da noite, notava-se um homem, certamente estrangeiro, ainda no centro, apoiando-se nas paredes das casas, uma após a outra, com o pouco do que lhe restava de equilíbrio. Era ele, o caçula Hairiah. Não pensava em mais nada (mas, se pensasse, nunca se lembraria do assunto, então não pensava), tentando somente dar mais um passo, mais um passo, sem qualquer sentido aparente, fiel às ordens confusas que sua mente sóbria lhe dera uma ou duas horas atrás. Tamanho o nível de embriaguez do homem, não notou quando seu abraço ébrio foi derrubar uma criança que acabava de abrir a porta, entediados, para bisbilhotar o que acontecia à rua. Miro e o pequeno Ghazan Raihiar se misturando para dentro da casa simples, de tábua corrida e tapete grená na porta de entrada.
As cidades sempre crescem de dentro para fora com o passar do tempo e dão-nos a oportunidade do espio de fora para dentro.

“Tudo bem, senhor?”, indagou, em árabe, a voz infantil, mas incrivelmente resoluta, de Ghazan. “Acho que o senhor se alegrou demais com a noite quente do Mediterrâneo. Permaneça aqui, enquanto vou buscar o chá que já ferve”. Miro, com muito custo, ergueu um pouco o tronco e pôs-se sentado naquele sofá de remendos à mostra. Tentou momentaneamente se lembrar, “inútil”, estava ainda com a memória aos pedaços, aos cubos. Dos retalhos recuperados, nenhum se reportava a como fora parar dentro daquela casa. “Meus pertences!”, pensou, apalpando-se, no exato momento em que Ghazan retornava com a xícara fumegante. “As bagagens estão no quarto, senhor. Permiti-me hospedá-lo por esta noite. Não toquei em nada nem abri qualquer das malas, asseguro-lhe”. Miro encantou-se com o olhar e a presteza do garoto e envergonhou-se muito de sua desconfiança inicial, mais, de sua vida, após conversar uns vinte minutos com ele, enquanto tomava o chá e antes de pegar no sono.
O que Ghazan contou a Miro (narro enquanto este dorme no sofá e o pequeno olha da janela o parco movimento nas ruas): seu nome, já o disse, que não freqüentara a escola muito tempo, mas se achava bastante culto para um garoto de sua idade, graças aos livros antigos que sua família guardava no porão (Miro demonstrou algum interesse), sua idade, 14 anos, era o caçula de sua família (os dois sorriram, o menino, cordial e ingenuamente), que quase sempre dormia tarde e acordava pouco antes do almoço, a razão de sua solidão, sua família havia se mudado para a França, mas ele deveria permanecer ali esperando uma visita que não tardava, segundo seu pai. Neste instante Miro adormeceu e não houve mais o que contarem um ao outro.

