Jun 3, 2008

Nota de falecimento

Venho a público informar que na boa hora da morte, em torno das seis primeiras, do dia de ontem, a Arte faleceu.

No atestado de óbito, os legistas atribuíram, com lá não muita certeza, a duas causas principais. A primeira, virótica. Com o atual estágio de nosso organismo capitalista, o conceito de mercadoria tornou-se inerente à composição do objeto artístico. Claro, sempre houve pagamentos que proporcionaram tranquilidade prática ao trabalho do artista, desde a Grécia, com certa melhora ao longo da Idade Média, e nova recaída após o Renascimento. Essa espécie de vírus, branda, mutualística, nenhum diagnóstico sério consideraria relevante. Perto disso, contudo, a epidemia que trouxe a Arte ao óbito é como a Gripe Espanhola, ou a Peste, que vem devastar a maioria e aqueles que restam preferem se esconder com medo da morte, de serem os próximos a sofrer na pele a degeneração.

A segunda causa revelada na autópsia é comportamental. O histórico médico é imperioso: receitou-se ao paciente repouso, narguillés, charutos importados, doses de absinto e chimarrão. Tudo a constituir o tempo propício à crença no divino ou na vida além. No tom do repouso, amparado ao senso comum de que as coisas não findavam com a morte física – quer por existência do espírito, quer por projeção do nome à tradição de sua arte –, os artistas depuravam pacientemente seu objeto. Era necessário transpor-se a algo mais elevado, o que exigia tempo, esforço e certa dose de impertinência. Hoje, ou melhor, há até poucos dias, lamentemos, o doente foi visto correndo de um lado a outro, gritando seu nome à espera de que alguém se lembrasse dele e lhe desse comida, que lhe compusesse elegias em críticas. À espera de que entrasse sem pagar nas festas burguesas ou de que pudesse ser referido, por qualquer que fosse, com distinção e apreço.

Aos que se animam a comparecer ao enterro, ou se prestam a dedicar uma homenagem póstuma, pouco honesta, me entristeço informar que se atrasaram. Ontem mesmo, sem flores à coroa ou carpideiras, no cemitério da Pouca Saudade, foi sepultada em virtude de uma doença crônica, a Arte. À presença de raríssimos amigos, morreu como em vida, silenciosa a seus contemporâneos. Não deixa filhos, herança, não deixa nada. Morre como se restasse em vida, agonizando num hospital de subúrbio.

15 comments:

FlaM said...

Mas já n˜o tava morta?
Puxa essa foi que nem aquela do estilista, oYves Saint Laurent que morreu nesta semana e eu já tinha enterrado ele há muito tempo...
KKKKK. Que desilusão é essa, rapaz!?

ô, guto, vc não respondeu. depois que vc publica vc não mexe mais? é sério, quero saber. vc se chateou? Ih, será que eu vou te perguntar isso a cada dois cometários?
bj, Flávia

Isaac Frederico said...

aloha guto !
o texto é fera, a dose é na medida, as referências a diversas facetas da arte estão muito bem colocadas .. mas o que mais me impressiona é o fluxo enorme de textos de qualidade média elevada aqui no blog.
toca pra frente guto !

Anonymous said...

Não sei o que dizer, Guto. N sou íntima da dona morte, e n sei consolar pessoas. Por isso n sei o que dizer. Só te peço uma coisa: n enterra a coitada, pq acho q ela tem catalepsia. Deixa ela num canto, a descansar, que um dia ela acorda, feito fenix, ou vaso ruim (aquele que n quebra). Acho que essa dona Arte, por mais confusa que seja, com altos e baixos quase temperamentais, não é coisa de morrer. Desistir e ir dormir um pouco, tlz, morrer não. Mulheres, sabe? Tem dias que parece que desistem do mundo. Mas dps mudam de idéias, e é como se nada tivesse acontecido =)
Ia me esquecendo... Gostei muito do texto. Melhor obituário de sempre =) Nada enfadonho.

