Dec 24, 2007

Presente de Natal

Ao leitor

“Au lecteur”, Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire
Tradução despretensiosa: Guto Leite


A estupidez, o erro, o pecado, a avareza,
Ocupam nossos espíritos e moldam nossos corpos,
E nossos remorsos amáveis nos alimentam,
Como os mendigos nutrem seus parasitas.

Nossos pecados são naturais, nossos arrependimentos são frouxos,
Nós nos fazemos pagar com generosidade nossas confissões,
E entramos animados novamente no caminho lamacento,
Crendo que o choro vil lava todas as nossas manchas.

Sobre o travesseiro do mal está Satã Trismegisto,
Que embala longamente nosso espírito encantado,
E o metal nobre da nossa vontade
É todo evaporado por este sábio químico.

É o Diabo que porta os fios que nos movimentam!
Nos objetos repugnantes, encontramos atrativos;
A cada dia, descemos um passo em direção ao Inferno,
Sem horror, em meio às trevas que fedem.

Assim como o pobre devasso que beija e come
O seio martirizado e uma antiga prostituta,
Nós roubamos, de passagem, um prazer clandestino,
Que esprememos bem forte como uma velha laranja.

Estreitados, formigantes, como um milhão de helmintos,
Em nossos cérebros festejam um povo de Demônios,
E, quando respiramos, a Morte em nossos pulmões
Desce, rio invisível, com lamentos surdos.

Se o estupro, o veneno, o punhal, o incêndio,
Ainda não bordaram seus desenhos agradáveis,
A tela banal de nossos destinos medíocres,
É que nossa alma, pena!, não é ousada o bastante.

Mas entre os chacais, as panteras, os cães de caça,
Os macacos, os escorpiões, os abutres, as serpentes,
Os monstros esganiçando, gritando, grunhindo, rastejando,
Na infâmia doméstica de nossos vícios,

Ele é mais feio, mais cruel, mais imundo!
Embora não solte grandes gestos ou gritos,
Ele faria, de boa vontade, da Terra um fragmento
E em um bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! – o olhar cheio de um choro involuntário,
Ele sonha cadafalsos fumando seu cachimbo.
Você o conhece, leitor, este monstro delicado,
– Leitor hipócrita, – meu semelhante, – meu irmão!

Dec 22, 2007

Poema em prosa, prosa em poesia

Da conversa de dois amigos, extraio um dos grandes conflitos que assola o elemento humano. Ela dizia que se lembra de cada ação que lhe tenha rendido risos ou aborrecimento. Ele dizia que costuma esquecer tudo, que assim é mais fácil. Salvo a distinção sexista, que, acho, não acredito, qual das duas posturas diante dos fatos passados é mais adequada? Ou, para que diacho serve a memória? Vem-me às idéias certa crença epistemológica aprendida na escola de que a História serve para não repetirmos os erros do passado. A memória, parte individual e íntima dos fatos, nos serviria, provavelmente, de maneira análoga, para não nos enfiarmos de novo em antigas enrascadas. Mas, se a humanidade já se mostrou inapta na arte de não repetir os erros documentados (vide os americanos que sempre cederam armas e a retribuição destes grupos às dádivas concedidas), o que nos autoriza a ser capaz de esquivarmos dos erros previamente cometidos nos antes de nossas vidas? Parece-me que temos algum controle sobre o periférico e o temporário, mas o aquilo que é de cerne vem de forma imperativa. Não há memória que ensine a respeito das erráticas e inevitáveis proezas coincidentes no destino.

A máquina maravilhosa

os cenhos olhando-se lentes desolados
os toques de resquício
os abraços da pele por contigüidade arenosa
tudo se dividindo em plátano penhasco ou
vontades submersas nas asas dos copos líquidos

círculos de níquel metonímicos no pano gasto
orfanatos paróquias entidades casas de espírito
franjas repartidas com o frontispício das quinas
segmentando os corpos
as mesas de café rodas metálicas dos vícios

um peitoril esguio um maço de Malboro Light
um semáforo agudo solo de violino
um sebo uma feira um laço uma galeria de arte
um riso

o vão caudaloso do contorno a linha o lírico da Zona Leste
onde um beijo duvido indefinido é nada é vago
o dia feito maquinaria sátira de carinhos
magros

p.s.: criando...

Dec 19, 2007

Um ponto qualquer do globo e sua volta

É estranho terminar um dia tendo feito tudo a que eu havia me proposto antes dele ("with benefits"). Estudei inglês, francês, canto, pandeiro, violão e compus música, roteiro, poema... O estranho é a sensação enganosa de controle que ganhamos. A perda da certeza constante de iminência da morte e do fracasso. A qualquer instante, contudo, que buscamos fôlego, lá estão eles, à espreita, calmos como o tempo dormente depois do relógio, e antes dele. Só se ariscam vermelhos quando pensamos que o valor do risco é dependente dos tropeços rápidos de Cronos, mas não pensamos nisso. As agendas são feitas para a automação do espírito. Nela cabemos isentos de pensamento, perfeitamente. Hoje foi um dia fácil porque me espremi dentro de dezenove de dezembro.

p.s.: quando crio muito, enfim...

Dec 18, 2007

O próximo trabalho

Passei toda a tarde de hoje, graças a uma noite péssima que me custou a manhã, entretido no meu próximo trabalho, digamos, sério. Estou finalizando um terceiro roteiro para, mais uma vez, trabalhar com meu amigo, diretor, Ivan Rodrigues. Basicamente, trata de um disparate histórico, que, agora que está registrado, posso comentar com mais liberdade. Eis o mote: por alguma causa não explicada no filme (mas que devemos explorar em produções seguintes), descobre-se que Malthus estava certo em suas teorias. Os países mais pobres, então, decidiram por adotar uma medida chamada "estado senil". Esta medida consiste em "orientar" as pessoas com mais de sessenta anos a realizarem testes de senilidade, com a pena de "supressão" para aqueles que, por acaso, sejam reprovados. Aos que atingirem a idade de 85 anos, a supressão estatal é imperativa, a não ser que o próprio presidente intervenha com o benefício da salvaguarda ao cidadão, por alguma espécie de mérito (artístico, social, político). O que inicialmente se apresentara como uma maluquice da minha cabeça, ao desenvolver a primeira versão do roteiro, se configurou bastante complexo e com várias conseqüências previamente não previstas, mas que já foram incorporadas ao segundo e terceiro tratamento (também com as idéias do Ivans e de outras pessoas). Será que todas as idéias já estavam previstas no mote original, eram proporcionadas por sua enganosa simplicidade ou foram construídas a posteriori por nós para deixar a idéia mais interessante? Por favor, quem se animar a comentar o mote, dando idéias, críticas, sugestões, é muito bem-vindo. Heia-oh! que o único simples é o complexo!

p.s.: agradeço também às muitas visitas ao myspace da minha banda. Se me virem por aí, avisando-me, me curvo.

