Jun 2, 2009

Por um triz



Passei a última semana pensando em desativar este espaço. O ritmo da produção e o vulto que esta e outras obrigações assumiram em minha vida tornaram muito pesado o trabalho de blogueiro, que consiste, não só em postar, mas também em conferir a produção de blogs prediletos, responder às impressões, seguir com as obrigações nos blogs coletivos etc., práticas que faço com muito prazer normalmente, mas que me têm cansado sobremaneira nestes dois últimos meses.

Isso tudo é verdade, mas não toda a verdade. Tenho avançado muito com meus poemas e canções, do ponto de vista técnico e sensível, a despeito do parco amparo daqueles que o deviam amparar (não há como denominar este agente imenso e abrangente de opressão). Por mais que eu tenha reconhecimento de algumas caríssimas pessoas e de outras que admiro muito artisticamente, tenho ficado cada vez mais amargurado com a maioria medíocre em ambas as áreas, que sei não ser nova nem contemporânea e sei ser aparentemente irremediável, a não ser pelo tempo, como em todas as épocas. É preciso deixar claro, especialmente, que não é a veiculação da arte medíocre que mais me incomoda (tudo bem um poeta não muito bom lançar um livro, ou dois, ou cinco ou ainda não termos nenhum compositor maior vivo e jovem com destaque nos últimos tempos), mas é, sobretudo, a teorização acerca do verso e das canções que estes artistas propagam em programas de tv, mesas de debate, eventos literários e afins. Igualmente me incomoda ver alguns colegas bastante talentosos e alijados de espaço, de todo o espaço, até mesmo deste pequeno de onde reclamo. Vale aqui ainda a ressalva de que não recrimino generalizadamente. Considero-me amigo de uma poeta recentemente chamada para um colóquio que com justiça deveria estar em todos os colóquios possíveis.
Também conheço virtualmente um compositor que tem feito muito pela canção e é muito talentoso. O mais comum, entretanto, desola-me imensamente.

Sei que soa arrogante (embora a certeza de que somos todos sacos de carne animados temporariamente, já declarada aqui, me redima um pouco), mas é com muita sinceridade que escrevo estas linhas. Este estar entre – ser saudado por algumas autoridades literárias e cancionísticas, mas não ter espaço para tornar pública minha arte (talvez porque para isso a autoridade seja comercial e não estética) – tem sido realmente muito perigoso pra mim. Não quero também, depois de gênio incompreendido, mobilizar o lugar do coitado, mas tenho tido grande desânimo para tudo e até náuseas físicas quando penso muito nessas questões. Enfim, acho que o espaço razoavelmente público do blog tem sido uma força perniciosa para a minha arte no momento. Esta é atualmente minha segunda parte da verdade.

Detesto dogmas e verdades absolutas, portanto, não o farei eu mesmo, muito menos aqui neste espaço que todos aprendemos a tornar tão querido com estes dois anos. Entretanto, para ter uma vida mais tranqüila pragmática e internamente, para poder recuperar parte da felicidade que já vivi ao terminar uma obra que parece bastante apurada, deixo de viver um pouco neste espaço virtual. Confesso que uma terceira parte da verdade pode ser considerada uma necessidade redescoberta de sair de casa para ver peças, filmes, exposições, visto que não o faço com regularidade nos últimos 15 meses, não o faço quase nunca, na verdade, mas como sou um misantropo reconhecido, não quis colocar isso na conta. Talvez o prólogo de Memórias Póstumas caiba exatamente neste momento, posto que raisonnablement são em torno de cinco os meus leitores mais assíduos. A esses minhas desculpas, aos demais um piparote.

Sendo direto, estou dando tempo neste nos outros espaços em que posto. Certamente erro, por estar certo, assim como antes acertava, quando errava com certeza.

May 29, 2009

Corrigido

Acho que não comentei por aqui, mas faço atualmente uma oficina de contos que tem me ajudado muito, embora eu ainda esteja longe de ser alguém na prosa. Não dou os créditos, por enquanto, por achar sinceramente que seria um reclame digno de reclamações, visto minha disabilidade com a coisa. De toda forma, posto hoje um destes contos feitos para a oficina, já com as devidas correções, o que não o redime. Um começo de semana (posto no fim) cheio de arte a todos!

Ecce homo

Não sei se por índole natural ou civilizada, os homens tendem a preferir verdades excludentes. É feito disto ou daquilo, é determinado ou casual, é restrito ou livre o arbítrio, é abominável ou preferível, é culpado ou inocente. Visto nosso extenso percurso de enganos, está claro que esta não é a melhor forma de conhecermos bem qualquer coisa. Ao invés, proponho entendermos os corpos, físicos e abstratos, como uma relação dinâmica de forças opositoras, entrelaçadas a tal velocidade, diria Heisenberg, que apontar qualquer delas é perdê-las todas. Escolho e não escolho uma dessas relações para que entendamos melhor no que desperdiçamos agora o nosso tempo.

Os homens não mudam, dizem os provérbios, a História e a sabedoria popular. As crianças sim, ainda bichos, moldáveis, aptas, têm escolas, preceptores, e normalmente são educadas pela sociedade vigente a tornarem-se homens (sendo isso bom e ruim). Os homens mudam, eis a moeda corrente dos religiosos, psicanalistas e metafísicos em geral. Basta que um ser superior (Jeová, Tarô ou o Ego) intervenha com sua força descomunal para que drasticamente se altere a natureza do ser. Tomemos, então, todos nós como um único homem. Não o de Platão, porque distante, nem mesmo o de Marx, mas um homem máximo, que nasceu com as comunidades mesopotâmicas e que vêm se arrastando desde então, reunindo seus fragmentos, até finalmente se achar pleno e orgânico no começo deste século. Olhando no rosto desse Homem, olhando-o nas mãos, vemos sem dificuldades que ele muda. Não mais amaldiçoamos as adúlteras a descair a perna e a inchar o ventre. Também não consideramos todas as mulheres, de antemão, predispostas ao sexo. De mesmo ângulo e visada, vemo-nos ser exatamente o mesmo homem de outras eras, nos movimentos agrários contra Licinae Sextiae e nos segundos socos das brigas de bar, que revidam no direito o manchar das honras e dos olhos.

De que nos serve vermos simultaneamente os homens por dois lados? – objetarão os pragmáticos. Com o Homme au chapeau debaixo do braço, respondo que não nos serve mesmo para muita coisa, senão para estarmos um pouco mais distantes do erro certo. Forçarmos a mudança está previsto e será evitado. Adiarmos a mudança é impossível. Dentro do Homem somos minúsculos, células epiteliais, a princípio, que quanto mais relevantes, porventura, mais nos constituímos organismo adentro, aumentando-nos em importância e permanência. As duas únicas medidas cabíveis (e não excludentes) são: dedicarmos nossas vidas a salvar todos os homens e investirmos nosso tempo numa forma de matá-los. Nisso Jesus e Hitler são idênticos.

Para mim, que além de falar sozinho não possuo qualquer outra mania de grandeza, não se apresenta ainda de forma clara como devo empregar meu pensamento. Deitado a alguns metros e uma parede do quarto de meus pais, perco-me microscopicamente na metáfora do corpo. Se vamos nas camadas mais externas da pele, de que nos vale o fôlego? Qual a verdadeira importância de outros como eu, pequenos e substituíveis? Se sabê-lo me torna profundo, eu não teria ascendência sobre aqueles que servem somente para me proteger do que vai fora? Meus pais, que dormem, o que diriam a respeito? Certamente sorririam ou negariam sem entendimento algum, como já fizeram em outras vezes. Nossas diferenças têm se tornado evidentes há alguns anos e não vejo como reatar certa ligação perdida que sinto já ter experimentado quando éramos bichos. Devo salvá-los, matá-los ou ambos? Tem alguma relevância qualquer um dos meus atos? Qualquer ato, em geral, possui algum sentido?

Durmo pensando que o melhor mesmo é que eu não me case. Se sucumbir, entretanto, que jamais tenha filhos. Caso por descuido venham os rebentos, fingir-me constantemente submisso até conseguir tê-los todos fora de casa. Enfim, cada qual que cuide de sua natureza.

May 24, 2009

bill



Enfim, trago outro poema, nascido direto da observação de um amigo. Chamo de amigo por impropriedade, não somos íntimos, mas tenho grande admiração pela pessoa e seu carinho evidente pelo filho me emocionou bastante. A uma primeira leitura - é raro para mim mostrar poemas antecipadamente -, minha mãe observou: mas não seria "todas as crianças são negras"? Não, não seria. Falo de cores, não de raças. Não acredito em raças diferentes, somos todos da mesma raça! Aliás, as palavras-cores são muito mais leves e precisas do que as palavras-raças. Muita arte e ótima semana a todos.

May 23, 2009

Obituário

Estava com um poema no forno para postar aqui, quando por acaso assisti ao programa do Paulinho Moska no Canal Brasil em homenagem ao compositor Zé Rodrix, que morreu há alguns dias. Confesso que não conhecia a obra do compositor mais do que sua história - concebia-o similar ao entrevistador, cancionista mais ou menos, de uma canção só -, embora "Casa no Campo" tenha sempre sido uma de minhas canções prediletas. Duas de suas colocações me tomaram de assalto e me fizeram dedicar o post de hoje à sua vida de compositor. A primeira: que devemos voltar a canção! Segundo Rodrix, nas últimas décadas, começou-se a pensar em show, em imagem, em proposta, e a canção mesmo, coitadinha, ficou em segundo plano. Assino embaixo. A segunda: que as canções escolhidas tem que ser aquelas que emocionam primeiro o compositor. Se o fazem, estão prontas. Não poucas vezes, mas também não muitas, chorei ao término de determinada canção! É realmente intensa a energia envolvida no momento em que se compõe. Confessei a um amigo nestes tempos: um poema fica dias na cabeça, fermentando; uma canção te atormenta, te incapacita, até ser colocada no papel... Após a entrevista, fui atrás para descobrir o talento de Zé Rodrix. Viva a memória do compositor! Dois vivas para suas idéias! Três para suas canções!

