Dec 5, 2006

O inalienável


Antes de tudo, grande abraço aos meus queridos que têm visitado o blog, cada um de seu jeito próprio vem trazer suas peculiaridades, seus manejos, sua arte. Admiração intensa por todos vocês que já postaram neste espaço até hoje, muito de alma essa admiração!


Estou doente desde ontem, uma gripe extensa no corpo. Doenças irremediavelmente lembram a morte, o que me fez pensar na seguinte questão. De todos os bens ganhos e perdidos ao longo da vida, o único deles inalienável é a morte. Por vontade, por descuido, pelo acaso, lá está ela no fim do espaço como conhecemos de cada um. De todos os outros fatos podemos nos desfazer, com maior ou menor desprendimento. Cabe um aparte que vivo buscando um abrigo seguro que me deixe distante da minha arte, que dói, que exige, que pensa sandices... mas é cravada em minha alma, como disse a bonita. Voltando ao assunto, a morte é o presente de embrulho controverso reservado a todos nós num tempo que desconhecemos, onde nada será comemorado. Ou tudo! Quando passaremos a viver na lembrança de nossos queridos, que é espaço e tempo muito mais piedosos e engrandecedores. Caberia um poema, mas transcrevo um conto. Deixando cada um com a extensão que lhe cabe dessa reflexão de Montaigne.


Flat

“E canterò di quel secondo regno
dove l’umano spirito si purga
e di salire al ciel diventa degno.”

Lá está Abulhasan, deitado, saliente conforto sob a nuca (jamais precisara de algo, menos agora), no centro de um cômodo pequeno “mas é dele”. De certo o que basta, basta a alguém, essencialmente; far-se-ia, então, daquele flat de incríveis diagonais, um absurdo da incomodidade dos nossos tempos. Seria o caso de tantos, não do nosso homem. Cabisbaixo a rigor, amparado pela calma de não ter pressa alguma, de trazer os olhos fechados, de sorrir discretamente de um sonho que nunca saberemos, nem nos soaria grato saber qual é. “Aranha!” Aperta-se o quarto com a presença do outro, esta no lugar em que três planos se encontram: o de continuar limpo, sozinho e prostrado. “Ainda o despudor de construir casa num canto do sossego alheio. Valha-me Deus tal desrespeito!” Quase impercebível, o fruto do tapa despenca, sangue verde, parede abaixo. Nem dá tempo de Abu fechar os olhos. “Outra!” Ele deveria saber que, na vida de todas as espécies, companhia é necessidade fundamental. Matou a segunda. “Ora essa, mais duas, namoradas, no canto inferior direito. Morram, danadas, se não pela invasão, por este amor-inseto que presencio!” Mais duas ao céu das aranhas, se tiveram a indecência de inventá-lo. Eis, talvez a única com alguma coragem dentre todas, martiresca, tecendo perpendicular e heróica ao rosto impaciente, aí tragada engenhosa pelo protagonista, que tosse. Aqui, acolá, mais uma, muitas, em tudo, milhares e, cada vez menor, o homem transpira ódio e posse de seu cubículo ingênuo e higiênico. Bate muitas, muitas, muitas, muitas vezes[1] a fim de desfazê-las todas. Ofega, pois ofegar é verbo; cansa, que o cansaço é natural. E após o último vivente, Abulhasan olha em volta, retorna à disposição inicial e morre de novo.
[1] Do lado de fora, um funcionário exemplar, com sonhos de um dia ter ao menos tal flat para descanso, amedronta-se com tamanho barulho e sai de perto.

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