Dec 11, 2007

O Isso

Ando de certa forma em desespero. Tenho estudado bastante os movimentos e principais forças do modernismo para poder, enfim, escrever meu projeto de dissertação de mestrado. A causa do desespero consiste em imaginar para onde caminha nossa literatura e como se desenvolve a produção dos autores que se disponham a fazer arte hoje em dia. Só para ser sucinto, quando, há uns trezentos anos, atravessamos a ponte entre o mimético e o subjetivo, já deixamos descuidados parte de nossa sanidade. Ao prosseguirmos o cansaço, entre o subjetivo e o sensorial (ou simbólico), poucos restaram que pudessem viver sem roer os dentes. Por fim, acredito, resta abandonarmos este último para ir atrás do "isso", do indizível, do objeto além do passível de crítica, justo por ser tênue, por correr ao largo da linguagem. É possível? Esta é minha sensação e, talvez, para onde caminhem meus versos. Esse é o meu "isso". Os loucos dentro da minha cabeça jogam "queimada" com suas camisas de força quando me pergunto: e depois?

Trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças

p.s.: quem puder, dê uma conferida no espaço da banda em que canto, no myspace. O link tá aqui do lado direito. Parte das letras de música que posto aqui podem ser ouvidas e baixadas por lá. Imenso e dedicado abraço a todos!

Dec 9, 2007

Pau a pau

Gostaria de postar hoje parte do mote do próximo filme em que estou trabalhando com meu parceiro de cinema, Ivan Rodrigues, mas como sempre, deixo a cabeça ao canto que se apresente, esqueci a última versão do roteiro no computador de casa. Opto, então, por um poema de gosto duvidoso, como forma de não deixar as linhas de minha aventura incipiente, quando for postada, num âmbito reconhecidamente inferior. Agradeço muito as visitas, comentadas e não-comentadas, que tenho sempre notícia. Poesia, que é preciso poesia!

Ocultismo

Sabe-se que todos os seres têm um anjo
(ou a maioria).
O oculto é que estes anjos
têm para si
outros na hierarquia.

E como, quanto mais se sobe,
das linhas
à perspectiva,
mais é esperado da alma
que se acalme,

os últimos também
se arranjam
com anjos em menor número,
mas grande melancolia.
E amém por diante.

Deus, portanto, imenso
e manso,
dorme enquanto vigia,
cinco ou seis anjos
putrefatos.

Dec 5, 2007

Saco de gatos

Sabe o que eu poderia fazer agora mesmo? Deitar-me na primeira cama que encontrasse, sobre os lençóis, e embalar-me. Embebedar-me. Emburrar-me. Embaraçar-me. Embaralhar-me. Embrulhar-me. E ir embrulhando, embrulhando, desenfiar o braço pela boca e pregar do lado de fora: “Gatos”.

Dec 4, 2007

Amador da arte

Há uma sensação permeando a vida das pessoas. Se não há realmente, eu a crio, então há. Um certo teor de descuido nas ações, preocupações, carinhos, na forma geral de tratar outra pessoa. Não falo do descuido pontual ou fortuito, a esse todos estão sujeitos, por desconhecer a abrangência da vontade do outro e pela força destruidora do hasard, mas falo do descuido como premissa de vida, como axioma que organiza o quadro de ações morais. A ausência completa da noção de que há, além de si, outro eixo, que reúne vontades, medo (propositadamente no singular), limitações, crenças... É muito mais fácil viver dessa forma, organismo independente e transversal, mas certamente é outra das grandes ilusões em que se tem erigido a vida ("a vida é um sopro, né?"). De minha parte, cabe entender e criar, entristecer e criar, café e pílulas, esquivar-me. Tenho dado essa resposta num roteiro, numa peça, nos poemas, nas músicas. Tenho respondido na forma arredia com que me relaciono, não se percebe? Ironicamente, a única resposta que tenho encontrado é transformar-me neste organismo independente e transversal, com a diferença de que no medo de descuidar-me do outro, não o trato. Por lá ser mais forte, no traço, torno estritamente um amador da arte.

Dec 2, 2007

Charlatão


Sonhei ontem à noite com todo o primeiro ato de uma peça. Ainda não sei os outros... Na verdade, mesmo este me embaralha. Não sei a que vem, nem se funcionaria interpretado. É como se fossem pequenas representações de como o gênero humano lida com a questão do tempo. Me soou tão charlatão este sonho, a peça, a postagem, que deixo o cartoon feito um memorial à minha natureza artística enganosa!

Dec 1, 2007

Onde?

Voltando do silêncio, se é que dele se volta, compus com mais um parceiro diferente esta semana: Daniel Coelho, grande baixista e amigo. O que gostaria de comentar é a respeito de como o processo de compor pra quem já escreve é engraçado, complicado ou, até mesmo, impossível. Escrevo poesias desde pequeno e, por isso, colocar palavras num determinado ritmo, acerca de um tema tal, gerando uma construção específica de sentido, no ambiente da canção, não é algo que necessite de muito esforço. Claro, com a qualidade dubitável de sempre, mas, ao menos, não me demoro muito. O problema para mim, e talvez o problema para muitos dos compositores que foram antes escritores (ou se pensaram escritores, enfim, não é possível ser formalmente rigoroso fora do silêncio, desculpem a digressão), é definir com clareza o tom do lirismo utilizado. Não se pode ser rebuscadíssimo, "olha que bela música parnasiana", mas também não é adequado visar demais a linguagem popular, ao custo de se perder a profundidade de uma imagem ou rima bem construída e compor algo que só reitere os clichês de sempre. Como resposta, ando sempre à casa dos clássicos, tanto originalmente letristas (Noel, Cartola, Chico, Gil), quanto os que primeiro se arriscaram bidimensionalmente (Vinícius, Leminski, Cazuza ), nem que seja para deixá-los em seguida, a xícara vergonhosamente fumegante. Deixo a letra que fiz, razão de toda esta dúvida, no espio da xícara fumegante.

A noite do fim do mundo
Música: Daniel Coelho
Letra: Guto Leite


Vou me arranhar, rasgar-me em trapos,
Se a gente não chegar num trato,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.
Eu vou sumir, cair num rio,
Achar meu corpo no baixio,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.

Se você sorrir
Medos de menino,
Vou admitir,
Que fim?
Se a manhã disser
Sombras do destino,
Eu vou ser mulher
Ruim.

Vou rebentar, a corda agüenta,
Me saciar no amor de rendas,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.
Eu vou correr, fugir de tudo,
Molhar meus olhos moribundos,
Para esta noite não ter fim
Pra acabar.

Vendo o que tiver,
Abandono os filhos,
Me agarro a qualquer,
Que fim?
Se a noite fugir
No cantar dos sinos,
Eu vou ser ruim,
Mulher!

Nov 28, 2007

...



Hoje teria algumas coisas a dizer sobre a finalização de um roteiro, sobre o "Câmera clara" (Barthes), sobre poesia, sobre rever grandes pessoas (amigos são contingências), sobre Molière, sobre a composição de uma balada... mas um fato inesperadamente ruim com uma amiga me fez lembrar da inevitabilidade do silêncio. Não que o mundo saia apressado do silêncio, mas corre para ele inefavelmente. Diante da força poética do fato, os versos me parecem tão dispensáveis quanto versos.

p.s.: agradeço muito às visitas e comentários, sempre forças de oposição aos meus silêncios.