Beatriz said...

Salve Guto, belo texto. sem nenhum problema com a prosa. Aqui não vi morte.
Mais prosa!

Anonymous said...

Vai ver que amanhã renasce, dançando. Envolta em pinceladas pálidas na madrugada, em sons de orquestras e traços de poetas.
A arte tem essa poder, de renascer inteira, por dentro das nossa almas sempre que quisermos.
Quem a quiser matar, pode sempre tentar... morre de verde, renasce de azul. morre em dó maior, renasce em sustenido bemol.morre numa vírgula, renasce num ponto de exclamação. É esse o poder da arte.

Guto Leite said...

É instigante notarmos as diferenças entre os comentários. Confesso que fui bem hiperbólico, mas não tanto se pensarmos que aarte pós-moderna será tão distinta daquela até a primeira metade do século passado, que poderemos até considerá-la outra. Estará mesmo associada à idéia de produto? Assim, indissociavelmente?
p.s.: Flavinha, respondi ao comentário no post anterior. Mexo sim nos textos, cabralino de carteirinha.
p.s.2: traduzindo as referências musicais do comentário anônimo aos demais: Dó maior é uma escala somente com notas naturais, sem acidentes, enquanto Si bemol completa a clave com incontáveis símbolos, revirando as notas que os seguem.

FlaM said...
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FlaM said...

Guto, agora eu vi lá. Obrigada pela visita e aquele comentário, tão adequado que chegou a ser perturbador, afinal, vc me conhece (lê) há tão pouco tempo!
Guto eu tenho a impressão de vc ser sabido demais em terrenos onde eu sou muito ignorante. mas isso não me desestimula a conversa, pelo contrário, como vc pode supor pelo tamanho dos comentários que tenho deixado.
E olha, parece que vc tem uma certa baixa eutoestiminha com a prosa? nada a ver, gostei e tal. mas eu, particularmente, quero mais daqueles poemas e poeminhas!
é que eu adorei!
bj, f

FlaM said...

Então fiz assim ó: fui lendo os posts mais antigos de poemas (maio e abril). Aí vou conhecendo a tua poesia... bj, f

Tati Bertolucci said...

para mais sobre arte como produto procure um artista japonês chamado takashi murakami e sua teoria do superflat... digamos que é um warhol elevada a enésima potencia, na minha opnião menos pelo art e mais pelo pop. Não gosto tanto, mas acho que vale a pena para "enriquecer" a discussão...

Tati Bertolucci said...
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Tati Bertolucci said...

(esqueci de terminar o comentario)...quanto ao fim da arte? totalmente em desacordo. o consumo não é a única maneira do popular voltar a arte, mas popularizar a arte é uma ideia que eu sempre amei... os grafiteiros, artesãos, artistas de rua (tenho visto alguns show de rua por aqui incríveis), poetas de parque e músicos do metrô? os movimentos artísticos dentro dos movimentos sociais... isso é arte. definitivamente. e viva, muito viva,porque salta dos livros, dos discos, dos museus, dos teatros e toma as ruas... talvez um pouco otimista, mas prefiro assim.

Guto Leite said...

oi Flávia, sou meio Riobaldo, na verdade, saber, eu não sei de nada, mas desconfio muito. Hoje voltam os post de poema, pode deixar. À Tati, que eu e meu blog já estávamos com saudade, eu conheço a obra de Murakami, maravilhosa! Entendo que é meio sintomática também, mas isso são outros quinhentos. Sobre arte popular, na verdade, entendo que, se eu transformo a arte em produto, como as diferenças econômicas estão cada vez maiores, tendo justamente a excluir a camada popular de muito desse acesso. Somando a isso a questão educacional, pronto, excluimos (nós, "burgueses") nas duas pontas. Arte em exagero a todos e obrigado sempre pelos comentários!

FlaM said...

oba!

tagg said...

Voltei! O Cazuza viu a cara da morte e ela estava viva. Vc viu a cara da arte... :)Saudades.