May 17, 2009

O Trombone IV



De improviso, conseguiria citar quatro características fundamentais para uma boa narrativa longa: personagens cativantes, bom enredo, ritmo coerente com a proposta que se entrevê e um narrador que ajude a conduzir as coisas. Claro que para outros leitores, outra lista, mas acredito que ninguém deixaria de fora estas quatro obrigações de um bom prosador. Leia-se: acerto no pouco, mas acerto. O quarto volume desta obliviada série que se propõe a fazer crítica de artistas contemporâneos traz à baila justamente uma boa narrativa longa. Trata-se de Quatro Negros (2006), de Luis Augusto Fischer.

Em linhas gerais, o conteúdo do livro está apresentado por seu título, embora, de maneira nenhuma, se possa resumi-lo à história de quatro negros. Aliás, por uma característica bastante peculiar da figura do narrador, não é nada óbvia a forma com que o autor nos apresenta Janéti, Seu Sinhô, Airton e Rosa. A princípio, ele (o narrador) diz que gostaria de apresentar ao leitor uma mulher que conhecera em um evento literário (Janéti) e que lhe contara sua história. Por meio de recuos, mudanças de foco, avanços, múltiplas narrativas e outros artifícios, acabamos por saber a história de Janéti, de seus irmãos Airton e Rosa, e também de um velho e especial morador interiorano, Seu Sinhô.

Voltemos à proto-teoria fajuta que esbocei no primeiro parágrafo para tentar entender como esses quatro fatores figuram na novela (graciliana) de Luis Augusto Fischer. Há no livro personagens cativantes? Sem dúvida nenhuma, sim. Aliás, comentei com o autor (vantagem ou desvantagem que também sofro: escrever e continuar vivo), “que problemão você arranjou com a Janéti, hein!”. Explico-me: acredito que o livro acaba sendo polarizado por esta personagem em função de seu extremo carisma e de sua história magnífica. Usando uma metáfora futebolística e o time de afeição do autor, a Janéti seria o Nilmar de Quatro Negros. Tudo bem que há um D’Alessandro na figura de Seu Sinhô, extremamente requintado e cativante em sua simplicidade, e também um Tyson na pele de Rosa, rápida, mas precisa em sua função, e até mesmo um Guiñazú nas páginas de Airton, ou Jorge, personagem menos chamativa, mas que exerce sua função na estrutura da novela; mas é certamente Janéti quem chama para si a atenção durante a leitura e a memória depois dela. Prova disso talvez seja que ela é o suposto fio narrativo da trama e reapareça freqüentemente, em comentários ou na história de todas as demais personagens. Seria um problema do livro? Acredito que não. É preferível haver alguém como ela numa obra do que nenhum personagem que nos marque, que nos leve a ver as pessoas do mundo em cotejo com ela. Além disso, salvo Dostoievski, não conheço prosador que seja capaz de ter uma dúzia de personagens igualmente complexos em seus romances. Fica a ressalva de que torço pro Vasco, indício de que pouco entendo de futebol. Pilhérias.

Um bom enredo? Também respondo afirmativamente a essa pergunta retórica. Se bem que, no caso do livro em questão, é muito difícil separar o enredo dos demais elementos, como as personagens ou a figura do narrador. Não tenho, entretanto, ressalvas em afirmar que há, sim, um excelente enredo, pois a cena magistral da página 35 fia de sobra o meu elogio. Aos usurários mais exigentes, invoco o diálogo com Seu Sinhô na página 48 como minha garantia. Tento me eximir de parafrasear qualquer parte da narrativa para não macular prazeres de leitura. Enfim, o livro traz bons achados (grandes e pequenos) em sua trama, todos competentemente alinhados em prol da atenção do leitor.

Para isso também age o narrador, a terceira figura que apontei inicialmente. O narrador de Quatro Negros vai bem próximo do leitor ou talvez fosse mais preciso dizer que vamos nós a seu lado, visto que eu o qualificaria como simpaticamente voluntarioso. Que não se espere um narrador como o de Brás Cubas, pois não é o caso. No livro de Fischer, o narrador é muito mais cuidadoso com o leitor que o ouve, embora, com alguma atenção, é possível sentir que estamos à mercê de suas vontades e de suas perspectivas. Surge-me a idéia de que talvez eu esteja desvelando um mecanismo interno da novela – que o autor me perdoe –, qual seja, certa ingenuidade própria ao leitor de que também se valeu Machado para fazer funcionar seu romance acima citado por décadas antes que alguém levantasse suspeita sobre suas impressões. Como não tenho tantos leitores quanto ambos, espero não pôr com esta observação empecilho à leitura de ninguém. Chamo atenção, ainda e por fim, à linguagem bastante feliz mobilizado pelo narrador, como também às digressões e reflexões que assomam muito à riqueza do romance.

Resta, como fechamento, falar sobre o ritmo da novela, que vai muito bem, obrigado. Aliás, talvez o ritmo de uma narrativa faça parte daquele conjunto de coisas que só notamos quando há algum problema. Para Poe, um conto seria uma narrativa para se ler de uma assentada, pois bem, o ritmo da novela de Fischer é tão ágil, que talvez fosse mais acertado chamá-la de conto, o que me parece uma grande virtude, visto que, no caso, a agilidade da prosa não vem acompanhada de superficialidade de tratamento dos temas. Romance, novela ou conto, pouco importa, se o ritmo é capaz de nos causar avidez de leitura, sobretudo em tempos tão pouco afeitos à leitura ou ao talento.

Enfim, nos dias de hoje, talvez o maior elogio que se possa fazer a uma obra – já que não tenho a ilusão de destituir do histórico o mais infalível dos julgamentos – seja que é uma obra para ser lida! Ser lida no sentido de que compõe conosco nossa visão de mundo e de nós mesmos, além de merece, certamente, um lugar nas representações simbólicas que nos constituem como seres pensantes de nossa época.

Cornetem!

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