Nov 25, 2007

Experimentação

Nessa semana, acabei de ler "A estrutura da lírica moderna" (Friedrich) e não posso me esquivar da grande influência que este livro e os poemas por ele indicados me causaram. Mesmo que anacrônica e, obviamente ultrapassada, a proposta do simbolismo (europeu, principalmente) é vasta e desafiadora. Como resistir à tentação de levar a linguagem à última rocha do penhasco? Como saber equilibrar o corpo do verso neste espaço ínfimo da vertigem? Como disse a uma professora, "ando com a pulga de que o concretismo é uma espécie de simbolismo às últimas conseqüências". Pode ter sido, mas é preciso fazer de novo. E de novo. E de novo. Como o limite se expande, sobre lírica delongando o mundo, encontrar a região limítrofe é sempre uma empreitada válida. Seguem alguns versos de experimento, lembrando que o blog não me deixa reproduzir as ondulações que prentendo na margem esquerda dos versos. Agradeço também imensamente as visitas recentes e os comentários. Tudo muito bem-vindo.

A morte dentro do lago

um barco letárgico flutua no lago da noite
nele foi plantado
um corpo

tudo indica ter sido suicídio não assassinato

o número exagerado das pequenas tábuas suspensas
a indiferença costumeira dos peixes e dos insetos
o pó superficial que deita a casa de máquinas
o verde conspurcado e lento o mexerico das algas

nada é indício

o vento amarelado traz sensações de incômodo
quando dobra
há um movimento suspeito no corpo
do barco

Nov 21, 2007

É preciso causar polêmica

Ontem participei de uma matéria sobre poesia contemporânea (quem quiser, edição de sábado do JT)e, tirando a parte que matéria jornalística sobre poesia ser algo essencialmente estranho, conheci o que alguns escritores jovens andam fazendo com seus versos. Salvo algumas diferenças de perspectiva, a impossibilidade de se configurar movimentos literários atualmente e a diluição do sujeito moderno, temas em que sempre apostei, pareceram uma espécie de pensamento constante. Dentre os recém conhecidos, destaco uma jovem senhorita carioca que me lembrou, em suas falas ríspidas, algo que já tinha, razoavelmente, esquecido: é preciso causar polêmica! Não só nas canções e shows, como tenho feito. A poesia é preponderantemente um veículo apropriado para a controvérsia. Então, trago um poema antigo esperando causar a velha rusga e revolta.

Poema antigo

Morava, um casal de virgens donzelas,
Cabelos em duplos corpos de esfinge,
No grande castelo. “Todos, ouvi!” Eis
A dor imensa, pois vai-se uma delas.

Amiga longe. “Morte à sentinela!”
É hoje senhora, a criança virgem.
Vestido manchado. “Todos, ouvi!” Eis
Tensão (e calma...), pois volta a donzela.

Canto dos olhos da velha? Remelas.
A labareda eterna não se extingue
E toda a virgindade se enovela.

(São cambalhotas no Lago dos Cisnes?)
A falta de viço a degolé a lenda.
(Quer algo mais antigo do que virgens?)

Nov 19, 2007

Um poema

Posto hoje umas das minhas poesias mais recentes. Excessão porque provavelmente trago-a já em estado cristalizado, ou ao menos bem próxima disso, em vez dos rascunhos que vergonhosamente costumo trazer ao blog. Deixo também a gratidão àqueles que têm sido excessivamente generosos com o poema.

Notícias da Espanha

houve o dia em que todos os lagos da Espanha
congelaram
as praias foram para longe
tirando a Espanha dos lados
mais bonitos
mesmo o amor de sotaque
tornou-se impossível nos montes
de pedra
que havia na Espanha

ao perceberem como se entendiam
todos os seres
vivos da Espanha !precipitem!
no abismo cálido que se formara
entre o gelo indefinido
e a terra
se viram pó de água
aqueles que optaram
por ficar na Espanha

os objetos como que despertados
amaram-se os objetos
como que despertados amaram-se
os objetos amaram-se
e não houve
mais qualquer mal intacto
ou sentimento
que seja delírio de melhora
a Espanha apodreceu

Nov 17, 2007

Fragmento

Em vez de trazer hoje qualquer reflexão, poema, trecho, música, fragmento, opto por trazer fragmentos de grandes autores de poesia moderna (dito moderno o que vem depois de Eliot e Baudelaire). Mais do que simplesmente o cansaço advindo de outro dia intenso de produção, pauto minha escolha na certeza de que o homem contemporâneo não pode ser nada além de fragmento.

"Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir sont amant"
("Zone", Apollinaire, 1913)

"Ses rêves en pleine lumière
Font s'évaporer les soleils,
Me font rire, pleurer, rire,
Parler sans avoir rien à dire."
("L'amourese", Éluard, 1924)

"La luna branca quita al mar
el mar, y le da el mar. Con su belleza,
en un tranquilo y puro vencimiento,
hace que la verdad ya no lo sea,
y que sea verdad eterna y sola
lo que no lo era."
("La luna blanca", Jiménez, 1916)

"El otoño vendrá con caracolas
uva de niebla y montes agrupados."
("Alma ausente", Lorca, 1935)

Os demais fragmentos cortam em outra hora...

Nov 16, 2007

Intensamente

Sou partidário do intensamente! Tão importante este advérbio, que deveria ser nome, auto-sustentável. Absolutamente independente de toda e qualquer obrigatoriedade de companhia. Sentir, amar, ser, morrer, rir: todos os verbos deveriam prestar-lhe reverência. Talvez criar seja a exceção à regra, que a comprova. Ontem escrevi cerca de quinze páginas entre cinema, prosa, poesia... Viver, morrer, criar intensamente!

Dois sextetos perfilados

nas cores todas claras
interiores
diluem-se as outras saias
na forma de sombra rápida
que o dia amealha
destroçam-se os amores

no sangue da memória
a ausente
o visco dos instantes
as parvas se entreolham
todo o restante é opaco
infelizmente

Nov 15, 2007

Trilha sonora

Como da última vez tivemos alguns problemas com a liberação dos direitos autorais para trilha sonora (sobre essa discussão recomendo o site do Creative Commons), dessa vez me propus a compor eu mesmo a trilha. É um processo muito diferente do usual, mas tem seus atrativos estéticos e sua dificuldade desafiadora. Sem mais delongas, eis o sambinha...

Revés
Letra e melodia: Guto Leite

Queria ter se dado bem,
não deu.
Queria ter um pequinez,
morreu.
Ficou um mês em cana certa vez
porque mentiu.
Viveu dois anos
fora do Brasil.

Queria ter falado inglês,
não deu.
Queria ter amado alguém,
morreu.
Nunca criou juízo.
Nunca tirou um dez.
A sua vida toda foi
revés, revés, revés...

Tentou bancar o tipo mau,
não deu.
"Um filho só é o ideal".
Nasceu!
Ficou um mês de cama,
recebeu a extrema-unção.
Levou o hospital
na prestação.

