o cardeal
Ser órfão não é bolinho! Imaginem cada festa feita para ter família. Nessas horas, mesmo o mais forte dos órfãos não agüenta o tranco. Antes que fiquem com pena de mim, não sou órfão, fui... Até uns doze anos, meu pai era na prática um relógio enorme folheado a ouro e sem bateria que eu levava no pulso e que ele deixou ou esqueceu o presente no berço da maternidade. Pensando no futuro, nas vezes que eu precisaria de uma família sem ter, comecei, desde menino, a criar a raiva comum das crianças que têm perguntas sem saber quais. Não saber a pergunta certa, meus amigos, é muito pior do que não saber a resposta certa. Peço desculpas, que não sou das palavras bonitas, mesmo assim me acho no direito de contar minha história, pelo simples fato de ser diferente da sua. Ao invés de esperar as perguntas, então, vou me adiantando em dar as respostas certas. Quem sabe com elas, depois, vocês não acertam as perguntas e evitamos todo o lero-lero.
Pelo pouco tempo, escolho só um ano para contar minha vida rebelde na escola. No fim do verão, em 84, eu voltava do orfanato de férias não muito calmas. O cinto apertava por lá e a irmã Winston estava cada mais durona. Pressionar órfãos é mexer num vespeiro! O lar de caridade parecia um campo de guerra entre nós, os diabinhos, e elas, as noivas de Deus. O começo das aulas foi como exilar Lúcifer e ganhar um cessar-fogo de cinco dias por semana. Lá fui eu então tirar a paz dos colegas, dar mais trabalho aos funcionários e agravar a boca saltitante da senhora Margarida. O roteiro era o mesmo sempre: eu armava alguma, com a ajuda ou não dos meus comparsas, aguardava a hora certa, fazia o que tinha que fazer e a sala explodia em gritos e risos excitados. No final de cada malvadeza, desistia Dona Margarida sofria:“Gente, acho que por hoje tá bom, vocês podem ir brincar um pouco”.
No terceiro ou quarto dia de aula daquele ano, no meio da manhã, entrou na sala um novato chamado Jorge. Não sei se foi o seu jeitinho de menina, de fazer tudo miúdo, ou seu topete armado sobre um rosto de barão, que levou Murilinho a achar-lhe um apelido, “parece um cardeal-do-sul do sítio da vó”. O tempo resume as coisas, e em duas semanas ele já era o Cardeal. Não por raiva das freiras do orfanato, fãs de um tal falecido Cardeal Motta, nem qualquer coisa contra os ricos, mas aquele menino aos poucos foi me tirando do sério até que eu quase não podia olhar pra ele. Ele dava a vez pras meninas entrarem primeiro na sala. Ele respondia de bate pronto às perguntas da Dona Margarida. Ele passava o recreio com um livro na mão (sem ilustrações de capa!). Ele não ria das minhas brincadeiras, muito menos ajudava. No fundo, aquele engomadinho era exatamente o meu oposto, e precisava pagar por isso.
Porque a raiva era grande, tramei com calma o que fazer com ele. Percebi primeiro que sua grande bolsa de couro parecia impermeável. Depois vi que sua saída pro intervalo era como o café da manhã das freiras, igual: tocava a sirene, ele fechava o caderno, colocava tudo dentro do estojo, metia a mão na bolsa pra pegar seu livro, seu sanduíche, e ganhava o pátio. Aposto que todos vocês já imaginam o que me passou pela cabeça, prova que não somos assim tão diferentes. O problema foi que exagerei um pouco e, além da água, joguei lá dentro algumas giletes usadas que o zelador guardava sei lá pra quê. Não deu outra. Numa manhã de inverno, uns dez graus, aproveitando a saída do Cardeal e com a ajuda dos meninos para distrair Dona Margarida, executei o plano. Diferente do que eu tinha planejado, antes do intervalo o menino abriu a fivela e, vendo o estrago, deu seguidos e abafados gritos de raiva com choro, tudo misturado. Afoito para salvar seu livro, seu sanduíche, enfiou sem pensar a mão na água trincando e um berro agudo e cortante aboliu os verbos defectivos de Dona Margarida.
O que aconteceu depois foi bastante confuso. Lembro somente de ser umas onze da manhã e eu caminhar pro orfanato, suspenso, quando uma caranga de grife encostou na calçada. Era a Dona Cardeal, que me oferecia carona. Ela, como o filho, parecia gostar dessas coisas de perdão, bons modos e piedade que eu já sabia não funcionar muito no mundo real. Dentro do carro, respondi sobre o que aconteceu, falei da minha história, pedi desculpas, acuado, e ela acabou me chamando pra tomar café em sua casa no fim de semana. A três quadras do meu destino, quando o silêncio tinha comido todos os assuntos, ela olhou pro meu relógio e disse, sem importância: “Antigo este teu relógio, muito bonito. Desde quando você tem?”. “Desde sempre”, respondi, baixo. Achando que eu tivesse roubado, ela comentou: “É bem raro, deve custar uns bons milhares de cruzeiros. Meu marido tinha um desses, mas perdeu, há muitos anos”. Meus olhos passaram atordoados pelos traços da mulher e encontraram os olhos do Cardeal cravados em mim. Os mesmos olhos, o mesmo cenho, a mesma pele, a mesma raiva.
Aproveitando o semáforo, saltei do carro e corri, ainda ouvindo no fundo a voz esganiçada da mulher. Minhas pernas não órfãs, pernas que não perguntam, voaram como nunca para o orfanato. Dormi naquele noite com um embolo no peito. Como já disse, não sou muito bom com as palavras.
Apr 16, 2009
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