May 21, 2009

a última canção

Talvez eu comece um projeto bem legal com uma banda gaúcha, em paralelo com o projeto que já tenho com a Abracabrália. Este novo projeto promete ser mais na praia do rock and roll, na tentativa de fazê-lo a contento em português, tarefa que acho só algumas poucas bandas e artistas brasileiros conseguiram realizar bem (Cazuza, Cássia Eller - em alguns momentos -, Nação Zumbi, Mutantes, Secos & Molhados, Los Hermanos - com alguns filtros também, devem haver outros que desconheço). Daí já se entrevê o tamanho do desafio. Tô dentro. Muita arte a todos!

a última canção
Letra e melodia: Guto Leite
(sobre harmonia da música “do bolso pro meu”, da banda Invisível Ataca)

não é tarde
pra consumir
a última canção
sem sentido
deve surgir
a última canção
não espalhe
guarde pra si
a última canção
nos ouvidos
deixe dormir
a última canção

deve haver uma cidade
em vão
pra onde todas vão
como faço pra morrer
canção

não é tarde
pra desistir
da última canção
dos ruídos
vai ressurgir
a última canção
também vale
distribuir
a última canção
pelos fios
para explodir
a última canção

deve haver uma cidade
em vão
pra onde todas vão
como faço pra morrer
canção

May 17, 2009

O Trombone IV



De improviso, conseguiria citar quatro características fundamentais para uma boa narrativa longa: personagens cativantes, bom enredo, ritmo coerente com a proposta que se entrevê e um narrador que ajude a conduzir as coisas. Claro que para outros leitores, outra lista, mas acredito que ninguém deixaria de fora estas quatro obrigações de um bom prosador. Leia-se: acerto no pouco, mas acerto. O quarto volume desta obliviada série que se propõe a fazer crítica de artistas contemporâneos traz à baila justamente uma boa narrativa longa. Trata-se de Quatro Negros (2006), de Luis Augusto Fischer.

Em linhas gerais, o conteúdo do livro está apresentado por seu título, embora, de maneira nenhuma, se possa resumi-lo à história de quatro negros. Aliás, por uma característica bastante peculiar da figura do narrador, não é nada óbvia a forma com que o autor nos apresenta Janéti, Seu Sinhô, Airton e Rosa. A princípio, ele (o narrador) diz que gostaria de apresentar ao leitor uma mulher que conhecera em um evento literário (Janéti) e que lhe contara sua história. Por meio de recuos, mudanças de foco, avanços, múltiplas narrativas e outros artifícios, acabamos por saber a história de Janéti, de seus irmãos Airton e Rosa, e também de um velho e especial morador interiorano, Seu Sinhô.

Voltemos à proto-teoria fajuta que esbocei no primeiro parágrafo para tentar entender como esses quatro fatores figuram na novela (graciliana) de Luis Augusto Fischer. Há no livro personagens cativantes? Sem dúvida nenhuma, sim. Aliás, comentei com o autor (vantagem ou desvantagem que também sofro: escrever e continuar vivo), “que problemão você arranjou com a Janéti, hein!”. Explico-me: acredito que o livro acaba sendo polarizado por esta personagem em função de seu extremo carisma e de sua história magnífica. Usando uma metáfora futebolística e o time de afeição do autor, a Janéti seria o Nilmar de Quatro Negros. Tudo bem que há um D’Alessandro na figura de Seu Sinhô, extremamente requintado e cativante em sua simplicidade, e também um Tyson na pele de Rosa, rápida, mas precisa em sua função, e até mesmo um Guiñazú nas páginas de Airton, ou Jorge, personagem menos chamativa, mas que exerce sua função na estrutura da novela; mas é certamente Janéti quem chama para si a atenção durante a leitura e a memória depois dela. Prova disso talvez seja que ela é o suposto fio narrativo da trama e reapareça freqüentemente, em comentários ou na história de todas as demais personagens. Seria um problema do livro? Acredito que não. É preferível haver alguém como ela numa obra do que nenhum personagem que nos marque, que nos leve a ver as pessoas do mundo em cotejo com ela. Além disso, salvo Dostoievski, não conheço prosador que seja capaz de ter uma dúzia de personagens igualmente complexos em seus romances. Fica a ressalva de que torço pro Vasco, indício de que pouco entendo de futebol. Pilhérias.

Um bom enredo? Também respondo afirmativamente a essa pergunta retórica. Se bem que, no caso do livro em questão, é muito difícil separar o enredo dos demais elementos, como as personagens ou a figura do narrador. Não tenho, entretanto, ressalvas em afirmar que há, sim, um excelente enredo, pois a cena magistral da página 35 fia de sobra o meu elogio. Aos usurários mais exigentes, invoco o diálogo com Seu Sinhô na página 48 como minha garantia. Tento me eximir de parafrasear qualquer parte da narrativa para não macular prazeres de leitura. Enfim, o livro traz bons achados (grandes e pequenos) em sua trama, todos competentemente alinhados em prol da atenção do leitor.

Para isso também age o narrador, a terceira figura que apontei inicialmente. O narrador de Quatro Negros vai bem próximo do leitor ou talvez fosse mais preciso dizer que vamos nós a seu lado, visto que eu o qualificaria como simpaticamente voluntarioso. Que não se espere um narrador como o de Brás Cubas, pois não é o caso. No livro de Fischer, o narrador é muito mais cuidadoso com o leitor que o ouve, embora, com alguma atenção, é possível sentir que estamos à mercê de suas vontades e de suas perspectivas. Surge-me a idéia de que talvez eu esteja desvelando um mecanismo interno da novela – que o autor me perdoe –, qual seja, certa ingenuidade própria ao leitor de que também se valeu Machado para fazer funcionar seu romance acima citado por décadas antes que alguém levantasse suspeita sobre suas impressões. Como não tenho tantos leitores quanto ambos, espero não pôr com esta observação empecilho à leitura de ninguém. Chamo atenção, ainda e por fim, à linguagem bastante feliz mobilizado pelo narrador, como também às digressões e reflexões que assomam muito à riqueza do romance.

Resta, como fechamento, falar sobre o ritmo da novela, que vai muito bem, obrigado. Aliás, talvez o ritmo de uma narrativa faça parte daquele conjunto de coisas que só notamos quando há algum problema. Para Poe, um conto seria uma narrativa para se ler de uma assentada, pois bem, o ritmo da novela de Fischer é tão ágil, que talvez fosse mais acertado chamá-la de conto, o que me parece uma grande virtude, visto que, no caso, a agilidade da prosa não vem acompanhada de superficialidade de tratamento dos temas. Romance, novela ou conto, pouco importa, se o ritmo é capaz de nos causar avidez de leitura, sobretudo em tempos tão pouco afeitos à leitura ou ao talento.

Enfim, nos dias de hoje, talvez o maior elogio que se possa fazer a uma obra – já que não tenho a ilusão de destituir do histórico o mais infalível dos julgamentos – seja que é uma obra para ser lida! Ser lida no sentido de que compõe conosco nossa visão de mundo e de nós mesmos, além de merece, certamente, um lugar nas representações simbólicas que nos constituem como seres pensantes de nossa época.

Cornetem!

May 15, 2009

O último quarto




Atendendo à indicação de uma amiga, posto hoje o poema que postei alguns dias atrás no "Poema Dia". Não gosto de repetir nem artigo científico, mas gosto do poema e ela me deu boas razões, que omito. Abraço arteiro e bom fim-de-semana a todos.

caramanchão

assim envelheço
de olhar cansado
pro lado do quarto
que já morreu

até a surpresa
jovem mas frágil
de tão enganada
adoeceu

sem ter o cuidado
amadeirado
minha pele farta
se amarrotou

sem ter para onde
ir meu enfado
transmuto em destino
cá onde estou

e onde me encontro
ausente de filhos
de netos amigos
de namorar

o que vai comigo
se é que a morte
é ir do destino
a algum lugar

reabro as janelas
e a luz senhora
mais velha do mundo
enlouqueceu

movendo o vestido
não mais acorda
a cor que a poeira
adormeceu

são tantas memórias
andando em volta
a casa esquecida
dos meus avós

velórios alpendres
serões e sótãos
tudo que o tempo
despe de voz

agora envelheço
de vez e por fim
não sei a quem devo
cumprimentar

que sinos são esses
que saudades
eu sinto no corpo
imenso do ar

May 12, 2009

Poema Dia

Hoje meu posto é lá no Poema Dia. Convido a todos para conhecer o espaço. Mesmo que meus versos não agradem, certamente acharão ótimos poetas para-levar-consigo. Ótima semana e arte em exagero a todos!

May 10, 2009

Poema de viagem

Em Campinas, para tocar com a banda, o tempo passa sempre mais rápido do que eu. Por isso, fico com pouco tempo para trabalhar nos meus escritos. Às vezes passo dias trabalhando versos na cabeça (enquanto faço outras coisas) que só vou escrever em minha volta pra casa, no tempo letárgico do meu quarto. Enquanto isso, ocasionalmente, surgem pequenas lascas-poemas, que compartilho. Boa semana e arte a todos!

devaneio

jamais vou acordado

sigo em sono íntimo e profundo
todo o tempo

se às vezes me perturbam
para falar de algo
com olhos mãos beijos e apontamentos

desperto só o bastante
para agir de modo
que todos se contentem

e durmo

durmo novamente
no chão acolchoado de minha alma

deste sonho
vitalício
percebo que quando se acorda
é tudo muito cortante

e rude
sem as nuances necessárias
para ver que o mundo se esmaece

que as coisas trazem outras coisas
sobrepostas

nos raros momentos lúcidos
de vigília
pergunto-me
se todos vão como eu

se todos dormem

e se da mesma forma
se assustam
quando um rasgo de mundo lhes acorda

May 5, 2009

O ser e o nada

Ando como sempre. Produzindo... produzindo... Não há mais sentido em retirar tudo da alma para pôr num símile de alma que é uma pasta do windows. Estou neste limiar estranho onde se torna difícil delinear as coisas, dar sentido às coisas. Seria menos angustiante ouvir delas mesmas, as coisas, baixinho, a confidência íntima sobre qual o sentido de suas vidas. Mas nada! É tudo um extenso e angustiante silêncio. Salvo uma ou outra nota consonante, o resto não existe. O que realmente me tira o sono, se querem saber, ou se não querem, é que todos vivem, até felizes, nesse resto inexistente, enquanto as notas raramente encontram alma que lhes guarde. Abaixo, o poema que fiz pro quase choro de uma amiga.