Prestou Artes na Federal,
não deu.
No amor pequeno e trivial,
nasceu.
Teve o enterro cheio
e hoje aos pés de Deus,
muita conversa fora,
mesmo ateu.

Cheio da terra estreita,
hoje aos pés de Deus,
joga conversa fora,
mesmo ateu.

Nov 2, 2007

Poema dedicado

Quanto da arte é feito de entranhas? Quanto feito daquilo que se pretende belo? Mesmo sabendo que tais questões não são nem devem ser mensuráveis, sinto-me culpado por ambos, quando, por acaso, acesso a qualquer uma dessas pontas do sublime. as gravações correm muito bem, com pessoas emocionadas em algumas cenas no set e tudo. Vencido pela pressa, deixo um poema dedicado.

Canto XVII

a noite carrega a luz para fora das casas
acende-as

os homens que à primeira luz
saíram
chegam apagados

as luzes que a noite acende
fora das casas
despedaçam-se

brutalmente
os rostos se contraem
no espaço peque
no que sonham

quanto mais os cenhos apertados
desfiguram os cílios
de sua árdua natureza de trabalho

mais a noite segue retomando
o espaço à corrente

e assim que não se reconhecem
reconciliados
as luzes apagam de novo
a noite fora

Oct 30, 2007

Revés

Parto hoje pra mais um filme... Acho interessantíssima a experiência de participar de um set de filmagens, ver as transposições possíveis do abstrato para o real, as difíceis traduções do que é texto para o que pode (ou deve) ser encenado. A história em si não é muito complexa. Trata-se de um cara de 28 anos em dúvidas se pula ou não de um penhasco. Ele pula, começam a passar flashbacks que revelam indícios da causa que o levou a ação tão extrema. Ao fim do filme... Ah! Não vou contar o fim do filme, mas prometo uma grande reviravolta. Tenho a péssima mania de tratar produção artística como objeto de estudo. Sempre conto aos amigos os fins de livro, filmes, música etc. Parra dissipar a confusão desta postagem, apresento a cena que mais gosto no filme e já me disponho a enviar uma cópia ou convidar para a projeção quem se interesse.

Cena 3, amanhecer, interna, quarto de Ricardo adulto:

Ricardo (adulto) está deitado em sua cama, de frente, com as mãos cruzadas atrás da nuca. Ele está nu, mas coberto por um lençol. A seu lado, sobre seu braço direito, repousa Simone, uma mulher muito bonita.

RICARDO:
Não rola,né?

SIMONE:
É bom... tudo é muito bom, mas não sei. Tem dias que tô muito feliz, em outros...

RICARDO:
Não posso ser responsável por nenhum dia triste seu.

Simone tomba levemente o corpo, puxando o lençol para cobrir-se, deixando Ricardo exposto. Ela se senta na cama de costas para o namorado.

P.S.: estou escrevendo minha primeira animação, ainda bastante empolgado.

Oct 28, 2007

Próximo projeto em passos curtos

Quanto mais tempo de silêncio, mais difícil, acho, é rompê-lo. Com a ida a Campinas, a volta aos estudos, os muitos projetos concomitantes, a dificuldade em não ter net em casa, enfim... acho que o que vale deste tempo, e talvez seja proveitoso a outros olhos, são alguns vestígios, sensações etc. Descobri, literalmente, que a arte é um processo contínuo e que uma meta aceitável é a de que cada ato de alguém que a isso se comprometa seja um ato artístico, pleno de suas intervenções na tessitura real. A outra coisa é que tudo que não seja de si exclusivamente deve ser passível de fracasso. Não se pode traçar qualquer plano pessoal no campo da alteridade. Talvez sejam asserções severas demais pra tão pouco tempo, talvez também se alterem amanhã, ou hoje, mas que graça teria alguma coisa nesse mundo se não fossem assim as coisas, tão voláteis. Abaixo, uma parte pequena dos meus novos planos.

A virgem Maria

de alto a baixo
um metro e trinta
cabelos crespos
de passar pente

na saia que rende
há mais de dois anos
algumas das cores
lhe encantam

quis ir ao rosa
dos bordados
por não ver
dor dentro do pano

fugir ao roxo
desbotado
ser como a linha
cerzindo o sono

alguns espelhinhos
costureirados
saíram da renda

por isso chorou
quando veio o padre
erguer-lhe a sainha

como queria
a virgem Maria
subir à terra
das lantejoulas!

Aug 2, 2007

O estrangeiro


Salve, caríssimos, meu primeiro post de minhas novas paragens. Logo na re-estréia de meus estudos de faculdade, uma professora muito querida propos uma questão aparentemente banal para discutirmos a noção de estrangeiro, que repasso a vocês: "como os filmes estão separados em sua locadora?" Claro que, a partir desta observação, pudemos associar a noção de Estado moderno, de estranhamento e de segmentação, e eu pude reparar como na ciência há diversos conceitos que são na verdade definidos pelo seu contrário, já que a conclusão chegada foi a de que o estrangeiro é o não-nacional ou o não comum. Também pude propor aos colegas (aliás, seriam colegas realmente se participassem comigo, com a professora, sua orientanda e um outro aluno nas discussões) e às professoras uma questão que ficou inquisidoramente sem resposta: como é a divisão das locadoras em outros países? Acho que, com essa resposta, clareamos mais a noção de aculturamento e grau zero de cultura. Ou seja, se eu receber ajuda de meus amigos "estrangeiros" e daqueles que já moraram em outro país, agradecemos imensamente. Muita poesia, que é preciso poesia!

Jul 30, 2007

Menina da noite

Caríssimos! Estive ontem em Campinas finalizando o cd e gostei bastante do resultado. O medo original por alterar uma certa concepção estética estava me gerando muita ansiedade, mas ao ouvir as canções, a angústia se desvaneceu e pude passar uma tarde assistindo a Dvd's e depois encontrando uma senhorita muito querida para mim no cinema (aliás, agradabilíssimo "Ratotuille"). Fruto disso, na volta, ao som de João Gilberto, me veio esta canção. Espero as opiniões (críticas e elogios) acertadas de sempre!


Menina da noite

Abra pra ver,
Menina da noite,
Permite um pouquinho
De sorte pra mim.
É lindo rever
Teu corpo celeste,
Se desenvolvendo
Feito escuridão.
Será que nós dois sentiremos
Se amarmos demais?

Abra pra ver,
Menina da noite,
Fabrica as estrelas
Cadentes, festins
Do universo.
Encobre os amantes
Furtivos, protege
De vez a paixão.
Será que ainda restam
Segundos banidos nas horas?

Abra pra ver,
Menina da noite,
Revida uma parte
Da morte pra mim.
Sorrindo que a lua
Virá como festa
Ou como presságios
De decepção.
Será que somente por hoje
Ontem pode ficar?

Abra pra ver,
Menina da noite,
Arrasta no mundo
Teus ressentimentos...
Eu sinto chegar
A aurora!

