Apr 25, 2008

Incursões ao teatro


Nessa segunda, começa uma fase estranha nas minhas produções. Já havia escrito antes musical e cinema, mas nunca algo próprio para ser encenado em palco. Embora seja bem curtinho, acho que tive uma amostra das dificuldades de se escrever estritamente para teatro. Espero não decepcionar minhas colegas que confiaram suas atuações ao meu texto. Gostaria, claro, de contar com o costumeiro contraponto de extrema qualidade a que sempre sou submetido neste blog. Grande abraço a todos e arte, da maneira mais intensa!

p.s.: não passamos na semifinal do festival, mas, de toda forma, a recepção do público, dos organizadores e a alegria dos integrantes da banda fizeram valer os vôos a Sampa e as viagens!

O que revela o amor

No palco, quatro personagens representam quatro fases da vida de uma mesma mulher. À frente, do lado esquerdo, é uma menina, que brinca com um enorme coelho de pelúcia. No sentido horário, em diagonal, ela está com um longo vestido, segurando uma taça vazia. Em seguida, sentada a uma mesa, é consolada por uma garrafa de aguardente. Por fim, à frente, do lado direito do palco, ela está velha, assistindo à televisão, em uma sala de estar. Ela é a mais imóvel de todas, pois todo o resto é a forma como ela se lembra da vida.
Todas agem normalmente em suas respectivas cenas, quando a mais nova começa a falar. Há uma dinâmica nos movimentos fora de foco de cena. Neste primeiro momento, tudo feito com força e agitação.

MENINA: No começo da minha vida, eu era assim. Cheia! A vida que transbordava de mim enchia tudo o que me cercava e os dias eram uma coleção de romances. Romance, não no sentido que se dá, mas afeto, carinho, cuidado. A lei física e básica de que todos os corpos se atraem. Assim eu era com tudo e tudo era assim comigo. O sonho e a vigília eram os meus olhos se movendo. Faltando algo nas coisas, se eu fechasse um deles. Só naquele tempo eu sabia que o único amor possível é imediato e pequeno. É por isso que as pessoas brincam. Brincar é a única forma de amar de verdade.

Diminui-se um pouco a dinâmica dos movimentos de todas as cenas. A menina, em silêncio, volta a brincar com seu coelho de pelúcia. A mulher de vestido começa seu testemunho.

MULHER DE VESTIDO: Depois, descobri um mundo de brincadeiras mais interessantes. Homens, mulheres, amigos, parentes, colegas de trabalho, almas, paixões... Cansa! Mas os resultados são muito, muito, melhores! A vida se tornou uma grande festa de gala, onde estou sempre bonita, elegante, no centro das atenções. As pessoas passando, as bebidas passando. Não senti muito bem o gosto das coisas, mas provei de tudo! Pouquíssimas vezes eu fiquei com a taça vazia, como agora, e em todas elas apareceu alguém que a enchesse. (Alguém lhe enche a taça) Obrigada. O amor é isso, um encher de taças.

Decresce ainda mais a intensidade dos movimentos das mulheres. A mulher de vestido é interrompida pela que se embriaga.

BÊBADA: Se casei? Claro que casei. Tive um casal de filhos de encher os olhos. Mas fiquei no meio do caminho, né? Não sou minha mãe, infeliz, mas casada, até o fim da vida. Não sou minha filha, que aos vinte anos decidiu não se casar e não ter filhos. Hoje eu imploro pra eles virem almoçar comigo um domingo por mês. (Grande pausa) Tive câncer de mama, nada mais baixo. Gastei os meus amores maduros na ioga, na esteira, no bingo, e nisso aqui. (Tomba um pouco a garrafa de pinga) Não fui triste. A cachaça não bate a porta, não grita, não revida, se eu jogo fora! Queima por dentro, mas só nos primeiros goles. Com certeza eu tive menos primeiros goles do que os outros. Ta aí, o amor é um copo de pinga.

Os movimentos de todas estão quase mínimos. A menina acaricia o rosto do coelho, delicadamente. A mulher da festa passa o dedo no bocal da taça. A mulher embriagada, deitada no chão, rasteja-se minimamente em direção à garrafa. A velha desliga a televisão, levantando-se.

VELHA: To me cansando das novelas. Fico longe! Não mostram nem de perto o que é viver. Só as mulheres de meia idade e as velhas estúpidas gostam de novelas. (Abre a porta da rua) Fui feliz e infeliz. Fui amada e desamada. Fui filha, mãe. Mandei, obedeci. Fui bonita! E aprendi a entender como o tempo mudou minhas belezas. Tudo isso é natural! (No meio do público) No que é natural, não há ressentimento. O cruel da vida é o mistério. É não saber nada sobre o próximo segundo. E é isso que dá a sua graça. O que eu não vivo, eu sonho. Envelhecer é, por isso, passar a sonhar mais. (Se agacha e puxa a flor do meio do público) A morte é uma flor arrancada. Toma! Toma! (Oferecendo ao público. Assim que alguém aceita) Difícil saber quando se vai... O amor?

Todas as mulheres se encolhem, abraçando o joelho com as mãos.

3 comments:

Anonymous said...

CAZÉ (levanta-se e bate palmas estridentes, a uma velocidade muito maior que a do resto da platéia. distôa e incomoda. ORIENTADOR olha-o com uma cara sarcástica, mas com ums orriso nos lábios de quem gostou bastante do que viu. POETA LORCAESCO acompanha as palmas com os olhos, murmurando "genial, genial!")
ORIENTADOR: É seu amigo, né?
CAZÉ: Não só.
ORIENTADOR: É móito bóm! Querr dizerrr, deixou de serrrr só linguaagem! Ainda faltam cóisas, de qualquerrrr forrrma...
CAZÉ: É, talvez ainda faltem coisas, e é claro que é uma peça pra Stanislavski montar, e não pro Brecht, mas eu escreveria pro Stanislavski na maioria dos casos também!
POETA LORCAESCO: Escreveria não, né Cazé, escreve!
CAZÉ: Se eu conseguisse quebrar o muro entre eu e o papel, ainda assim, não. Quem escreve é o Guto. O que falta, talvez E---, é fazer algumas perguntas.
ORIENTADOR: É móito bom do jeito como está, mas prrecisa tambéim treinarr perrsonagens COMPLETAMÉNTCHI diferréntchis no tiatro! E você tem que aprrender móito com ele!
CAZÉ: Mas disso você não precisava nem me falar!
POETA LORCAESCO: Vamo lá falar com ele, Cazé?
CAZÉ: Você quer dizer, chamar ele pra tomar uma né? Já vai querer dar bebida pra gente!
ORIENTADOR: Se vocéis quiserrem darr bebida pra mim eu aceito tambéim!
CAZÉ: Vamo então! I'm buying you something!
POETA LORCAESCO: Genial! Genial!

Guto Leite said...

Muito grato pelo comentário, caro Cazé! Por saber da opinião do Sabinson sobre a minha arte, duvido que ele pudesse ser tão generoso! Obrigado pelo incentivo, espero que eu consiga explorar respeitosamente esse gênero novo pra mim... Muita arte!

Anonymous said...
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