Dec 1, 2006

A espera

Sempre se espera por muita coisa, todos os dias, ansiedades diversas, importâncias diversas, mas parte do que constitui o ser humano enquanto ser de angústia é sua capacidade recorrente de estipular para si objetos de espera. Este assunto é certamente vasto o bastante para ocupar um livro de porte robusto e capa dura. Como não tenho tempo nem disposição para tratados filosóficos neste intervalo de minha vida, abordo somente dois tópicos e incentivo o leitor a pensar sozinho nos demais. O óbvio, por isso essencial, a espera é sempre por um objeto de desejo. Sei que alguns já irão me criticar com base no argumento que também se espera pelo pior, pela morte, mas mantenho minha opinião de que, pervertido ou não, intenso ou não, esperar é ação estritamente associada a um objeto de desej0 e ponto, deixo para o leitor raciocinar consigo a respeito disso. O segundo tópico é que, para as pessoas mais esclarecidas a respeito da vileza traçoeira do acaso, a espera se apóia fundamentalmente no ilógico. Como? Por quê? Todo segundo inédito é passível de infinitas possibilidades e muitas delas agentes especializadas em afastar o homem de seu objeto de espera. Dessa forma, esperar torna-se um ato de fé, de esperança na chance, ínfima ou máxima, de que as coisas tendem a permanecer como foram estipuladas, desejadas ou pensadas. A quem possui a fé em frangalhos, resta a ansiedade aguda em momentos de meia-luz ou desistir da espera como componente da vida. Na impossibilidade do livro, deixo um poema, com a ressalva de que, por impossibilidades técnicas do blog, nunca aparece na disposição em que foi escrito.

O último avião

o último avião traz homens de sapatos quadrados
vincos evidentes de família
maletas de mão papéis martinis sobre a bandeja
alento de se chegar tarde o último avião

traz na bagagem herança da engenharia celeste
em suas linhas hagiográficas seu aço seu barulho
de engrenagem gasta nova gasta misteriosa o último avião
traz o estardalhaço sobre a cabeça às onze e muito

o último avião traz a insônia com sua pasta
atualizada de obrigações impostas pelo pen-
último avião onde também ficaram recostados
a reverência os obrigados os até logos e os volte

sempre no último avião alguém se esquece de alguém
normalmente impessoais relíquias que se perde
o novo vem ao pulso à mão o maduro ao carpete
inexistente o último voa acima avião de nossas cabeças

para longe gasto novo gasto imaginado se interpõe quando chega
o último avião goza do vôo insensato da última espera
ave cafeinados nos halls do aeroporto
quando só o vêem pelo logo eletrônico acima ou abaixo

o último avião reduz-se ao opaco mínimo das siglas e das horas
feito em luzes gráfico calculado da demora
que desde que nela pensam pela primeira vez está presente
e faz parte do dia senta-se toma chá pergunta

das crianças não se vale essa máquina onisciente
pois para elas tudo é o primeiro contato com o solo
seus olhos fixos não embarcam o movimento
o trem de pouso apressado do último avião tanto

quanto um orgasmo chega quem vindo de onde
eriçando ao contrário pêlos já descrentes
quando se enganam de propósito transmutá-lo
em primeiro avião do dia seguinte

anacrônico o último avião está num apontamento
percorre o céu circular sem sabermos se da direita ou da esquerda
ou se de dentro isola múltiplo o último avião da vista que o abraça
demovendo dos sentidos o valor da ordem

já não sabem sê-lo mártir ou messias
o último avião

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