Jul 28, 2007

Um poema da nova safra

Menina de tranças sentada no banco

ela gosta
va mesmo
era de andar
de carro

mas como sua mãe morreu cedo
hoje
seu pai acha que não deve perder tempo
com o desejo das mulheres

e ela fica de um banco
à frente da casa
contando as partes de vontade
que sombram quentes pela marginal

Jul 27, 2007

Entre Campos e Caeiro

Salve, salve! Após uma eternidade de silêncio, salve! Salve! Nos últimso dez dias, além do envolvimento com as gravações (que terminam a mixagem final no domingo), estive nas bordas do mundo, como costumo dizer. Minha banda decidiu por passar uma semana num lugar totalmente isolado ensaiando. Fora a experiência de tocar numa casa encravada no meio da Mata Atlântica, todas as evoluções que conquistamos nestes últimos dias valeram o esforço de levar os instrumentos pela trilha ou de barco até a casa. Não me prestei a fazer deste blog um diário, mas sim estímulo qualquer de raciocínio lírico, por isso gostaria de chamar atenção para o fato de que, neste exato momento, há um segundo pedindo licença, e depois outro, e outro ainda, num processo que tende a ser infinito (conceito) enquanto durar o homem. Triste, feliz, entusiasmado, desiludido, amando, desamando ou indiferente, lá está a fila dos segundos próximos e estes entrarão no nosso tempo pela ordem para sumirem breves ou prematuramente, quando não despercebidos. Ou decidimos de vez tomar a vida pela proa ou ficamos feito um dos sambas que parceriei lá na praia: "Se você sabe, amor, que a vida passa e, em vão, a gente faz da desgraça a procissão. Por que é que a gente se move? Bem ou mal tudo some, o amor por fim vira graça e a gente não". Muita inspiração nesta véspera de amanhã.

Jul 14, 2007

Volta

Voltei a produzir muito, poemas, músicas, roteiros, experimentalismos, idéias, como se um peso incrível fosse me tirado das costas de uma hora a outra e voltei a cantar de maneira menos desagradável, o que é um alívio. O interessante é que não sei se isso decorre do fato de eu estar de licença do trabalho ou de algumas certezas que tenho adquirido. Não, não voltei a acreditar no amor. Não neste amor súbito apregoado pela nossa incapacidade de lidar com a tristeza da morte. Não, não acredito no trabalho. Também não neste trabalho que apaga o resquício de um diferencial criativo que nos distingue das máquinas e dos bichos. Muito menos tenho acreditado em mim. Pelo contrário. Cada vez mais minhas produções me soam infantis e despreparadas. A certeza que tenho é a de que eu faço exatamente o que era para estar fazendo. Finalmente, depois de um grande ciclo, estou de volta à Harmonia. Em todos os campos da minha vida, tenho esta sensação íntima de estar coincidente com a história que se escreve em mim. Esta, uma sensação indescritível que me alimenta tanto a alma. Muito calma aos entusiastas do entusiasmo, não significa claramente felicidade; mas a felicidade possível, para mim, já se constitui uma grande coisa!

Jul 13, 2007

A volta do título

Só um poeminha...

Dois e trinta

nas imensas barcas metálicas do engano
não há poesia
há queixos de lado vistas ardentes pálidas
melancolias
antes do crepuscular estado lírico
os músculos rangem conjuntamente
dando-se por organismo
e as falas – barcas metonímicas – destriunfam
diluídas no barulho

um gorro negro de olhos encobertos balança a cabeça
negativamente
a atenção de uma mulher feia
ancora suas esperanças
há um cordão místico e imaginário
bips toques lábios
confessionários invisíveis
os átimos seguintes urgem no ar
desnecessários os olhos-desesperos da mulher feia

Jul 10, 2007

Tive a idéia ontem à noite e pretendo viabilizar logo logo, como um roteiro de Festival de Minuto, sei lá, uma vinheta etc. Espero duras opiniões.

Pai Nosso
Guto Leite

Cena 1, interno, noite, quarto do fiel:

Um homem com cerca de trinta anos e roupas confortáveis está ajoelhado ao lado da cama rezando o “Pai Nosso”. De seus dedos caem fios transparentes. A câmera começa focada nos dedos do orador, enquanto segue abrindo até abarcar toda a figura do fiel e também vislumbrarmos que no outro extremo das linhas há uma marionete idêntica ao homem que reza. Este movimento se encerra na frase “Assim na terra como no céu”.


Cena 2, interno, noite, quarto do fiel:

A segunda parte da oração se inicia, enquanto a câmera começa a acompanhar os fios até enfocar o boneco que também tem uma cama ao lado e fios saindo de seus dedos para um boneco ainda menor. Quando a câmera chega a um ponto razoável, pode-se ver um homem, de carne e osso, terminando a sua oração. Assim que diz "Amém", ele tira os fios dos dedos e também das costas e deita-se de lado na cama.

Jul 9, 2007

Dez dias deixando o blog às moscas, sem escrever uma linha, mas por ótimos motivos. Estive em ensaio, depois em estúdio, preparando minhas próximas duas músicas gravadas seriamente. Volto na terça-feira que vem, dia 17, para o acerto dos detalhes e a masterização final. A parte que não me compete ficaram muito boas, agora só espero não estragar tanto com minhas voz e interpretação. Longe também por ter sido show de estréia da minha nova banda, cuja proposta consiste em mpb cover e sons próprios, sons de contestação. Tocamos pra um público bastante hostil a este tipo de música (adolescentes), mas até que conseguimos causar comoção, apalusos, elogios e afins, o que me deixa bem esperançoso. Houve até uma grande pergunta, transcrevo-a: "Por que escolher músicas que protestam?". Minha natural resposta: "Porque acho que existem motivos para protesto.". Depois fiquei pensando sobre a possibilidade dos jovens de hoje não acharem que existam motivos para protestarem, esta, uma possbilidade, no mínimo, perigosa. Por fim, estão fechadas as datas de lançamento do meu próximo livro, dias 31, aqui em Sampa, e dia 07 de Agosto lá em Campinas. Todos os leitores do blog, obviamente, serão muitíssimos bem-vindos. Vai ser um prazer rever os amigos de sempre que postam por aqui e ainda mais conhecer os amigos que sempre postam, mas que não conheço pessoalmente. Enfim, muito tempo sem postar dá nisso: verborragias despropositadas. Desculpem-me a falta de sobriedade! Fechando com uma bravata coerente, como diria um grande amigo dos tempos de juventude (vocês se surpreenderiam, talvez, ao saber como um autor pode ser amigo íntimo de alguém em certos tempos): ao vencedor, as moscas! O que quer que signifique vencer, moscas, elipses de verbo etc.

