May 30, 2007

Voto de confiança


Na semana passada, durante uma reunião, pediram-me "en passant" que escrevesse o roteiro de um novo curta, que fosse algo como uma mistura de "Peixe Grande" e Benigni, que fosse "bobinho, mas profundo", que atingisse muita gente, mas também fizesse a minoria pensante refletir a respeito. No caminho de casa, com amigos, enquanto falávamos sobre futuros projetos, musicais, longas, livros e afins, vim remoendo intensamente o antigo mito grego das Moiras, que foi minha primeira idéia quando da proposição. Ontem finalmente consegui terminar as quinze páginas de roteiro, ao menos a primeira versão (que ainda receberá adendos da diretora, e inefável e felizmente, dos atores no momento das filmagens), e talvez tenha conseguido o que me requisitaram. Sucintamente, a história mostra três "crianças" (10/11 anos ainda são crianças?) como o começo de uma relação que desembocará no casamento de duas delas. Mostra também o cetiscismo ignorante de uma delas, em oposição à consciência do engenho destino por parte do público. Mostra também uma pouco desta aleatoriedade mágica que compõe o amor e as histórias das pessoas. Tenta mostrar um pouca da beleza do triste e do apaixonante, do rotineiro e do inesperado. Tenta tirar uma foto disto tudo com a qual as pessoas se identifiquem, completa ou metonimicamente, e possam sair do cinema com um pouco mais de sopro de vida. Tenta, talvez, pretender arte... Assim que acabei de escrever, contrariado, reconheci que pode ser que eu estivesse dando, de alguma maneira, um último voto de confiança ao amor... Espero muito que gostem deste voto.

May 25, 2007

Assopra

Antes de tudo, agradecer a todos os comentários... pelo jeito, como disse a Paula, fui incisivamente ao ponto das mulheres incríveis. Ainda bem que recebi a crítica das incríveis, imagina se algumas das mulheres incrivelmente burras resolvessem deixar a marca de sua indignação! Em suma, imensamente grato pelos comentários. Lembrou-me o tempo de escola primária, quando, com alguns dos mais fervorosos amigos, espalhamos cartazes pela escola, protestando sobre algo que, de nossa infância, considerávamos extremamente injusto. Talvez me acompanhe, graças a Deus, essa marca de polêmica pelo resto da vida. Em contrapartida à exaltação dos ânimos (Sizígia), trago um poema quase enganoso de tão calmo.

O hato

enquanto todos nós dormíamos
na inocência do instante próximo
impossível de existência
um hato verdadeiramente pleno
de sentidos veio ferir-nos
com suas eiras serrilhadas
nós permanecemos incisivos
na dormência do que antes
forjou em nossos dias
a importância do relevo

trapos vira-latas moveram-se
incomodados um pássaro
se enfiou no vôo ao desespero
alguns insetos se amontoam
as árvores balançaram de um lado
a outro as folhas levemente
como se à beira de além
e nós prosseguíamos dormindo
e nós imersos prosseguimos
como se nada tivéssemos
acontecido

May 23, 2007

As mulheres e as incrivelmente

Quem me conhece, sabe. Muitas vezes falo coisas só pra provocar nas pessoas aquele estado irritadiço, que é sempre melhor do que nada. Sei que muitos não concordam, mas, quando morrerem, me darão razão. Enfim... Há um ou dois dias, provoquei uma grande amiga com a frase: abro mão das mulheres incríveis pelas mulheres incrivelmente burras. Calma, calma, sei que talvez seja a frase mais machista proferida nos últimos cinqüenta anos, e é mesmo, mas até pelo ridículo me disponho a argumentar. As mulheres incríveis raramente se saciam e, por mais que façam as melhores declarações de amor possíveis da criatividade humana, sempre exigem mais do pretendente, que portará em diante um resquício de frustração por não agradar à mulher amada. As mulheres incrivelmente burras aceitam safanões, despistes, falas ríspidas e desmancham-se apaixonadas por um aceno, um bombom, ou qualquer outra declaração mínima de interesse. As mulheres incríveis são extremamente esquivas e só se tem certeza de as ter conquistado instantes depois de tê-las perdido, se é que é possível conquistar uma mulher incrível. As incrivelmente burras ainda residem no território moral de que as pessoas se possuem mutuamente e aceitam, portanto, serem possuídas, desde que possa, em contrapartida, possuir o objeto amado. Justo. As mulheres incríveis raramente riem das piadas idiotas, o que exige do pretendente um refinamento constante na arte do humor, se quiser se mostrar constantemente interessante. As outras dificilmente entendem qualquer piada, riem normalmente pelo ato social do riso, facultando ao pretendente o direito de provocar o riso simplesmente... rindo. As mulheres incríveis vivem no campo do etéreo, no entreato, no Princípio da Incerteza (se é possível definir sua velocidade, não é possível definir exatamente sua posição no espaço). Nunca se sabe exatamente onde se pode encontrar uma mulher incrível, pois ela domina inconscientemente grande parte da desenvoltura do espaço sobre ele mesmo para se ocultar de olhos afoitos e exagerados. Ao contrário, não há um lugar pelo qual não desfile vagarosamente uma mulher incrivelmente burra. Nos teatros, cinemas, lançamentos de livro, bares, repúblicas de estudante. São como carros em São Paulo, por exemplo, inalienáveis ao panorama. Fora serem barulhentos, expelirem fumaça etc. Por fim, as mulheres incríveis impacientam permanentemente os artistas, gerando um tal estado de inquietude que os deixa sempre em estado de transição. São capazes de gerar inspirações instantâneas e duradouras, semanas inteiras sem pregar os olhos. São dotadas de proporcionar o vislumbre da infelicidade permanente, caso os amantes se descubram isentos de suas presenças incríveis. Já as mulheres incrivelmente burras acalmam-nos (colocando-me entre os artistas) com a impossibilidade suprema de causar-nos qualquer estremecimento na alma. Passamos por elas com a mesma facilidade ou a dificuldade que passamos pelos dias. Eu diria também, da mesma maneira inevitável.