May 3, 2009

O Trombone III



“A última gravação de Krapp” (1958) e “Ato sem palavras I” (1956), do irlandês Samuel Beckett, com Sérgio Britto e direção de Isabel Cavalcanti, foi minha apreciação artística deste domingo à noite.

A primeira história nos apresenta o velho sr. Krapp (“Sr. Merda”, em alemão) rememorando, por meio de uma fita de áudio, as impressões que havia gravado vinte anos antes, em especial, a morte de sua mãe, a morte de uma mulher segurando sua mão e aquele que parece ter sido o último amor de sua vida. Para aumentar a complexidade abrupta de Beckett, vale lembrar que a personagem é um escritor aparentemente mal-sucedido e levemente alcoólatra, o que a um olhar mais agudo revela ter escolhido, em algum momento, sua arte em detrimento das paixões que poderiam dar-lhe algum prazer na vida. O diálogo, ou monólogo, entre o sr. Krapp cinqüentenário e sua versão mais nova também intensifica o efeito dramático do texto beckettiano, dando ao expectador, gradativamente, a medida exata da desolação daquele homem e, por algumas identificações, por conseqüência, minha própria desolação (ou a de algum expectador mais sensível).

O segundo texto, absolutamente meta-teatral, mostra um ator empurrado para cena, numa luz absurdamente clara e angustiante (uma praia, possivelmente), e sendo dominado com sarcasmo por alguma instância externa. Ora lhe oferecendo a sombra de um coqueiro, tesouras para cortar as unhas ou água, ora deixando estes mesmos objetos fora do alcance da personagem. Cansado do jogo, este náufrago da quarta parede decide suicidar-se, mas mesmo isso lhe é impedido por aqueles que têm poder sobre ele. Ao fim, parado no meio do palco, a personagem-ator não mais aceita os caprichos deste “deus” da autoria e renuncia a qualquer objeto oferecido por ele, até que as luzes se apagam por completo, num simulacro bem realizado da morte cênica.

Não entendo muito de teatro, senão como amante – os amantes tendem a ser as pessoas que menos se entendem, embora o teatro muito saiba de mim –, por isso não me sinto tão à vontade para falar das escolhas cênicas realizadas, mas posso dizer, sem tanto receio, que a atuação de Sérgio Britto dá a impressão de que ali está um ator que conhece os atalhos e os exibe, sem qualquer vaidade. Nos pequenos atos realizados, nas pausas, na entonação em tal ou qual fala; deixa-se entrever sempre em sua interpretação as não poucas décadas que aquele homem passou em cena e o domínio experiente do texto e das personagens. De sua generosa conversa ao final da apresentação, chamo a atenção para a orientação da diretora Isabel Cavalcanti exposta pelo ator. Era para ele buscar ao máximo se fundir com o senhor Krapp, evitando as expressões faciais ou corporais demasiadamente marcadas (vale a nota de que também o senhor Britto perdera a mãe e presenciara a morte de uma mulher, como a personagem e o próprio Beckett). Ora, essa era exatamente a chave de leitura que me faltava para entender que, como eu, a diretora havia compreendido as peças (aproximadas) como a luta do artista pela aceitação de sua arte, procurando fazer o possível para não se perder nesta busca. Tanto a solidão do Sr. Krapp quanto a subserviência desoladora da inominável personagem da segunda peça são facetas possíveis daqueles que pretendem posicionar-se artisticamente diante de seu tempo, postura notória também assumida por Beckett. Que o dramaturgo tenha realçado os matizes mais escuros deste quadro nestas duas peças, deve dizer respeito à sua estética ou a um entendimento perspicaz de como as coisas se desenhavam para a arte a partir da segunda metade do século passado.

Caros habitantes de Porto Alegre, compareçam ao 4º Festival Palco Giratório do Sesc-RS! Há um bom número de boas peças sendo representadas neste mês (para a programação, http://www.sesc-rs.com.br/palcogiratorio/programacao.htm). Principalmente: classe artística de Porto Alegre (ou os que se concebem como tal, o que na prática dá no mesmo), compareça ao Palco Giratório! Tudo bem que a arte de entretenimento atualmente em voga – a recusa ao último filme do Meirelles talvez comprove essa hegemonia – tem o seu lugarzinho quente, debaixo de um cobertor de vó. Mas acho importante, preciso, quem sabe, que vocês, escritores, atores, intérpretes, compositores, dançarinos etc., sintam que ainda respira um artista dentro da carcaça hostil e exagerada de um entertainer. Que o resto seja... Silêncio.

Cornetem!

Apr 30, 2009

O eterno retorno

Sou um pouco radical quanto à poesia brasileira (lê-se: chato) e tenho me tornado cada vez mais restritivo. Sinceramente não afirmo de boca cheia tal fato, mas com uma tristeza lenta, uma sombra sobre o peito. Hoje o e-mail de um amigo me lembrou que há muito eu havia lhe falado: "mesmo com todas as falhas do Concretismo (e o inevitável desdobramento pra poesia-power-point, acrescento), não podemos esquecer que foram eles que nos alertaram para a materialidade do verso". Eis aí, no guto obsoleto, um começo possível para o contragolpe da minha lassidão romântica sobre o meu purismo crítico. No caminho, que encontre Drummond e João Cabral (alguém carrega a Bandeira?), e que marchem!
Abaixo, um poema.


Apr 27, 2009

Em outro espaço

Fiquei agradecidíssimo pelas tantas leituras da postagem anterior! Este diálogo todo é muito reanimador pra mim, no sentido original do termo, que seria algo como "dar alma (ou fôlego) de novo". Sei que pode parecer conversa fiada... mas pra mim, que levo arte como vida, indissociavelmente, a custo alto para ambas, esse diálogo é talvez a única coisa que chamo de verdade.

Hoje posto, graças à generosidade de uma poeta amiga, Laurene Veras, em seu espaço. Lá como cá, acredito, as portas estão abertas a leitura e comentários. Obrigado, Lolo, e muita arte a todos!

www.lulinlulin.blogspot.com

Apr 23, 2009

Pele

Poema daqueles que vêm arrancados, impetuoso, de algum lugar já exposto. Poema que quase vem a contra-gosto, se não fosse pleno de vontade. Poema que acovarda quem o fez e desdenha de quem lê. Poema que de tão fraco poderia ter vindo gente.

pele

o desejo
sob alças e rendas
de um fino tecido
vermelho

feito a pele branca
que esconde
uma vida de carne
ou o avesso

naquele ralo instante
pele sobre o tempo
quis eu ser o tecido
do desejo

rubro de vontade
proteger-lhe
ou em seu cheiro branco
silenciar-me

como ser o mesmo
de que jeito
sem saber se sou pele
ou se me arde

Apr 20, 2009

Ironia Graduada

Ironia Graduada

Sempre ouvi dos meus amigos pós-graduandos – e eles configuram uma boa parte dos meus amigos, visto minha trajetória conturbada e inapetência formal para passar em seleções de mestrado – a objeção de que o tempo é escasso demais para a feitura de uma dissertação a contento. Agora que estou do lado de cá da fronteira, ou entre uma fronteira e outra(s), posso verificar por mim mesmo e assinar embaixo da fala de todos, com uma única ressalva. O discurso “o tempo é insuficiente para se fazer uma boa dissertação de mestrado” me parece ser uma espécie de mantra catártico e institucional para amenizar a culpa de sua veracidade.

Na UFRGS, por exemplo, fazemos 24 créditos obrigatórios, preferivelmente concentrados no primeiro ano, o que equivale a um número de 6 a 8 matérias (no meu caso, por conta da colocação no processo seletivo, mais um estágio de docência no primeiro semestre do ano que vem). Supondo que, hipoteticamente, cada uma das 3 ou 4 matérias do primeiro semestre exija semanalmente um texto teórico de 40 páginas, temos por média 140 páginas por semana de leitura, mais as 12 horas dedicadas in praesentia. Uma semana tem, “por definição”, 168 horas, das quais, por prescrição médica (não o meu caso, claro, que sofro de insônia crônica), passamos 56 horas dormindo, ao que nos restam 112 horas de vigília. Já tirando as doze horas de aula presencial, 100 horas, este é o nosso tempo hábil. Aproveito para subtrair na conta, bem por baixo, uma hora por dia para refeições (somando todas, claro) e uma hora para chegar e sair da universidade, no meu caso, em três dias: 90 horas restantes. Cento e quarenta páginas em noventa horas. No quadro hipotético de vivermos para o mestrado, é tempo que dá e sobra.

Contudo, supondo que um ou dois dos nossos professores hipotéticos se empolgue com sua disciplina e, por exemplo, proponha a leitura de um romance de 312 páginas em língua estrangeira de uma aula para outra, ou uma coleção de trechos de história literárias que totalize também umas 300 páginas. Assim, nosso número inicial de 140 páginas por média, subiria para algo em torno de 600 páginas, nas mesmas 90 horas previamente calculadas como “disponíveis”. Bom, quem não lê sete páginas e meia por hora? Ainda absolutamente razoável... Opa, mas ainda temos as leituras do nosso projeto, motivo, aliás, pelo qual voluntariamente dedicamos nosso tempo na universidade. Quantas páginas devemos ler semanalmente para nosso projeto? Cem? Duzentas? Arbitrariamente, escolho esta última alternativa (porque certamente é mais do que isso) para figurar em nossa equação, somando agora 800 páginas por semana. Em noventa horas, temos ainda a aceitável média de quase nove páginas por hora, façanha absolutamente dentro de nossas capacidades.