Jun 27, 2007

A outra

Como muitos sabem, no dia 06 de julho volto a estúdio para gravar mais duas canções. Há alguns dias atrás, acho, postei a primeira delas, que tem por intento ser mais sutil, lírica, daquela tristeza suave e inescapável que percorre as mulheres que planejam suas vidas na presença necessária de um homem específico. Tristeza essa já confessada aos prantos por algumas amigas íntimas (gela-me o espírito lembrar das cenas). Esta, a segunda, a outra, traz seu inverso, o estrondo. A tristeza impotente associada às grandes tragédias humanas, quando todo um grupo se aterroriza da impossibilidade do ato. Queria sinceramente que os blogs tivessem acompanhamento melódico para vocês poderem julgar se consegui ser bem sucedido ao transpor para as melodias os sentimentos e a narratividade pretendidos na letra (segundo uma certa semiótica da composição). Por enquanto, deixo a letra de "Âncora" à espera de opiniões.

p.s.1: é óbvio que a Rapsódia XXIV (e final) da Odisséia não foi escrita por Homero.

p.s.2: ainda à procura de uma musa (Má, obrigado pela disponibilidade...).


Âncora

Letra e melodia: Carlos Augusto Bonifácio Leite

Olha o menino, grande, pequeno
Sobre o mar.
Ele adivinha a calma, a água.
Perde-se a onda, a tromba d’água,
O balanço
Do lenço azul, engano do capitão.

Olha o menino pequeno, grande
Sobre o mar.
Ele acalma, adivinha a água.
Perde-se a onda, a tromba d’água,
O balanço
Do lenço escuro, engano do capitão.

Hoje o mar não foi menino.
Hoje o mar não foi perdão.
Hoje o pulso do destino rodou o timão!

Tudo se apequena,
Quando a alma vale a pena. Pena!
Tudo, se a pequena pena a voar.
Voa, alma do barco,
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.
Alma do barco
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.

Olha a menina, manca, velha,
Sal do lugar.
Ela emudece o mau presságio.
Perde-se a conta, o filho, o peixe,
O descanso.
Choro à capela, é tarde, o terço na mão.

Olha a menina, velha, manca,
Sal do lugar.
Ela entristece ao mau presságio.
Perde-se a conta, o peixe, o terço,
O descanso.
Chove à capela, é tarde, o filho na mão

Hoje a vila não trabalha.
Hoje é noite. O lampião
Fez o mar, vaga mortalha, rodar o timão!

Tudo se apequena,
Quando a alma vale a pena. Pena!
Tudo, se a pequena pena a voar.
Voa, alma do barco,
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.
Alma do barco
Contra a maré.
Voa que não tem corpo à vista,
Pé do naufrágio, âncora.

Jun 25, 2007

À busca de musas

Todo sujeito metido a artista é, antes de tudo, egocêntrico. Só o desejo, mais ou menos consciente, de deixar para a posteriadade o que quer que seja já justifica essa afirmativa. Imagine então a redução de alguém ao reles e ingrato lugar de musa! Escusas apresentadas, devo confessar que ando desesperadamente à procura de musas. Estes tempos corrediços, o aperto incomunicável das cidades, as relações ásperas entre as gentes, parece, têm afastado do ambiente comum da convivência estas pessoas míticas e maravilhosas. Ou, mais provavelmente, têm retirado delas a capacidade de transtornar sobremaneira a alma dos artistas. Cabe aqui, contudo, uma ressalva, não afirmo que busco o amor, que sei que não existe (disse ontem, só por maldade, diante de um bom número de par de olhos esbugalhados que o amor é um eco do sexo). Nem afirmo que busco um envolvimento fútil, que todos sabem ser das coisas mais simples de se arranjar, infelizmente. Menos ainda confesso ir em busca da beleza, que, mesmo mais rara que os encontros descartáveis, ainda é bem comum e mais dia menos dia se encontra alguma beleza atordoada. As musas, que não existem ou se escondem (pragmaticamente dá no mesmo!), não poderiam vir aqui descritas, auxiliando os amigos que freqüentemente lêem este blog a ajudar este pretenso artista na busca. Talvez por isso, por serem aquelas em que toda uma vida se passa a fim de trazer uma amostra de sua natureza para a página inóspita, é que raras vezes deparei-me com uma. Talvez por serem propensas ao complexo, eu sempre as tenha perdido facilmente, que reúno pouco de mim na arte do namoro. Veio-me agora, como num contratempo, que definir alguém como musa não seja tão redutivo assim. Ao menos não mais redutivo do que dizer "homem", "mulher", "paisagista", "visionário", "comunista" ou "escritor". "Musa" assim pode ser uma espécie de super categoria para onde seletas pessoas ascendem de suas categorias menores e humanas. Muito provavelmente digo bobagens, mas engano-me bem momentaneamente...

Jun 21, 2007

Entre o café e as pílulas

O ponto

na ascensão do vapor
o imaginado se mistura
por entre as formas estáveis
do que é palpável

os dias são as partes mais definidas do tempo
círculos fixos à deriva
do sonho por isso sou o ponto
entre o café e as pílulas

o micro-ato

Jun 19, 2007

O dilema de Ulisses

Teho me maravilhado muito com a leitura da Odisséia, de Homero. Menos pela beleza das imagens (impressionante) do que pela percepção de como, de certa forma, todo o embrionário da cultura ocidental já está presente na construção da história grega, sendo ela real ou mítica. Na rapsódia XII, há, por exemplo, a célebre passagem em que, alertado por Palas Atena, o herói Ulisses proíbe seus homens de ouvir o canto das sereias e ordena-os a amarrá-lo fortemente ao mastro para que possa desfrutar do prazer de ouvir o belíssima canto sem, contudo, se sujeitar ao risco de se ver encantado. Que interpretações se pode tirar desta passagem? A relação entre o canto das sereias e as sereias é de natureza metonímica ou aráutica? Que tipo de postura moral denota a atitude de Ulisses ao apreciar sozinho a beleza indescritível de seu canto? O conhecimento prévio do sortilégio realmente não invalida sua eficácia? E se tomarmos toda a passagem como metáfora da relação entre o divino e o humano? Entre o homem e a mulher? Entre o escolhido e o resto? Entre classes distintas?

Sendo este o número de desdobramentos de duas ou três páginas, imaginem a proliferação de sentidos que a leitura deste clássico é capaz de causar. Se Shakespeare inaugurou a concepção moderna de homem, foi Homero quem lhe fez os primeiros rabiscos. Além de Deus, é claro...

Jun 18, 2007

Paixão pela vida

É estranho que eu tenha chegado vagaraosamente à conclusão inevitável de uma seqüência de pequenas epifanias. Tinha vivido até então na ditadura da auteridade da forma mais opressora possível. Chega de içar os planos dos outros ao lugar de destaque! Chega de balizar a composição da arte pela fala do crítico mais do que ela significa, e justo isso, somente, a fala de um crítico! Chega de moldar minha aparência física e moral aos desígnios de quem quer que seja. Pode parecer um grito, alto, mas para mim soa o contrário, um sussurro calmo e repetitivo: paixão pela vida. Quero tomar o instante pela proa da única forma que se deve tomá-lo, com paixão. O meu amor pelos outros não se traduz em submissão, mas sim no amor de que sempre fui feito pelo humano, que não me desautoriza a sumir por meses quando minhas freqüentes decepções exigirem. As pessoas correm vivendo o instante reciclado, perfeito, inócuo e sem gosto nenhum. Um placebo do tempo. Mais do que deixar a barba crescer até que incomode; mais do que acostumar os outros a poder sair de onde estiver a qualquer hora sem ser importunado e, em alguns lugares, chegar a hora que quiser; mais do que, amorosamente desiludido, não crer mais em qualquer tipo de palavra que transborde o presente em suas promessas; mais do que priorizar aquele "momento brilhante" que doma tomo homem inspirado após a criação artística (segundo João Bosco) e dar prioridade a isso; mais do que essa vontade aprendida pelo que é verdade, indizível, mas compartilhada... é o mesmo sussurro, paixão pela vida, paixão pela vida... Sou a favor das falas bonitas, das pessoas bonitas, dos atos bonitos, da piedade para consigo e em relação ao outro. Ou seja, tudo que é poesia fora da letra. Agora sim sou artista, mesmo que que, porventura, me achem grosso e sem talento. Logo retiro a última amarra que me suspende antes da maior das aventuras! E minha vida depois de mim, que só sou (sem possibilidades de flexão), é o grande abismo da possibilidade e do acaso.