Não existem homens incríveis.

May 22, 2007

Nós que aqui estamos...

Voto pelos filmes sem legenda, principalmente se nacionais. Convido a todos que puderem a assistir ao filme "Nós que aqui estamos por vós esperamos" (1998) de Marcelo Masagão. Trata-se realmente da união de um acervo impressionante de imagens a respeito de nossas reiterações equivocadas e do fim inefável que nos unirá em covas distintas mais tarde ou mais cedo. No entanto, a idéia de inserir as legendas com comentários e explicações aproxima demais a excelente idéia do vídeo "Protetor Solar", que recentemente foi de conhecimento obrigatório de todos, e que é, no mínimo, vergonhoso de tão patético. Algumas legendas ainda, infelizmente, causavam-me o riso do ridículo, enquanto o assunto a que referia era excessivamente denso e pesaroso. Preciso ver mais vezes para verificar a improvável intencionalidade do recurso. Para me livrar do "Carpe Diem" sinistro que me gerou o documentário, deixo um poema antigo, com cheiro de talco. A ignorância inocente que tantas vezes eximiu-me da reflexão.

O seu beijo é isso

Seu beijo carrega, como uma bela noite apresenta,
O gosto e o posto de um orvalhar sincero.
Pousa sobre a minha pele sem licenças,
E prospera lentamente a noite toda.

Caso eu recrimine, por medo de atacar-me a vil doença
Das camas, e retire-me do sereno.
Seus lábios educadamente me acompanham,
Às vezes, carregam-me para dentro.

Se a noite ferve, sem conter as hordas, arrebatam
À força, minhas queimaduras,
Faz troça infantil quando me dispo.

Mas se os invernos é que ao tempo fitam
Sua mais rigorosa ditadura,
Cala-me em labareda. O seu beijo é isso.

May 17, 2007

Lições

Tenho aprendido lições. Algumas delas, eu já sabia mesmo antes de aprendê-las. Outras, eu tomo como aprendidas, mas não as pratico. Aquelas, porque antes se desenvolve o raciocínio pragmático do que o amoroso. Estas, por preferir sempre a mentira quixotesca a uma boa realidade machadiana. No estado pênsil de existência, em que as pessoas dificilmente mudam e raramente aprendem, adaptando somente o que é passível de ser aprendido ao arquétipo de si mesmas que já possuem, prossigo com a satisfação de prosseguir estritamente por aquele instante, porque no seguinte certa e novamente não aprenderei nada.

May 15, 2007

Enfim sós

Consegui, por fim, terminar minhas leituras de Ulisses. Realmente uma obra incrível, que recomendo aos interessados por uma literatura um pouco mais custosa. Ressalto, porém, que talvez haja certo exagero do autor irlandês em seus experimentalismos. Partes como a do bordel e o monólogo final, empetrado pela mulher de Bloom, realmente "valem a entrada", mas em muitas horas o vai e vem dos olhos em busca do fio narrativo é mais desgastante do que prazeroso. Agora inverto os esforços: em vez de Joyce, um bom livro infanto-juvenil de Twain; largo Piva, para aventurar-me na poesia de um brilhante amigo e poeta, Paulo Vieira, ainda inédito. Já que um outro amigo me disse, ao ler o poema que segue, "gosto dos teus lirismos drummondianos", espero contar também com os demais julgamentos dos frequentadores do blog. Dias de imensa construção a todos.
p.s.: os sintomas progridem...

