May 3, 2009

O Trombone III



“A última gravação de Krapp” (1958) e “Ato sem palavras I” (1956), do irlandês Samuel Beckett, com Sérgio Britto e direção de Isabel Cavalcanti, foi minha apreciação artística deste domingo à noite.

A primeira história nos apresenta o velho sr. Krapp (“Sr. Merda”, em alemão) rememorando, por meio de uma fita de áudio, as impressões que havia gravado vinte anos antes, em especial, a morte de sua mãe, a morte de uma mulher segurando sua mão e aquele que parece ter sido o último amor de sua vida. Para aumentar a complexidade abrupta de Beckett, vale lembrar que a personagem é um escritor aparentemente mal-sucedido e levemente alcoólatra, o que a um olhar mais agudo revela ter escolhido, em algum momento, sua arte em detrimento das paixões que poderiam dar-lhe algum prazer na vida. O diálogo, ou monólogo, entre o sr. Krapp cinqüentenário e sua versão mais nova também intensifica o efeito dramático do texto beckettiano, dando ao expectador, gradativamente, a medida exata da desolação daquele homem e, por algumas identificações, por conseqüência, minha própria desolação (ou a de algum expectador mais sensível).

O segundo texto, absolutamente meta-teatral, mostra um ator empurrado para cena, numa luz absurdamente clara e angustiante (uma praia, possivelmente), e sendo dominado com sarcasmo por alguma instância externa. Ora lhe oferecendo a sombra de um coqueiro, tesouras para cortar as unhas ou água, ora deixando estes mesmos objetos fora do alcance da personagem. Cansado do jogo, este náufrago da quarta parede decide suicidar-se, mas mesmo isso lhe é impedido por aqueles que têm poder sobre ele. Ao fim, parado no meio do palco, a personagem-ator não mais aceita os caprichos deste “deus” da autoria e renuncia a qualquer objeto oferecido por ele, até que as luzes se apagam por completo, num simulacro bem realizado da morte cênica.

Não entendo muito de teatro, senão como amante – os amantes tendem a ser as pessoas que menos se entendem, embora o teatro muito saiba de mim –, por isso não me sinto tão à vontade para falar das escolhas cênicas realizadas, mas posso dizer, sem tanto receio, que a atuação de Sérgio Britto dá a impressão de que ali está um ator que conhece os atalhos e os exibe, sem qualquer vaidade. Nos pequenos atos realizados, nas pausas, na entonação em tal ou qual fala; deixa-se entrever sempre em sua interpretação as não poucas décadas que aquele homem passou em cena e o domínio experiente do texto e das personagens. De sua generosa conversa ao final da apresentação, chamo a atenção para a orientação da diretora Isabel Cavalcanti exposta pelo ator. Era para ele buscar ao máximo se fundir com o senhor Krapp, evitando as expressões faciais ou corporais demasiadamente marcadas (vale a nota de que também o senhor Britto perdera a mãe e presenciara a morte de uma mulher, como a personagem e o próprio Beckett). Ora, essa era exatamente a chave de leitura que me faltava para entender que, como eu, a diretora havia compreendido as peças (aproximadas) como a luta do artista pela aceitação de sua arte, procurando fazer o possível para não se perder nesta busca. Tanto a solidão do Sr. Krapp quanto a subserviência desoladora da inominável personagem da segunda peça são facetas possíveis daqueles que pretendem posicionar-se artisticamente diante de seu tempo, postura notória também assumida por Beckett. Que o dramaturgo tenha realçado os matizes mais escuros deste quadro nestas duas peças, deve dizer respeito à sua estética ou a um entendimento perspicaz de como as coisas se desenhavam para a arte a partir da segunda metade do século passado.

Caros habitantes de Porto Alegre, compareçam ao 4º Festival Palco Giratório do Sesc-RS! Há um bom número de boas peças sendo representadas neste mês (para a programação, http://www.sesc-rs.com.br/palcogiratorio/programacao.htm). Principalmente: classe artística de Porto Alegre (ou os que se concebem como tal, o que na prática dá no mesmo), compareça ao Palco Giratório! Tudo bem que a arte de entretenimento atualmente em voga – a recusa ao último filme do Meirelles talvez comprove essa hegemonia – tem o seu lugarzinho quente, debaixo de um cobertor de vó. Mas acho importante, preciso, quem sabe, que vocês, escritores, atores, intérpretes, compositores, dançarinos etc., sintam que ainda respira um artista dentro da carcaça hostil e exagerada de um entertainer. Que o resto seja... Silêncio.

Cornetem!

1 comment:

Maíra Colombrini said...

Uhn... me deixou curiosa. Acho que já sei o que comprar pra ler depois que a pilha baixar.
A pilha é um pequeno grupamento de livros verticalmente dispostos no meu criado mudo em ordem decrescente de compra... andei comprando demais e lendo de menos e ela anda meio altinha ultimamente, mas por sua culpa (ehehe) vai crescer mais um pouco.

Beijos!