Embora eu reconheça que toda a conta apresentada tenha sido toscamente realizada e seja, até, tendenciosa (sim, embora o Humano não seja grande coisa no mundo de hoje, eu estudo Ciências Humanas e não Exatas), o número obtido não escapa em muito das minhas contas pessoais. Para o mestrado, contabilizei até o momento algo em torno de 3000 páginas lidas nestas quatro primeiras semanas de estudo, o que não deveria causar surpresa ou admiração, visto que já demonstramos ser uma empreitada totalmente possível. Entretanto, eu estudo canto, diariamente, uma horinha, e também violão, a mesma quantia de tempo. Sabe como é, tenho aptidão para compor, e canto numa banda excelente em São Paulo... Sinto vergonha muitas vezes quando me reconheço, em erros de execução, menos capaz como músico do que os músicos que tocam comigo e tento suprir isso com estudos. 76 horas. Também tenho este blog. Sabe como é, escrevo e, como João Cabral, acredito no exercício diário da “pena”. Dedico, então, uma hora por dia para um (postando ou visitando blogs interessantes), outra hora por dia para outro. 62 horas. Também estudo inglês e francês para ajudar na leitura dos textos acadêmicos, salvo aos domingos, quando antes estudava a língua dos anjos, mas hoje recupero o trabalho semanal, uma hora por dia, alternadamente. 56horas. Ufa! Graças a Deus não vou ao teatro, ao cinema, não tenho amigos freqüentes em Porto Alegre, não me divirto, nem me dedico a buscar felicidade, porque daí consigo manter esta belíssima média de 15 páginas por hora que tanto me deixa no controle das rédeas do mestrado. Tá bom, tá bom, também tenho minhas leituras pessoais, mas uso de integridade (momentânea) para tirá-las da conta e assumir por elas meu dolo e minhas vontades.



Retorne ao primeiro parágrafo desta crônica, eu espero... De quem é a culpa deste quadro? Minha, primeiramente, por somar ao mestrado outras atividades. Da Academia, por não escolher um programa mais razoável, por exemplo, de 12 créditos e o restante em horas de orientação (vale dizer que não é mérito só da UFRGS, já que também falam a respeito meus amigos da Unicamp e da USP). Dos professores hipotéticos, que se animam demais com seus projetos de estudos, sobrepujando a vontade e os projetos dos alunos com suas ambições epistemológicas. Da cultura e/ou natureza, que provavelmente impediria que um modelo centrado na responsabilidade do aluno seja adotado, com manutenção de alguma excelência acadêmica.

Não leia todos os textos propostos, ora, espera-se dos alunos esta “maturidade” – dirão alguns. Concordo, mas não posso. Vai que a minha reflexão faltante sobre o assunto esteja justamente naquela página desprezada por minha pressa medíocre. Preciso acreditar que os professores propõem as leituras mais relevantes sobre o tema. Compulsão? Obsessão? Pau-mandado dos reconhecimentos dos pais projetados numa vida adulta? Que entrem em reunião meus analistas hipotéticos, enquanto meus professores hipotéticos gastam um domingo de sol na elaboração de seus programas.

Apr 18, 2009

Volta aos versos

Tenho escrito muita prosa, o que inevitavelmente atrapalha minha poesia. Apesar de ser a mesma matéria, a mesma curva, são duas forças que apontam para direções diferentes da palavra. Pender para uma delas é atrapalhar as duas. Assim que acabar um roteiro e a oficina de contos, prometo (a quem?) poemas menos prosaicos do que este. Ainda bem que Álvaro de Campos, na minha cabeceira, sempre estende seus braços e ainda durmo, verbo, na minha linguagem de sonhos.

pessoa revisitado

as lágrimas desmedidas das mocinhas de novela
as festas as buzinas os gritos os interpelos
as conversas que escapam nos espasmos dos tetos e paredes
os saltos os pneus que se apressam retardam e freiam
os versos de apelo de álvaro a walt whitman
as últimas cenas dos filmes comerciais os comentários
de futebol os tiros os fogos de artifício os escapamentos
os toques de celulares os comícios as promoções
dos pacotes das televisões a cabo
zap...zap...zap...zap...zap
a violência real dos noticiários da noite
a violência real dos documentários
a violência real dos filmes de ficção científica
os desfiles militares no oriente médio
os feriados que saúdam os soldados de chumbo
as tropas de choque a política de boa vizinhança
de Israel as vozes das crianças as portas os interfones os alarmes
os conselhos deixados por cada pessoa morta
os ditados populares os álibis os axiomas
as caçambas sendo içadas lentamente roldana contra ferrugem
os arranques de motor as cruzadas ambientais
em nome dos santos animaizinhos os gols
os touchdowns os aces os homeruns
os liquidificadores os cortes dos objetos de metal
que morrem ao bater no chão

não há silêncio
nem haverá
silêncio
adiante

é tamanho o verbo empalando os homens
que a voz não sara ao vir de dentro
mesmo se a fala suprema fosse finalmente despertada
aquela para onde todas as falas se encaminham
a razão pela qual a língua foi criada
esta seria nada uma entre tantas outras
falas vãs pequenas inúteis valas de palavras
ainda bem que trouxe sua blusa de manguinha
os agradecimentos as mesuras os aceites
as cerimônias as fotos de viagem
o grito que todos gravam fibra a fibra nas entranhas
para um dia exilarem
tremendamente para cima para nunca mais
calarem
e todos sentirem o incômodo deste excesso de barulho

Apr 16, 2009

o cardeal

o cardeal

Ser órfão não é bolinho! Imaginem cada festa feita para ter família. Nessas horas, mesmo o mais forte dos órfãos não agüenta o tranco. Antes que fiquem com pena de mim, não sou órfão, fui... Até uns doze anos, meu pai era na prática um relógio enorme folheado a ouro e sem bateria que eu levava no pulso e que ele deixou ou esqueceu o presente no berço da maternidade. Pensando no futuro, nas vezes que eu precisaria de uma família sem ter, comecei, desde menino, a criar a raiva comum das crianças que têm perguntas sem saber quais. Não saber a pergunta certa, meus amigos, é muito pior do que não saber a resposta certa. Peço desculpas, que não sou das palavras bonitas, mesmo assim me acho no direito de contar minha história, pelo simples fato de ser diferente da sua. Ao invés de esperar as perguntas, então, vou me adiantando em dar as respostas certas. Quem sabe com elas, depois, vocês não acertam as perguntas e evitamos todo o lero-lero.

Pelo pouco tempo, escolho só um ano para contar minha vida rebelde na escola. No fim do verão, em 84, eu voltava do orfanato de férias não muito calmas. O cinto apertava por lá e a irmã Winston estava cada mais durona. Pressionar órfãos é mexer num vespeiro! O lar de caridade parecia um campo de guerra entre nós, os diabinhos, e elas, as noivas de Deus. O começo das aulas foi como exilar Lúcifer e ganhar um cessar-fogo de cinco dias por semana. Lá fui eu então tirar a paz dos colegas, dar mais trabalho aos funcionários e agravar a boca saltitante da senhora Margarida. O roteiro era o mesmo sempre: eu armava alguma, com a ajuda ou não dos meus comparsas, aguardava a hora certa, fazia o que tinha que fazer e a sala explodia em gritos e risos excitados. No final de cada malvadeza, desistia Dona Margarida sofria:“Gente, acho que por hoje tá bom, vocês podem ir brincar um pouco”.

No terceiro ou quarto dia de aula daquele ano, no meio da manhã, entrou na sala um novato chamado Jorge. Não sei se foi o seu jeitinho de menina, de fazer tudo miúdo, ou seu topete armado sobre um rosto de barão, que levou Murilinho a achar-lhe um apelido, “parece um cardeal-do-sul do sítio da vó”. O tempo resume as coisas, e em duas semanas ele já era o Cardeal. Não por raiva das freiras do orfanato, fãs de um tal falecido Cardeal Motta, nem qualquer coisa contra os ricos, mas aquele menino aos poucos foi me tirando do sério até que eu quase não podia olhar pra ele. Ele dava a vez pras meninas entrarem primeiro na sala. Ele respondia de bate pronto às perguntas da Dona Margarida. Ele passava o recreio com um livro na mão (sem ilustrações de capa!). Ele não ria das minhas brincadeiras, muito menos ajudava. No fundo, aquele engomadinho era exatamente o meu oposto, e precisava pagar por isso.

Porque a raiva era grande, tramei com calma o que fazer com ele. Percebi primeiro que sua grande bolsa de couro parecia impermeável. Depois vi que sua saída pro intervalo era como o café da manhã das freiras, igual: tocava a sirene, ele fechava o caderno, colocava tudo dentro do estojo, metia a mão na bolsa pra pegar seu livro, seu sanduíche, e ganhava o pátio. Aposto que todos vocês já imaginam o que me passou pela cabeça, prova que não somos assim tão diferentes. O problema foi que exagerei um pouco e, além da água, joguei lá dentro algumas giletes usadas que o zelador guardava sei lá pra quê. Não deu outra. Numa manhã de inverno, uns dez graus, aproveitando a saída do Cardeal e com a ajuda dos meninos para distrair Dona Margarida, executei o plano. Diferente do que eu tinha planejado, antes do intervalo o menino abriu a fivela e, vendo o estrago, deu seguidos e abafados gritos de raiva com choro, tudo misturado. Afoito para salvar seu livro, seu sanduíche, enfiou sem pensar a mão na água trincando e um berro agudo e cortante aboliu os verbos defectivos de Dona Margarida.