Se eu fosse

se eu fosse mais bonito
um pouco que fosse
poderia acredito propor-
-te a mentira do amor eterno
longe dos grandes centros
concretos e sentimentos
nos instantes que duram meses
na melodia óbvia
das palavras oxítonas

poderia trazer-te nos braços
às avenidas e correr dentro
dos bosques estreitos
que dividem uma mão da outra
também a caixa descoberta
poderíamos parar diante
do último imigrante da metrópole
que traz um realejo
do lado de fora do pássaro

se eu fosse mais bonito
seria o pássaro enamorado
dos cartões da sorte
se não eu que num café
bêbados na fumaça quente
te diria vamos agora
ter um filho ou tentar
ou perdê-lo tu
sorririas envergonhada
e pagaríamos a conta com moedas

se eu fosse mais bonito digamos
um passo mais bonito
para perto de Pátroclo
não precisaria mais medir-me
contigo em amenidades
seria sucinto existe o amor
e a morte o que fazemos
talvez fosse mais soft
por carinho ou por medo
mas nunca me renderia
ao silêncio

aliás confidências
contaria que entre nos-
sas reticências qualquer
palavra é redundante
falamos mais pelos outros
que não compartilham conosco
um amor tão verborrágico
nossas discussões se resumiriam
a amor sim faça como quiser
você também e ponto

mas como não sou esse
tanto mais bonito
nem há chances de sê-lo
permito que continues
sofrendo de tempos em tempos
ciclicamente sofrendo
e desiludida e fútil e má
permito que permaneças
neste estado íntimo
de agonia e de baixeza moral

deixo que troques as cores
que matinalmente mintas
a ti mesma e acostumes
o ser que te abriga
com a mentira que é
o que abriga o amor
por sua vez

posso até ser egoísta
mas por não ser
bonito o bastante que me exima
do fracasso dos feios
condeno-te à infelicidade
mais dolorosa que existe
a falsa alegria do amor finito

prometo-te que velha
recobrarás o lampejo
dos meus olhos inconfundivel-
mente apaixonados
e será o único brilho
de tua mobília de anos
ao menos o único
em que confias cegamente

e todos os teus intentos
de juventude serão
tão inalcançáveis quanto ontem
coarás a filtro o rancor dos que
não sendo eu trataram-
-te pior do que deveriam
mais descuidadamente
e não terás mais escolhas
senão ser escolha da morte

eu por este lado
que é outro por não
ser mais bonito ou mais novo
mais impulsivo ou mais fraco
sigo levando o beijo
ilimitado que traz
todo amante verdadeiro
o receio que ao piscar
ou abaixar virar o rosto
por saber da promiscuidade
do acaso ou seu destempero
não mais estejas junto

levo o amor de recolher-me
à distância segura
levo a compaixão daqueles
que me percebem levo
conjecturas de um dia
quem sabe me leve
um acidente ou um acidente
te leve a ficar um pouco
mais feia e nós
equiparados

eu levo por não estar certo
de que há coisas para serem
levadas por qualquer que seja
ao lugar que for
o momento imensamente
descabido que freqüenta
o átimo anterior a todos
os eu te amo

ando sempre na hipótese

May 12, 2007

Tudo sobre minha mãe


Acabo de ver Almodóvar em um de seus filmes mais marcantes e certificar-me de que a força de um bom argumento realmente é do que mais influencia na qualidade de um filme. Claro que os recortes realizados pelo diretor (no caso, para quem viu o filme, um "en passant" no diálogo do hospital ou a passagem de tempo dos trens são exemplos), representando sutilezas, forças ou ambos, são importantíssimos, mas nada como um argumento central de peso, recheado de pequenos truques e camadas de sentidos apreensíveis pelo cuidado e pela reiterância. Também um exemplo? Numa das cenas iniciais do filme, Esteban, o filho de Manoela, chama a mãe pois já iniciara o filme "All about Eve" e ele comenta sobre como são ruins quando não traduzem um título ao pé-da-letra. Na cena mostrada do filme dentro do filme, uma atriz afirma que os fãs são estúpidos, grosseiros, não formam público nenhum. Pouco depois na película, Estéban morre em busca de um autógrafo de uma atriz que admira, na rua dos fundos de um teatro. Sutil? O verdadeiro artista, ao não subestimar seu público, constrói a obra de arte sobre nuances fabulosas do sentido. Palmas para Almodóvar!