O viajante acordou bem mais disposto, trazido do sono por um cheiro de pão preparado pelo menino. Levantou-se, levemente autômato, e seguiu o aroma até um cômodo contíguo, onde viu se tratar da cozinha. Lá estava, à beira de um forno de barro, o corpanzil já forte de Ghazan. “Bom dia, senhor, vejo que está bem melhor. Costumo adiar, sempre em uma, minhas refeições. Por isso, embora seja por volta do meio-dia, gostaria de convidá-lo para um leve desjejum”. “Meio-dia! O avião parte em três horas. E vai saber como está o aeroporto desta cidade infernal!”, isso em silêncio, “Me desculpe, garoto, tenho que me apressar. Volto em pouco para Londres”. O olhar de Ghazan se desvaneceu enternecidamente desolado, enquanto Miro se escondia atrás de um corpulento pedaço de pão, ainda quente. “Suas malas estão atrás do sofá, depositei-as ontem mesmo, caso precisasse de algo durante a noite”. Saindo do cômodo, “Muito obrigado por tudo, Ghazan, espero encontrá-lo outras vezes mais”.
Quase simultaneamente, Ghazan, que se dirigia à sala, ouviu o barulho de um baque. Correndo, avistou seu hóspede de joelhos, próximo às malas, em frente a um antigo quadro da família. Primeiro, Miro balbuciou palavras desconexas e, após um copo Providencial de água, gaguejou “De quem é esse quadro?”, “Não sei, sempre esteve aí, desde que sou criança, no mesmo lugar. Meu pai diz que é a única coisa irremovível desta casa, talvez do mundo”. Ria como criança. “O quadro! O quadro! Quem está nele?”, “Jesus, ora, por quê?” Desdenhoso. Em prantos! “Mas qual dos três é Jesus, qual dos três homens?”, “Acho que isso nunca ninguém soube... Diga seu nome completo, senhor, por gentileza.” Recobrando-se da surpresa. “O meu nome... é Miro Hairiah!”, “Hairiah?! Então o quadro está à venda...”
Sem nenhuma forma de identificar o rosto de Deus, Miro olhava para o quadro onde três homens mulatos de cabelos crespos posavam descompromissadamente. Nenhum deles trazia uma auréola. Nenhum deles trazia um olhar enigmático. Poder-se-ia duvidar do que ocupava o centro, mas a humildade cristã seria suficiente para fazer com que Jesus deixasse o centro a um de Seus amigos. Quem sabe o mais velho, mas a palavra grega para “primogênito” não tinha a exatidão grata de seu inglês, além do quê, até aquele menino aparentava mais idade do que realmente possuía. Pensou em rezar e pedir revelação, mas não sabia das vontades de Deus, nem em desvendar a verdadeira face de Seu Filho, nem em proporcionar uma prova irrefutável de Sua existência. Queria sair correndo, gritar, dissipar sua fé, profanar sua família e a do menino, por menosprezar tanto o destino que as unia, assim, inevitavelmente, quem sabe, tudo três vezes. Entretanto, chorou, como Jesus, Pedro e tantos outros. Chorou. O menino, pacientemente, sentou-se a seu lado e esperou, antevendo que todo o desespero se dissiparia em alguns minutos.

Novamente racional, Miro Hairiah comprou o quadro, após muitas negociações (aliás, a barganha fazia parte dos aprendizados de ambas as famílias envolvidas à relíquia), saiu da casa, procurou um beco, rompeu a moldura, escolheu aleatoriamente um dos três, queimou os outros com um isqueiro e seis semanas mais tarde rejubilou-se, junto a toda a família, pelo fim do maior martírio já visto pela história da cristandade, não obstante o estado lastimável da pintura quando encontrada. Ao fim da reunião, todos oraram calorosamente dando graças. Miro sinceramente orou arrependido, seguro de que desta forma seria perdoado pelo Pai.

4 comments:

Anonymous said...

Ô filhinho, vc já postou esse conto eu acho...!! Pelo menos eu já li, acho maior legal
=)
Saudades, bjinhooo!!!

Henrique Magnani said...

Um início que faria inveja a Levi-Strauss (por que, em minha longa carreira, não consegui sistematizar a estrutura de uma cultura familiar tão peculiar como esta? - perguntaria) e uma continuidade suave, delicada, bonita...

É curioso ver a excelência de um conto de alguém que diz se sentir mais à vontade com poemas...

Henrique Magnani said...

Tenho algumas questões pontuais a comentar, ainda... o desfecho (ou o quase desfecho, pois antecede à dúvida final de quem era "Aquele") já está dado desde que ele entra na casa.
Tudo bem que nem sempre é necessário seguirmos a lógica de Lé Carré e inverter o previsível, mas há muitas pistas nesse sentido que, na minha opinião, tiram um pouco do possível caráter de tensão desse momento do conto. E isso, para mim, acaba por embaçar um pouco a "sacada" final, que é absolutamente genial... ;)

É só um ponto de vista, óbvio, e isso não diminui a qualidade do texto.

Segundo comentário: o trecho

"além da antiguidade, generosa no valor que empresta a todas as coisas, menos às pessoas, Aquele foi representado na fotografia faz com que seja única dentre tudo já feito em qualquer século de nossa história"

está com algum problema sintático. Talvez você queira ter dito:

...Aquele foi representado na fotografia, o que fez com que...

Ou:

...Aquele ter sido representado na fotografia faz com que...

Ou algo assim.

Entendeu? AbraçO!

Isaac Frederico said...

carauler guto ! este conto esta absolutamente genial ! o anagrama "hairiah", a aura arabesca do conto, sua suavidade estrutural e o melhor, seu humor suave.
desculpe o comentario pouco profissional, mas muito foda !!