O que aconteceu depois foi bastante confuso. Lembro somente de ser umas onze da manhã e eu caminhar pro orfanato, suspenso, quando uma caranga de grife encostou na calçada. Era a Dona Cardeal, que me oferecia carona. Ela, como o filho, parecia gostar dessas coisas de perdão, bons modos e piedade que eu já sabia não funcionar muito no mundo real. Dentro do carro, respondi sobre o que aconteceu, falei da minha história, pedi desculpas, acuado, e ela acabou me chamando pra tomar café em sua casa no fim de semana. A três quadras do meu destino, quando o silêncio tinha comido todos os assuntos, ela olhou pro meu relógio e disse, sem importância: “Antigo este teu relógio, muito bonito. Desde quando você tem?”. “Desde sempre”, respondi, baixo. Achando que eu tivesse roubado, ela comentou: “É bem raro, deve custar uns bons milhares de cruzeiros. Meu marido tinha um desses, mas perdeu, há muitos anos”. Meus olhos passaram atordoados pelos traços da mulher e encontraram os olhos do Cardeal cravados em mim. Os mesmos olhos, o mesmo cenho, a mesma pele, a mesma raiva.
Aproveitando o semáforo, saltei do carro e corri, ainda ouvindo no fundo a voz esganiçada da mulher. Minhas pernas não órfãs, pernas que não perguntam, voaram como nunca para o orfanato. Dormi naquele noite com um embolo no peito. Como já disse, não sou muito bom com as palavras.

Apr 14, 2009

O Trombone II




Seguindo as tentativas críticas inauguradas há alguns dias neste espaço, chamo a atenção para um grupo de escritores de conto que já há algum tempo se faz fortemente presente no contexto da Literatura Brasileira, mas só nas últimas duas décadas podemos delineá-los mais claramente. Trata-se do grupo (é ruim, anteponho, o nome que escolho) dos “professores universitários ↔ escritores”. Consoante à tendência estrangeira, cujo exemplo máximo talvez seja o sul-africano Coetzee, o ambiente universitário brasileiro tem abrigado – e/ou atraído – um número significativo de bons contistas, dos quais destaco dois nomes, por fortuidade de “ter caído nas mãos” (talvez não se considere tão fortuito, já que ambos foram meus professores em algum tempo da minha trajetória universitária).

A primeira, Vilma Arêas, chegou-me por seu livro, Trouxa Frouxa (2000), mas como escritora já consolidara uma trajetória literária significativa antes que eu a conhecesse literariamente, com uma voz própria bastante original e um vigor “prosaico” impressionante. Com um estilo que lembra a figura dos caleidoscópios, onde numerosos fractais se alternam, convidando o leitor a realizar o movimento todo-parte de maneira dinâmica, é a meu ver aquela que mais traduz a contemporaneidade pós-moderna em seu estilo. É tudo pleno e fragmentado em sua prosa, é tudo sutil e profundo. Os contos incorporam a tradição urbana da contística brasileira (Trevisan, Fonseca etc.), mas certamente a leva um passo adiante, em flerte constante com os tons de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. No momento, a autora (informação privilegiada) dedica seu tempo à criação literária e só resta a nós, leitores, aguardar ansiosos para onde nos levarão as antenas dessa instigante contista.

O segundo, Luís Augusto Fischer, conheci aqui em Porto Alegre, pessoalmente e por meio do seu primeiro livro de contos, O Edifício do Lado da Sombra (1996). O que me chama a atenção (e eu a projeto para os leitores) é a manutenção de uma ironia muitíssima requintada, em outros tempos muito cara a escritores como Machado e Borges (não à toa, objetos de pesquisa do professor), como também um competente controle da forma do conto, muitas vezes duplicado em si mesmo, e da figura do narrador (nas múltiplas identidades que assume ao longo do livro). Preciso correr atrás das demais obras do escritor, mas sua estréia, já em idade madura, e os prêmios recém obtidos permitem que eu aposte muitas de minhas fichas em seu estilo clássico, mas nunca retrógrado.

Aliás, sobre essa distinção clássico x vanguarda, faço uma rápida colocação final. Normalmente as épocas literárias oscilam entre um e outro, talvez num movimento dialógico entre “ousadia” e “solidificação”, talvez, modernamente, assumindo uma acepção mais mercadológica como “novidade” e “linha de produção”. O que gostaria de notar é que nos dois autores abordados nesta resenha há um teor mais clássico de produção textual (visto que compreensíveis, bem escritos, mobilizadores evidentes da tradição etc.), mas também há inovação, nas características textuais de Arêas – uma linguagem onírica algumas vezes – ou nas paratextuais de Fischer – há um conto entre parênteses, por exemplo (mínimo). Seria uma conjunção da antiga espiral oscilante ou vivemos uma época “clássica” em que as ousadias precedentes já estão sendo solidificadas por nossos autores contemporâneos? Daqui a cinqüenta anos, havendo humanidade, um jovem crítico metido a besta estará pensando na mesma pergunta, automaticamente transposta para seu blog pessoal. E viva o último capítulo de Ulisses!

Cornetem!

Apr 13, 2009

Poema Dia

Hoje estou lá no "Poema Dia", conheçam o espaço, se puderem. À exceção de mim mesmo, garanto que vale a pena! Muita arte!

Apr 12, 2009

A materialidade do verso

Conversando nesta semana com um recém-conhecido, tocamos no assunto Concretismo, que arrepia até hoje muitos teóricos e poetas. Não sou nenhum "camposino" de carteirinha, mas há que se reconhecer que eles fizeram com que não pudéssemos mais ignorar a natureza material do versos. Concordam? Também não sei se concordo...



Apr 11, 2009

Coisa - Abracabrália

Já havia postado esta mesma letra no Maná Zinabre, mas resolvi ecoar por aqui, para conectar ainda mais este espaço e o Maná, reunindo os possíveis leitores exclusivos. Quem quiser e puder conferir a melodia, só entrar no My Space da Abracabrália, mas acho que a letra em si já gera algumas discussões que me têm sido importantes ultimamente. Grande abraço a todos e muita arte, sempre!

COISA
Guto Leite & Daniel Coelho

Quem sabe um dia ela não vira alguma coisa?
Alguma coisa, coisa minha, ela não vira.
Uma coisinha, que ninguém sabe das coisas,
Que seja aquela, seja essa coisa minha.

Você não viu, se não amava aquela coisa,
Aquela coisa bem cuidada, aquelazinha,
E vinha toda bonitinha, toda coisa,
A pele justa protegida na blusinha.

Ai minha boca passeando pela coisa,
E pela coisa não passeia, se desliza,
Pra não pisar, não desmanchar, ferir a coisa,
E ter de novo, quando a coisa oficializa.

Eu sei que é sempre tão confusa toda a coisa,
É tão confusa, que essa coisa se complica.
Mas quem irá cobrar de alguém que viu a coisa
Que vá viver sem essa coisa todo dia?

É que nós dois já planejamos tanta coisa,
É tanta coisa planejada, que não vira.
Nossas viagens, nossos filhos, nossas coisas
Vão misturando numa coisa indefinida.

Até que enfim nós dividimos nossas coisas,
E toda coisa não é dela, nem é minha.
E falta força, falta água, falta coisa,
Que nós brigamos hoje por qualquer coisinha.

Os anos passam sobre a gente, sobre as coisas,
A gente acha que qualquer coisa é bem-vinda.
Então tratamos sentimentos como coisa
Guardando em nós alguma coisa, à revelia.

Sem perceber estamos velhos, quanta coisa,
Daí, corremos pra botar a coisa em dia.
Mas nos alcança a coisa que termina a vida,
E finalmente somos coisa, a coisa fria.

Apr 10, 2009

O Trombone I



Pensava já há algum tempo em começar a me aventurar por terrenos críticos de maneira sistemática e até tenho algumas resenhas iniciadas sobre livros, peças etc., mas só hoje, vendo o último filme de Woody Allen, "Vicky Cristina Barcelona" (2008), resolvi de fato partir para o trabalho e chamar os interessados para uma reflexão sobre um pequeno ponto dessa boa obra cinematográfica. O projeto se chama, provisoriamente (como se houvesse algo não provisório no mundo), O TROMBONE. Explico em ocasião mais oportuna sua configuração e seus interesses.

Como leio muita crítica ou tentativa de crítica por conta do mestrado, tendo a preferir começar minha reflexão por um único ponto que por si só elege Woody Allen como um bom escritor e diretor contemporâneo (o que nos dias de hoje é um imenso elogio!), além de dar indícios visíveis de seu estilo e de como a obra se organiza estruturalmente. Refiro-me à cena do jantar em que Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) são abordadas por Gonzalo (Javier Barden). Além do constantemente notado caráter inusitado da abordagem, o convite para um final de semana amoroso em Oviedo - que já traz algum mérito por ser bastante original em relação à cena já gasta de abordagens em restaurantes, presentes em milhares de filmes anteriores - a forma como o diretor/roteirista realiza o desenlace desta cena mostra claramente seu requinte e seu domínio da narrativa. Após a retirada de Gonzalo, que aguarda pela resposta fora de foco, as duas amigas discutem, já que Cristina quer aceitar o convite e Vicky (engaged) não. O expectador crítico já se pergunta como o autor resolverá este impasse sem perder tempo excessivo numa discussão das duas e sem perder a coerência essencial às personagens envolvidas. Pronto: a cena é cortada em meio à contenda e vemos, na cena seguinte, Cristina, que havia aceito previamente o convite, num pequeno avião, numa noite chuvosa, ao lado de Gonzalo. Os ingênuos certamente pensaram "ela foi sozinha e deixou Vicky em Barcelona", mas o mesmo expectador de linhas atrás, curioso, pensa "ela conseguiu levar a amiga para o passeio", e logo em seguida a tomada mostra Vicky, muda, com medo, na parte de trás do avião, sendo saculejada pela tempestade, metáfora materializada daquilo que iria ocorrer a ela a partir de então no filme.

