Jan 30, 2007

O Vendedor de Tristeza

O Vendedor de Tristeza chegou em casa ontem à noite. Como sempre faz, três batidas na porta, religiosíssimo. Tratou-me com a intimidade dos irmãos que não se vêem há muito, mas ainda se reconhecem próximos n'algum canto da alma. Escorou-se onde lhe cabia o corpo e abriu a discreta maleta de couro escuro que trazia junto de si. A maioria das gentes pensa a tristeza como um único fato, como a morte, mas é preciso distingui-la nos inúmeros objetos correlatos em que se constitui. Após encher-me o campo possível com miudezas fúnebres, alegrou-se imensamente quando lhe propus comprar a essência. Há muito não há temerários que comprem a essência, disse-me por entre mil dentes expostos, seu preço não é nada agradável. Depois também é quase impossível livrar-se dela. Justifiquei-me que deixei de acreditar no tempo como ordem que deve ser seguida. Valia-me o instante e, no instante, não há exagero ou excentricidades. Dê-me, pois, aquele ânimo ali, escorado ao lado dos guarda-chuvas. Nunca me haviam feito proposta mais tentadora. Usava-o sim, é verdade, mas cada vez em menor freqüência, cada vez com mais vergonha. Leve-o, então, mas mantenha-o sempre em sua maleta e, se possível, sem apoiar nele qualquer ímpeto que lhe seja importante. Na pressa de um ótimo negócio feito, o vendedor recolheu suas tralhas e partiu antes da primeira hora da antinoite. Já imagino, por ser experiente nestas coisas de ânimos e tristezas, que em breve seremos tão semelhantes quanto dois irmãos que ainda moram juntos.

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