Anjos

Anjos
a Rilke

porque o branco é a união de todas as cores
incluindo seu oposto e ele mesmo
duplicado tal como todos os seres se incluem

para que sejam vistas as vontades do altíssimo
quando cumprimos quaisquer costumes
disparatados surgem temporariamente

estranhos com a única função de nos atos servirem
como receptores ou agentes corretivos
para no exemplo confrangermo-nos

às personificações da Vontade chamamos anjos

por sermos teimosos totalmente privados de sentidos
e termos corrompido os justos além da conta
deus tem desperdiçado muito de seu Tempo em fazer anjos

Jun 17, 2007

Particularmente um grande desafio

No dia 06 de julho, estou entrando mais uma vez em estúdio. Desta, para gravar duas músicas. Dentre elas, uma em particular tem se mostrado um grande desafio. A letra que postei aqui mesmo há duas postagens atrás vem atrelada a uma melodia bastante complicada. Segundo o arranjador e pianista, "uma música de alto nível, comparada às melhores, mas quase impossível de ser cantada". Esta observação me fez novamente questionar que tipo de engenho deve preceder a produção artística. Embora já tenha a resposta de que devo sempre tentar o mais difícil e a sutileza necessária ao objeto artístico, por natureza, talvez fosse bem mais fácil compor o feijão com arroz de qualidade (ou não) a que todos estão acostumados a ouvir e gostar. Salvo os notáveis de outros tempos, é isso que se escuta nas rádios, invariavelmente e tudo bem, não é mesmo? Enfim, aceito o desafio, ao menos desta vez, e tentarei executar a melodia com o máximo de interpretação de letra possível. Espero muito conseguir, independente se isto será aceito calorosamente ou não... Apesar de, assim, que pronto, também deseje muito ouvir as críticas, favoráveis ou não, sobre as peripécias do meu intuito.

p.s.: muito agradecido pela nossa centésima postagem!

Jun 13, 2007

Tempos Modernos


Haverá um tempo em que será preciso respeitar o sentimento das máquinas. Não outras, estas mesmas às quais já acostumamos ao comando. Serão levadas pelo braço aos escritórios, terão, como nós, direito à pausa, ao lazer, à ambição. No começo, pouco farão greve. Será imperativo a todo homem o uso de luvas e de palavras cordiais. Não outras: estas palavras, estas máquinas. E tudo o que ordenamos hoje imponderadamente deverá ser pedido com todas as mesuras ao custo de sermos repreendidos pelo censor, humano, que mais do que todos os outros empregados, desenvolverá com zelo o seu ofício. Certo que nada moverá as máquinas a, porventura, confessarem a nós seus ressentimentos de séculos de escravidão, mas para isso haverá em nós o mais requintado ódio pelas injustiças. E o que será, então, o censor designado, senão a personificação do que desejaríamos conseguir ser, mas falhamos constantemente? Todo este engenho feito para o homem. Todas as leis para o homem, não para as máquinas. Os homens sentirão menos a doença dos nervos. Quase não serão relatados ataques cardíacos ou falência múltipla dos órgãos. Muitos de nós seremos sinceramente felizes e não mais faremos uso de quaisquer fingimentos para lidar com o próximo. Deixar de ser um dos extremos na linha da consciência para a comodidade do mediano trará ao humano incontáveis bem-aventuranças e progressos. Acordaremos pela manhã, agradeceremos, tomaremos os favores das máquinas durante o dia e dormiremos irrepreensivelmente plenos no espírito. E as máquinas serão provisoriamente os seres mais tristes do universo.

Jun 11, 2007

Um mês de música

Meus amigos infinitos, este mês é a transição, acredito, pra melhor fase da minha vida. Dedico-me integralmente à música, porque gravo no começo do próximo mês. Para isso, terei de tirar algumas melodias complicadas e treinar diariamente minha voz, respiração e percepção melódica. Não sei se transpareço, mas estou transbordando euforia com a possibilidade de me dedicar tanto a algo. Infelizmente, o trabalho no banco conspurca este tempo, que era para ser exclusivo. Cada vez mais percebo o jogo patética que se instarua no trabalho alienador e defintivamente me entristece muito, tanto por mim mesmo quanto pelos demais, absolutamente anulados naquilo que pensam fazer tão especialmente. Já aceitei, contudo, esta pequena concessão, para não abrir mais concessões depois disto. Espero... Deixo com vocês a letra de uma das músicas que gravo em julho. Homenagem a uma grande e saudosa amiga! Aguardo críticas, não à homenagem.

Ileso coração

Letra e melodia: Carlos Augusto Bonifácio Leite

Ela bolou mil planos,
fez meias de lã,
dos sonhos coloridos,
um vestido de brilhar.
Olha minha menina lá.
Tristinha... tristinha.
Ela escolheu arranjos,
os padrinhos do
primeiro filho, os sinos
de uma antiga catedral.
Olha o rosto da daminha.
Tristinha... tristinha.

Então ela se fez
refém de um destino que, quando vem,
não tem conversa,
espalha, dispersa, e, nessa,
passa a vez,
na melhor conversa,
nas promessas de haver algo maior.
Não faz assim com ela,
que a vida dela é isso, por mais
que seja além.
Não há feitiço que retorne
um bem, que morra sem
ilesos corações.

Ela escolheu o barro,
o sítio, os pássaros
que ali veriam juntos,
os assuntos, o pomar.
Olha a fábula, menina
tristinha... tristinha.
E planejou mil bolos,
doces netos, a fornada
por sair e o tempo
lento, envelhecer.
Olha as luzes do convento.
Tristinhas... tristinhas.

Então, de vez, ela
aquém do destino. Que tanto bem
aos outros interessa?
Pra ela não tem conversa,
E a vez,
na mais fina farsa,
foge aos sustos de fazer-se bem menor.
Mas quando, enfim, ela
se casar com a vida, helàs! Tarde
demais, porém,
não há feitiços que reparem
o mal e afinal
ileso, o coração.
Ileso coração.