Muitos autores conseguem verbalmente resolver problemas similares, mas poucos são capazes de delegar ao silêncio e a uma seqüência feliz de cortes a narrativa sutil de que precisava. Além de uma inteligência fora do comum, Woody Allen demonstra aprendizado com sua extensa filmografia prévia, onde, em algumas vezes, se agarrou aos diálogos para percorrer este mesmo trajeto. Não digo que o filme seja perfeito, até por haver certo momento enfadonho entre a colocação dos primeiros conflitos e o surgimento de Maria Elena (Penélope Cruz), que reanima la película, mas grito que eis aí um autor que merece a atenção do público contemporâneo que busca o cinema como arte (que inclui entretenimento) e não como um meio puramente de entretenimento. Em vez de perder uma hora e meia com algum filme trivial (ou com outras trivialidades), ganhe uma hora e meia com esta excelente obra do neurótico novaiorquino. Sensual, leve, divertida, sutil, profunda e atual! Eis o desafio!

Cornetem!

p.s.: en passant, como nota, o maior problema que Pessoa e Chico delegaram para os que sucedem são suas completudes! Quanto aos demais poetas e compositores, é possível passar por cima de suas obras sem meio-termos. Em relação aos dois, é preciso quebrar a cabeça para dar a volta, na maioria das vezes, sem sucesso... Pessoa e Chico, em suas respectivas artes, são inalienáveis!

Apr 9, 2009

Parábola



Volto aos versos, filho com medo! Por que renegá-los? Eles que tão cedo me esconderam em sua saia de verbo. Que há muito me ensinaram a distância segura para o resto. Volto apressado e envergonhado como o filho pródigo. Volto pros versos!

o índio

um índio imenso
de cocar sem pena
se move em silêncio

corre quem pensa
foge no tempo
que lhe atravessa

senão nos chocalhos
ao canto dos berços
onde é sua crença

exceto nas tábuas
que vendem o ócio
quando é sua arte

o índio que parte
que some nas eras
que vai para ontem

não deixa na terra
sequer sua morte
não tem piedade

daqueles que ficam
que serão índios
de outras cidades

Apr 6, 2009

Um conto impostor

Sigo na oficina de contos e cada vez mais tomo gosto pelo gênero (ainda labiríntico para mim). No entanto, ao menos, já me incomoda pouco expor-me aqui com alguma história que me tenha passado pela cabeça. Não que não seja mais um impostor, obviamente, mas ser de araque também pode trazer certo charme.
p.s.: posto também um chorinho dia 07 lá no Maná Zinabre. Aos que se animarem, é um espaço fabuloso e em muito me ultrapassa em qualidade e relevância.

Ecce homo

Não sei se por índole natural ou civilizada, os homens tendem a preferir verdades excludentes. É feito disto ou daquilo, é determinado ou casual, é preso ou livre o arbítrio, é abominável ou preferível, é culpado ou inocente. Visto nosso extenso percurso de enganos, está claro que esta não é a melhor forma de conhecermos bem qualquer coisa. Ao invés, proponho entendermos os corpos, físicos e abstratos, como uma relação dinâmica de forças opositoras, entrelaçadas a tal velocidade, diria Heisenberg, que apontar qualquer delas é perdê-las todas. Escolho e não escolho uma dessas relações para que entendamos melhor no que desperdiçamos agora o nosso tempo.

Os homens não mudam, dizem os provérbios, a História e a sabedoria popular. As crianças sim, ainda bichos, moldáveis, aptas, têm escolas, preceptores, e normalmente são educadas pela sociedade vigente a tornarem-se homens (sendo isso bom e ruim). Os homens mudam, eis a moeda corrente dos religiosos, psicanalistas e metafísicos em geral. Basta que um ser superior (Jeová, Tarô ou o Ego) intervenha com sua força descomunal para que drasticamente se altere a natureza do ser. Tomemos, então, todos nós como um único homem. Não o de Platão, porque distante, nem mesmo o de Marx. Um homem máximo, que nasceu com as comunidades mesopotâmicas e que vem se arrastando desde então, reunindo seus fragmentos, até finalmente se achar pleno e orgânico no começo deste século. Olhando no rosto desse Homem, olhando-o nas mãos, vemos sem dificuldades que ele muda. Não mais amaldiçoamos as adúlteras a descair a perna e a inchar o ventre. Também não consideramos todas as mulheres, de antemão, predispostas ao sexo. De mesmo ângulo e visada, vemo-nos ser exatamente o mesmo homem de outras eras, nos movimentos agrários contra Licinae Sextiae e nos segundos socos das brigas de bar, que revidam no direito o manchar das honras e dos olhos.

De que nos serve vermos simultaneamente os homens por dois lados? – objetarão os pragmáticos. Com o Homme au chapeau debaixo do braço, respondo que não nos serve mesmo para muita coisa, senão para estarmos um pouco mais distantes do erro certo. Forçarmos a mudança está previsto e será evitado. Adiarmos a mudança é impossível. Dentro do Homem somos minúsculos, células epiteliais, a princípio, que quanto mais relevantes, porventura, mais nos constituímos organismo adentro, aumentando-nos em importância e permanência. As duas únicas medidas cabíveis (e não excludentes) são: dedicarmos nossas vidas a salvar todos os homens e investirmos nosso tempo numa forma de matá-los. Nisso Jesus e Hitler são idênticos.

Para mim, que além de falar sozinho não possuo qualquer outra mania de grandeza, não se configura ainda de forma clara como devo empregar meu pensamento. Deitado a alguns metros e um par de paredes do quarto de meus pais, perco-me microscopicamente na metáfora do corpo. Se externos, de que nos vale o fôlego? Qual a verdadeira importância de outros como eu, pequenos e substituíveis? Se sabê-lo me torna profundo, eu não teria ascensão sobre aqueles que servem somente para me proteger do que vai fora? Meus pais, que dormem, o que diriam a respeito? Certamente sorririam ou negariam sem entendimento algum, como já fizeram em outras vezes. Nossas diferenças têm se tornado evidentes há alguns anos e não vejo como reatar certa ligação perdida que sinto já ter experimentado quando era bicho. Devo salvá-los, matá-los ou ambos? Tem alguma relevância qualquer um dos meus atos? Qualquer ato, em geral, possui algum sentido?

Durmo pensando que o melhor mesmo é que eu não me case. Se sucumbir, entretanto, que jamais tenha filhos. Caso por descuido venham os rebentos, fingir-me constantemente submisso até enfim conseguir tê-los todos fora de casa. Cada qual que cuide de sua natureza.

Apr 3, 2009

De volta aos versos

Embora este não seja um poema unânime (mesmo em foro íntimo), gosto dele por uma porção de razões mínimas que acabaram me levando a postá-lo. Sinceramente, não espero clemência, pior dos sentimentos possíveis que um leitor pode ser dotado. Espero, outrossim, um desgosto dominante com uma porção diferenciada de ressalvas. Será que acerta meu faro de leitor? Mais uma vez lamento pela impossibilidade de reproduzir a forma exata do poema, responsável por alguns de seus efeitos, e espero toda as opiniões com o mesmo olhar atento para o diálogo. Muita arte a todos, se ainda for tempo de arte!

meia-idade

que término antecipado
ou explosão incontida
que lábio petrificado no ventre de outro lábio
que grito
que tempo em falta ou excesso
sobre um amor delicado
ou olhos desviados
fugindo de olhos fixos
qual dos pares
vaidosos
revestido de sombras
de chamas
que medo
ou coragem súbita para tragar do momento
o seu incenso
que história foi ouvida
que romance testemunha
a mais genial perfídia contra o amor

o que deu ao amante
seu infeliz veredicto
ora expiado

o que faz com que ande
enfim
neste ser condicional

Mar 22, 2009

Postagem inédita

Originalmente, este é um blog de poesia... como as musas se arrediam, passou a ser de poemas e contos. Por compartilhar com o protagonista da obra-prima de Mário sua maior qualidade, virou poesia, conto e quadrinhos. Daí mudei-me para longe, demorando mais para ter novos quadrinhos, tornou-se poesia, conto, quadrinhos e roteiros. Ah, enfim, hoje deixo um trecho da minha única peça (com Gustavo Teixeira), que concorre ao Prêmio Nacional de Dramaturgia que sai agora dia 30. Rezemos!

HOMEM (acariciando a MULHER, à revelia):
Não. Eles não contam... presos, livres, alheios...

MULHER:
Tac.

HOMEM:
Sabem do tempo porque nós os visitamos, às vezes, jogamos bananas, fazemos nossos filhos imitá-los.

MULHER:
Nós temos filhos?

HOMEM:
Não. Mas se tivéssemos, faríamos isso.

MULHER:
Tac.

HOMEM:
Tic.

MULHER (cedendo ao carinho):
Você é muito duro comigo.

HOMEM:
Sou, para não perdemos nada.

MULHER:
Mas pra isso precisa acabar com tudo?

HOMEM:
Tudo o quê?

MULHER:
Tudo. Isso (apontando em volta)... tudo!

HOMEM:
Eu mantenho tudo isso.

MULHER (saindo dos carinhos, indo em direção à cama):
E não precisa de mim?

HOMEM:
Claro que preciso, mas você não é imperativa.

MULHER (começando a se exaltar):
O que quer dizer com isso?

HOMEM (se aproximando, cândido):
Você é algo que eu quero...

MULHER:
Tac.

HOMEM:
E os desejos provocam necessidades.

MULHER:
Mas...

HOMEM (chegando à MULHER):
Mas o tempo é imperativo, está além do desejo, e você não...