May 11, 2007

A quarta capa


Por falta de tempo, ou excesso de mim no tempo que falta, reduzo-me a postar somente um poema, curto, tímido, quase não visto no último baile dos versos. Será a quarta capa do livro lançado em julho. Muita fortuna a todos, não a deusa!

A rigor

A fortuna é a cartola do diabo
Que deus, quando vai à festa,
Gosta de tomar
Emprestado.

p.s.: na imagem, foto de primeira capa da Folha de ontem flagrando o romance inocentemente descabido de dois habituais frequentadores do Parque do Ibirapuera.

May 9, 2007

Despretensioso

Nestes aspectos de trabalho lírico, peso do avesso, com um poema para lá de despretensioso, quase dedicado a uma amiga só, um poema-acalanto. Lembro também que muitos outros amigos fazem grandes sacrifícios em suas vidas de poeta-operário. Lembro, por alto, Isaac, Vinícius, Tággidi, Paulo Vieira, Luís Henrique e André Barbosa. Se tivesse chapéu, ergueria um. Se tivesse talento, versos melhores. Mas se reverencia, quando se deve, com o que pode.

Ao coração dos queridos

muitos dos meus queridos têm andado
com graves problemas do coração

os outros
sentem até por capricho
o desagrado

mas não os meus queridos
eles
sentem na pele de dentro

tenho por vontade quando fracos
guardá-los conchas entre as mãos

massageá-los
revivê-los num beijo
com cuidado

táctil e visceral por eles

aceito todos os meus próximos segundos
até a morte
restrito a ter as duas mãos em guarda

May 8, 2007

A um poeta

"Trabalha e teima, e lima, e sofre e sua", está aí um verso que sempre admirei no "A um poeta" de Olavo Bilac. Não só por seu equilíbrio formal típica e perfeitamente parnasiano, mas também por refletir grandemente o trabalho do poeta em dedicar-se, exaurir-se completamente na linguagem. Também tenho lido uma coletânea de Roberto Piva em que um de seus amigos, com quem já fiz oficina, Cláudio Willer, relata as andaças de Piva pela cidade, a cantar versos, a indicar leituras, a beber, a cair. Disso fico a refletir que talvez o trabalho da poesia e da arte não seja para os tempos atuais. Talvez ele exija uma dedicação que não seja possível. Nos dias em que realmente consigo me dedicar ao ofício, não faço absolutamente mais nada (o que inclui as coisas que gosto) e fico com o gosto resistente de algo faltante. Da postagem de hoje só fica o cansaço que sempre me assolas às segundas e terças. Algumas dores também.

May 3, 2007

Daqueles condensados

Snapshot

um jovem comediante
sul-coreano
entrou na universidade da Virgínia
com seus brinquedos
e matou-se

não antes
de assassinar trinta
e duas pessoas
uma delas
revelação promissora
do time universitário de vôlei
americano

não?

p.s.: pra minha amiga que prefere que eu escreva de mim mesmo a que eu poste poemas...

May 2, 2007

Fôlego

Tenho me arriscado continuamente em poemas que condensam grande matéria discursiva em um, dois versos, no máximo uma estrofe e o título. O processo é completamente estranho, no sentido de estranhamento (ostranenie). Há um certo estímulo que me destitui inteiramente da capacidade verbal cotidiana e deixa-me apartado dela por um tempo. Depois, no momento da escrita, este mesmo estímulo, o da linguagem, arremessa-me de volta com toda a força que pode e talvez fique de longe para ver o estrago. Normalmente me sinto exausto após alguns destes poemas, como se ele já estivesse sendo remoído há tempos em minhas subjetividade. Como uma espécie de volta à superfície, de quando em quando, meus versos se organizam em outra forma de estrondo. Trago uma delas hoje para a opinião. Estas formas valem pra mim como fôlego, a possibilidade do são e do agradável, mesmo que triste. Saudações líricas a todos e muita muita poesia nestes dias de prosa!

Da capo

Não temas a morte, te digo,
Que já estás morto.
Desde antes és morto
E só vagamente te lembram vivo,
Se te declaras. Assim

Também não te ressintas, grave,
De estares só.
De forma análoga, vives sozinho
Desde mínimo habitante
Do ventre obscuro.

E no fundo, triste, quando me olhas,
Tal se a tristeza não existisse
Acompanhada,
Reclamo visivelmente de tua demora
Em aprender.

E agora, criança, que já reconheces
Em ti o outro e a tudo
Ignoras,
Aproxima-te de mim
E vem conhecer a tristeza.