Mar 19, 2009

Defeito de fábrica

Saudações, caríssimos. Comecei na semana passado um curso de conto para corrigir um grande defeito da minha formação literária... Sinceramente, nunca me dei bem com narrativas, histórias, peripécias, climax e desfechos. Estranho! Há boas teorias que defendem com vêemencia uma certa pulsão natural à narrativa. Isso corrobora uma de minhas maiores suspeitas. Vim, sem sombra de dúvida, com um grande e escandaloso defeito de fábrica.

o burocrata

Depois de trabalhar mais de vinte anos no setor administrativo desta repartição pública, aprendi as muitas nuances do ofício. Naturalmente, hoje ocupo o melhor dos cargos do departamento: sou o responsável por acatar ou negar pedidos de licença e férias de todos os funcionários, milhares, que compõem nossas incontáveis alas e sucursais. Minha rotina é na verdade bastante simples. Na segunda pela manhã, recebo uma lista de solicitações pendentes. Acima, em vermelho, constam os nomes daqueles que imperativamente devem se licenciar na semana seguinte. Ao lado, após os nomes do prédio e do setor, figura o contingente mínimo de empregados necessários ao bom funcionamento da seção. Assim, de posse de dois carimbos comuns, DEFERIDO e INDEFERIDO, marco, até o final da semana, cada um dos nomes do rol, apelidado por mim de “a enorme lista do ócio”.
Obviamente se espera do meu trabalho mais do que preencher tabelas idênticas de uma tinta azul inevitavelmente borrada. Devo, em tese, vislumbrar, medir, prever, ponderar, analisar, argüir e julgar, caso a caso, quais daqueles empregados merecem usufruir antes de seu direito de descanso. Não me envergonho em dizer que assim o fiz, a princípio. Contudo, seria pouco honesto da minha parte dispensar a regalia de preencher ao acaso minhas obrigações, respeitando, é claro, os ameaçadores nomes rubros ao alto da lista. Às terças-feiras, quartas, no máximo, já realizo passeios salutares por cada um dos setores, prática, aliás, prevista pela natureza do meu trabalho.
Muitos acreditam no poder terapêutico e na potencialidade criativa do ócio. Eu, no entanto, e me considero o homem ideal para falar sobre isso, afirmo que o descanso foi feito para que os negócios que o sucedam sejam mais proveitosos. Complementam-se um ao outro e alienam o homem igualmente. Basta olhar para uma repartição pública em uma segunda de manhã ou para o tom renovado que amanhecem os domingos, dia seguinte ócio metafísico de Deus. Basta olhar para mim, neste renovador retorno das férias, degustando calmamente cada pequena engrenagem da máquina burocrática e valendo-me de novo da simpatia sinceramente interessada dos meus colegas.
Recebo a lista costumeira das mãos do Gerente Geral e entro em minha sala. Recosto-me na cadeira acolchoada de quatro requerimentos, abro a pasta e verifico que meu substituto trabalhou como um novato, minucioso e ingênuo. Mesmo assim e, por isso, centenas de nomes esperam ali meu presto julgamento. Conheço pessoalmente muitos deles, infiro pelos apelidos outros tantos. Fecho a pasta por um tempo, tentando me lembrar o máximo possível dos rostos de nossa repartição, um hábito lúdico que ganhei com os anos. Abro novamente a pasta, deslizo meus dedos sobre cada rotina e acho por bem começar logo o trabalho.
Prédio Um. Aarão, dos arquivos, seu irmão é escritor de cinco livros muito bem recebidos pela crítica especializada. INDEFERIDO. Abílio, gerente de atendimento, o vi saindo do carro esta manhã com cara de quem teve uma noite ótima. INDEFERIDO. Acácia, da recepção, educada, prestativa, cerimoniosa. INDEFERIDO. Adalto, grande sujeito esse Adalto, que setor? Vejamos. Setor de Aprimoramento e Capacitação, o SACA, mas como, se o esbarro freqüentemente nos corredores? Bem, quantas licenças para o prédio? Quarenta e duas. Alguém de férias ou licenciado? Não. DEFERIDO. Palmas para ele. Aline, magra, vegetariana, jeitinho superior, de quem está sempre um passo na sua frente. INDEFERIDO. Amanda. INDEFERIDO. Atanásio. Atanásio? Que pai batizou esta criança? Não me lembro dele... Funcionário desde 89 do Setor de Recursos Humanos. Daqui?
Ergo a cabeça por detrás da pasta e fito além do vidro aqueles que trabalham. Impressionantemente, salvo o Gerente Geral, desconheço o nome de todos que consigo avistar neste momento. Para piorar, a maioria tem minha idade e minha postura na degustação de suas boas trajetórias no funcionalismo público, o que os torna, nos torna, muito parecidos. O homem de terno ao canto da sala, lembro-me bem, embora tenha esquecido seu nome. Houve um bolão no setor uma vez sobre quantos meses até que ele tentasse o suicídio. Todos perdemos, muito triste. Há o obeso das gravatas exóticas. Nos dias quentes, sua muito, encharca-se, tendo que limpar os dedos na camisa para tocar nos documentos, salpicando-as gradativamente de um tímido amarelo. Também poderia ser aquele alto e esguio – como é mesmo seu nome? – que passou o abaixo-assinado há alguns anos para continuarmos a usar os escaninhos em vez de computadores.
Certamente é um desses párias, mas qual? Os tempos longe daqui me levaram o tino. Meus olhos agora se desprendem dos meus primeiros suspeitos e outros já cabem perfeitamente em Atanásio, levam o nome aos crachás. Quem me dera usássemos crachás! Quem me dera as pessoas fossem atreladas aos nomes como o trabalho ao ócio!
Que se foda o Atanásio! Indeferido.

Mar 15, 2009

Perdão pela demora

Salve, queridos! Há algum tempo postei neste espaço a letra de um samba feito nas últimas férias. A resposta foi muito boa e finalmente tenho como também veicular o áudio, que é, afinal, parte indissociável da canção... Espero sinceramente que não se decepcionem com a faceta melódica da letra que leram. Agradeço como sempre os comentários, impressões e tudo o mais que quiserem postar neste espaço, compartilhado. Abraços e arte a todos!

p.s.: para ouvir a canção, só clicar na palavra "áudio" ou no link da Abracabrália, no lado superior direito.

Perdão
Guto Leite & Daniel Coelho

Quando você me pediu perdão,
Tudo pareceu não ter mais vida,
Errei nos bares a ganhar identidades,
Fui poeta, louco, suicida, fui bufão.

Levo no meu pulso um suvenir,
Uma cicatriz do teu legado.
Uma lembrança que você comprou
Na escadaria do Bonfim
E disse: faz algum desejo!

É, o amor não é de brincadeira.
É, o amor não é para o senhor
Do Bonfim, me guarda, por favor,
De mim, me guarda!

Sei que amor é raro de existir,
Tudo que te peço é mais cuidado.
Pra não haver mais entre
Teus futuros namorados
Um que ande assim perdido igual a mim.

Mar 7, 2009

Duas espécies?


Ao ler uma excelente edição levada a cabo pela Azouge, "Maio 68", que reúne entrevistas e conversas entre expoentes mundiais dos movimentos contestativos de 68, encontro a seguinte assertiva de Timothy Leary, um dos precursores da contracultura: "Assim como há muitos tipos de primata: babuínos e chimpanzés e por aí vai. Em alguns milhares de anos a gente vai olhar pra trás e ver isto que - daquilo que a gente chama homem - talvez haja duas ou mais espécies se desenvolvendo. Sem dúvida que uma espécie, que poderia e provavelmente vai se desenvolver, é um formigueiro, funciona como uma colméia, com rainhas - ou reis (risos) - e tudo vai ser televisão, e claro, nesta sociedade a sexualidade vai se tornar muito promíscua e quase impessoal. Porque, num formigueiro, a coisa sempre se apresenta dessa forma. Mas você vai ter outra espécie que inevitavelmente vai sobreviver, e este vai ser o povo tribal, que não vai ter que se preocupar com fazer, porque, quando você cai fora, então a brincadeira de verdade começa". (p.163)

Salvo as sombras nada irelevantes de eugenia e calvinismo que pairam sobre esta colocação, até que ponto não se pode notar certa verdade na fala de Leary? Não obviamente distinção de raça, e não, provavelmente (?), distinção prévia, espiritual, mas uma distinção formada pela educação cada vez mais primorosa de um escol cada vez menor de pessoas. Não compactuo com o preconceito invertido contra as pessoas que nasceram com mais condições do que outros - e por isso são educadas de maneira mais cuidadosa (embora frequentemente se imbecilizem ao longo do processo) -, mas precisamos pensar com urgência na constatação que determinado graus de abstração já estão simplesmente inacessíveis à maioria dos homens. É real que se tem agravado a diferença?

Hoje fica a bandeira, não Bandeira, nem mesmo Guto, menor, perdoem-me. Braços e abraços a todos!

Mar 3, 2009

Muletas

Já postei antes estes dois poemas e - sem querer aqui me apoiar nas muletas necessárias a quem faz blog de poesia, os poemas elogiados - reapresento-os com as modificações recentes para um concurso de poemas que vou participar (Guemanisse, aos que se interessarem, só procurar no Google que é bem fácil de achar). Claro que são incontáveis as ressalvas contra a iniciativa, mas me pergunto se não é justamente de homens que sucumbiram a estas ressalvas a culpa por se erigirem hoje, os concursos de poema, em estruturas tão frágeis, de gosto duvidoso, percursos obscuros etc. Também já fui premiado, o que torna estranho abominá-los agora hipocritamente. Ademais, sempre me deparo em alguma colêtânea com um ou outro poema inspirado. Não é muito, mas até o menos matemático dos leitores concordaria comigo que melhor um bom poema do que nenhum! Versos de algibeira a todos!

quando as luzes se acendem

a noite traz a luz para fora das casas
ascende-as

os homens que à primeira luz
saíram
chegam apagados

as luzes que a noite acende
fora das casas
despedaçam-se

pálpebras se contraem
no espaço secreto que sonhem

quanto mais os cenhos apertados
desfiguram-se
da cilha natureza do trabalho

mais a noite segue retomando
o espaço à corrente

de súbito e no máximo contrato
os elos se rompem
os braços dos abraços

e assim que não se reconhecem
mais reconciliados

as luzes apagam de novo
a noite fora


os cortejos de outono

às primeiras sombras de outono
os pássaros são folhas confundidos
que se afastem os homens
que são grandes
do baile nos paralelepípedos

só as aves mais frágeis folificam
pelas asas inaptas para o altivo
que se afastem mulheres
seus vestidos
cuja borda lhes fere e abafa o trino

pelos dias que houver até o início
do invisível movimento dos pistilos
que se afastem os braços
dos meninos
da penugem eriçada do arre! pio

o sol corre imóvel ao seu estio
o corpo ao meio-fio a dor cipreste
que se afastem as folhas
pelos bicos
e aos silvos do inverno se aquietem

Mar 1, 2009

Outra das férias

Aproveito este começo de semana para postar outra canção das férias... Não das férias, propriamente, porque a parceriei antes e só gravamos em fevereiro. Também não canção, como normalmente se dá, mas feita experimentando uma dicção própria para a letra, a saber um bom e velho papo de bêbado. Provavelmente falhei na tentativa de traduzir o melancólico e o cômico da situação, mas, sobretudo, adorei fazer a letra e gravá-la. Abaixo transcrevo a letra e quem quiser ouvir o som pode clicar no link "Guto Leite" (acima, do lado direito). Outras canções, já com o trabalho da banda, no link "Abracabrália".

É o coração
Lucas Bohn & Guto Leite

Bom ver você por aqui,
É que faz tanto tempo!
Eu queria saber
Como vai se virando?
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos vivendo?
Como vamos vivendo...

Senta, to pronto pra ouvir
Como os anos vieram...
Que firmeza na voz!
Que olhar decidido!
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos vivendo?
Como vai resistindo...

Eu não sei
A razão para continuar,
Quem me deixa pedir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me deixa pedir nessa mesa de bar,
É o coração.

Eu não sei,
Até quando podemos ficar,
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.

Desce mais uma pra mim!
Conta mais, to te ouvindo...
Já casou? Vai casar?
Tem amantes? Tem filhos?
Como vai resistindo ao pó?
Como vamos seguindo?
Como vamos seguindo...

Calma, ainda é cedo pra ir...
Pra amanhã, falta tempo!
Mas depois nos falamos,
Só depois nos ouvimos.
Como vai resistindo ao pó?
Até mais, meu amigo.
Vai em paz, meu amigo...

Eu não sei
A razão para continuar,
Quem me deixa sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.
Quem me dera sorrir nessa mesa de bar,
É o coração.

Feb 26, 2009

Cuidado de taxidermista



Com a ressalva da forma diferente da original (o seguno verso aqui é na verdade ainda primeiro verso), posto este poema das "férias". Muita arte, em versos e dias, a todos!

o empalhador e a borboleta

são quatro semi-círculos coloridos em torno de uma pequena haste estreita e fria
ambos empalhados

ela
pela química
naturalmente silenciosa
vê-se na resina

ele
pela memória parti
da que foge
como se estivesse viva

Feb 25, 2009

A volta ao trabalho

Finalmente estou de volta a Porto Alegre, aos estudos diários e aos diálogos blogueiros! Pensei em postar de cara um dos poemas das "férias" ou novamente algumas das canções, mas cada coisa a seu tempo, eu acho. É possível que entre dois espaços haja necessariamente uma zona de intersecção que denominamos limite ou, se espraiada, limiar. Pode ser também que não haja tal intervalo e seja simplesmente nossa tendência simplificadora impondo um modelo cogniscivo confortável ao real. Pouco importa. Como tudo neste mundo, vale nos momentos em que nos é útil. Nesta postagem limite, ou limiar, deixo o link para um vídeo de um trecho festivo da última apresentação da Abra e um convite aos que puderem para compartilharem conosco a festa das próximas vezes. Abraço e arte!

LINK

Feb 8, 2009

Vazio

Vinte dias depois, aqui de novo. Após muitos ensaios e o show de estréia em Campinas, que foi extraordinário, consegui um tempinho pra postar novamente alguma coisa. Seguirá dúbio este texto, então, até o fim. Dúbio porque dormi sob elogios quanto à minha voz, à performance da banda, à presença de palco, às composições (e nesta casa realmente mora minha insegurança). Dúbio porque segue um vazio estranho de não ter âncora que me amarre o casco. É claro que seria bom ser realmente compositor, mas qual o valor disso nos tempos funerários da canção? Desenvolver uma pesquisa acadêmica relevante também é bonito, mas a academia, no frigir dos ovos, não seria, salvo preciosas exceções, âmbito do circunlóquio? Existe alguma razão de ser fora da arte que não sou? Deixo então a letra de um samba, que diz pouco, baixo, lento, como uma tarde de domingo.

Perdão

Quando você me pediu perdão,
Tudo pareceu não ter mais vida.
Errei nos bares a ganhar identidades,
fui poeta, louco, suicida,
fui bufão.

Levo no meu pulso um suvenir,
uma cicatriz do teu legado,
uma lembrança que você comprou
na escadaria do Bonfim e disse:
"faz algum desejo"!

É, o amor não é de brincadeira.
É, o amor não é para o senhor
do Bonfim. Me guarda, por favor,
de mim. Me guarda!

Sei que amor é raro de existir.
Tudo o que te peço é mais cuidado,
pra não haver mais entre
os teus futuros namorados
um que ande assim perdido
igual a mim.

Jan 20, 2009

Uma brincadeirinha vergonhosa

De vez em quando, como uma brincadeira, até então, própria, escrevo algumas coisas que se encaixam nos furos que o discurso deixa para nos desentendermos... Sim, nada mais, nada menos, do que uma espécie de onanismo lingüístico, destes que se põe o fim e ri-se sozinho (nada mais triste do que alguém à caça de divertimentos, não?). Embora esteja escorado em camaradas como Borges, Machado e Kafka, entre tantos e melhores outros, peço que me perdoem por compartilhar com vocês esta prática tão vergonhosa!

trick question

perguntado a respeito de qual é de fato o destino das gentes, o tolo respondeu, salvo as milhares de nuances, todas as almas do mundo se dividem em dois grupos bem delimitados, os imediatos e os profiláticos, os primeiros acreditam poder saciar sua incompletude atendendo prontamente a qualquer anseio que lhes dite o corpo ou o espírito, os últimos, diferentemente, acreditam que, negando estes mesmos anseios que lhes surgem à mente, ou à mente do corpo, favorecem a chance de um dia tornarem-se plenos, aqueles, após vidas sucessivas que consomem fazendo o mesmo, encontram, por fim, o inferno, estes, após, simétricos, consumirem também seu tempo entre nascimentos e óbitos, encontram o céu, assim se define o destino das gentes do antes ao depois, estupefatos com a revelação, absolutamente humanos, os inquisidores hesitaram, tolo, o senhor está certo do que dizes, é claro, respondeu, se não, tolo eu não seria, é isso, exatamente isso, ou seu contrário

Jan 18, 2009

Aniversário



Fiz aniversário nesta semana e, em homenagem avessa, posto um poema do último livro em tom de elegia! Agradeço aos leitores de sempre pelo carinho e pelo tempo que "investem" em minha poesia. Trabalho beneditinamente para acreditar mais que sou um escritor necessári... Muita arte, sobretudos e Cartolas!

Quando não há aniversário

em dias de tristeza
não se faz aniversário
as velas queimam cerejas

o tempo áspero trapo
arrasta no espaço buracos
miasmas lábios do avesso

destino enviesado
range demora e se chega
não há quem fomente o azo

batendo palmas
há o enfado do atraso
que não é seqüência nem pausa

não é calma nem pressa
um sopro do desabafo
que infesta se as velas vazam

Jan 15, 2009

Depois do pito


Como na segunda, levei um pito da Béa - por ter perdido o faro -, posto hoje, enfim, versos de que realmente gosto, apesar da usual estranheza que causam nos outros. Escolhas, escolhas. Versão são acima de tudo escolhas, sua metonímia e seu microcosmo. Recentemente tirado do barro, fica o meu carro de boi.

carro de boi

no princípio era o boi
puxando a carroça
viu o boi que era bom

depois
o homem do nada
para subir-lhe às costas
ainda bom

séculos se multiplicando
sobre a terra
o boi
o homem
sobre a carroça
cada um com sua costela
(tecnicamente bisteca para o boi)
povoaram todas as estradas

visto que a piedade nasce
assim que morre a esperança
quis um bom homem trocar com a montaria
e os outros bons o imitaram

hoje
quando os bois que restavam no arreio
subiram à carroça
só os melhores homens passaram
a arrastar o mundo

por que levá-los às costas
se ruminam
sem qualquer consciência do destino
se perguntam

Jan 14, 2009

A hipérbole do erro

Qualquer um que se preza deve tomar algum posicionamento diante dessa guerra, então o faço! Não o faço analisando os méritos, a história bíblica ou deste século das desavenças entre os dois povos. Nem mesmo aventarei quais as bases do conflito. Sou contra a morte de um homem por outro homem, quaisquer que sejam eles. As guerras são, na verdade, uma hipérbole do que eu não gosto! Fica meu poema-asco.

função

para cada macho uma fêmea
limpa e preparada
para cada fêmea seu macho
educado no esboço
para cada soldado uma bala
uma única bala
para matar a saudade
que todo corpo tem do nada

Jan 12, 2009

Feliz 2009!



Vinte dias de férias e volto, finalmente (para mim), a postar neste espaço! Escolho algo polêmico para o retorno - nem mesmo gosto destes versos -, mas como as coisas normalmente são e mais nada (viva Caeiro!), fica este poema mesmo, com os votos de ótimo ano a todos e, sobretudo, muita poesia, canção e apaixonamentos pela vida! Logo logo, mais novidades...

o réveillon dos cães

uma vez por ano os cães
a pagar pelos erros de seus pais
compadecem no pêlo as maldições
que embrutecem todos os mortais

o medo de não ser mais o que são
de ir além do faro dos demais
temem não mais guiar a atenção
ao que acorda seus olhos animais

queimam no ar as cores como tais
riscam o lembrar dos sonhos
de brilho escondem e emudecem os ais

debaixo da mesa o pavor consome
num apito longo de altos decibéis
os cães agonizam sua dor dos homens