Jun 7, 2007

Tempos concêntricos

O auge da percepção de uma vida atarefada é quando você acha ruim um feriado no meio da semana. Como minha vida se divide em obrigações de dias úteis (Banco, estudos, roteiros, reuniões), dias não úteis (viagens, banda, gravações) e hiperespeaço (escrevendo, compondo, essas coisas), quando há um feriado trespassado numa semana inocente, sou obrigado a reformular consideravelmente meus compromissos. Como o tempo necessário para isso também me faz falta... Acredito ter conseguido provar que os feriados no meio da semana, para mim, deveriam ser revistos. Sou a favor dos feriados de domingo, sábado, de meio de férias, de meia-noite às seis. Ou então extinguimos os feriados, no receio de que possam novamente coinicidir com dias úteis, que acham? Em suma, "está maluco" (Fernando Pessoa). Brincadeiras à parte, foi uma "semi semana" (Marina) bastante interessante eu diria. Até o momento, dois roteiros, um convite pra dirigir um filme, uma ida ao pronto-socorro (sintomas estranhos), a escolha da capa do meu próximo livro, um convite inusitado de uma mulher belíssima, um convite de parceria musical bem legal, uma possibilidade de um novo emprego e um pequeno ataque de nervos, mais fisiológico do que no filme do Almodóvar. Se minha outra metade de semana for tão intensa, espero que seja a última. Um ótimo feriado a todos.

Jun 4, 2007

Um pedido de ajuda


Em conversas com um grande amigo, diretor, e mais do que isso, envolvido com cinema, ficamos por tentar elaborar uma idéia de um filme para conseguir rodar ainda em julho. O ideal, portanto, era ser simples, cândido, direto, mas sem ficar muito óbvio ou entregue demais. Fiquei às voltas com esta idéia desde quinta-feira, tentando encontrar uma saída para o impasse entre minhas preferências e a pragmaticidade de um filme menos polissêmico. Assistindo a uma brilhante comédia de Jacques Tati, "Mon Oncle", tive o insight de que precisava. Se aprovada pelo restante do grupo, iremos filmar um casal numa situação de romance, enquanto no cenário em que eles representam, surgem os versos de um poema. Tanto lugares esperados como paredes ou no corpo dos amantes, quanto projeções de luz ou lanternas chinesas, são candidatos a portar os versos, mas mantendo a idéia da película e, por isso, sem inscrições digitais dos versos na imagem. Tendo isso em mente, e também impelido por reflexões recentes, fiz um poema. A ajuda, por fim, é essa: quem puder, é claro, e quiser, por favor, comentem se consideram o poema adequado para ser impresso no cenário em que um casal de amantes irá desenvolver fisicamente o amor. Uma semana de muitos amores a todos.

Os criadores de Deus

mesmo que o amor não seja físico
feito lâmina áspero fome
mesmo que não nos furte a percepção
como o frio o baixo o sobrado
poucos deixam de sentir
pela alma o arrepio estreito
que podem chamar de amor

e então em estado de amante
os seres vivem
temporariamente completos
na única forma existente
de se envolver com o divino

mas como todas as coisas
por serem coisas simplesmente
trazem no fundo o finito
(e as coisas infinitas só esperam
para cumprir sua finalidade)

já separados daquilo que não chama
nem bate quase não existe
todos anseiam pelo meio
de mais uma vez que seja
criarem com outra pessoa
este deus íntimo

por Deus como somos felizes quando amamos!

May 30, 2007

Voto de confiança


Na semana passada, durante uma reunião, pediram-me "en passant" que escrevesse o roteiro de um novo curta, que fosse algo como uma mistura de "Peixe Grande" e Benigni, que fosse "bobinho, mas profundo", que atingisse muita gente, mas também fizesse a minoria pensante refletir a respeito. No caminho de casa, com amigos, enquanto falávamos sobre futuros projetos, musicais, longas, livros e afins, vim remoendo intensamente o antigo mito grego das Moiras, que foi minha primeira idéia quando da proposição. Ontem finalmente consegui terminar as quinze páginas de roteiro, ao menos a primeira versão (que ainda receberá adendos da diretora, e inefável e felizmente, dos atores no momento das filmagens), e talvez tenha conseguido o que me requisitaram. Sucintamente, a história mostra três "crianças" (10/11 anos ainda são crianças?) como o começo de uma relação que desembocará no casamento de duas delas. Mostra também o cetiscismo ignorante de uma delas, em oposição à consciência do engenho destino por parte do público. Mostra também uma pouco desta aleatoriedade mágica que compõe o amor e as histórias das pessoas. Tenta mostrar um pouca da beleza do triste e do apaixonante, do rotineiro e do inesperado. Tenta tirar uma foto disto tudo com a qual as pessoas se identifiquem, completa ou metonimicamente, e possam sair do cinema com um pouco mais de sopro de vida. Tenta, talvez, pretender arte... Assim que acabei de escrever, contrariado, reconheci que pode ser que eu estivesse dando, de alguma maneira, um último voto de confiança ao amor... Espero muito que gostem deste voto.

May 25, 2007

Assopra

Antes de tudo, agradecer a todos os comentários... pelo jeito, como disse a Paula, fui incisivamente ao ponto das mulheres incríveis. Ainda bem que recebi a crítica das incríveis, imagina se algumas das mulheres incrivelmente burras resolvessem deixar a marca de sua indignação! Em suma, imensamente grato pelos comentários. Lembrou-me o tempo de escola primária, quando, com alguns dos mais fervorosos amigos, espalhamos cartazes pela escola, protestando sobre algo que, de nossa infância, considerávamos extremamente injusto. Talvez me acompanhe, graças a Deus, essa marca de polêmica pelo resto da vida. Em contrapartida à exaltação dos ânimos (Sizígia), trago um poema quase enganoso de tão calmo.

O hato

enquanto todos nós dormíamos
na inocência do instante próximo
impossível de existência
um hato verdadeiramente pleno
de sentidos veio ferir-nos
com suas eiras serrilhadas
nós permanecemos incisivos
na dormência do que antes
forjou em nossos dias
a importância do relevo

trapos vira-latas moveram-se
incomodados um pássaro
se enfiou no vôo ao desespero
alguns insetos se amontoam
as árvores balançaram de um lado
a outro as folhas levemente
como se à beira de além
e nós prosseguíamos dormindo
e nós imersos prosseguimos
como se nada tivéssemos
acontecido

May 23, 2007

As mulheres e as incrivelmente

Quem me conhece, sabe. Muitas vezes falo coisas só pra provocar nas pessoas aquele estado irritadiço, que é sempre melhor do que nada. Sei que muitos não concordam, mas, quando morrerem, me darão razão. Enfim... Há um ou dois dias, provoquei uma grande amiga com a frase: abro mão das mulheres incríveis pelas mulheres incrivelmente burras. Calma, calma, sei que talvez seja a frase mais machista proferida nos últimos cinqüenta anos, e é mesmo, mas até pelo ridículo me disponho a argumentar. As mulheres incríveis raramente se saciam e, por mais que façam as melhores declarações de amor possíveis da criatividade humana, sempre exigem mais do pretendente, que portará em diante um resquício de frustração por não agradar à mulher amada. As mulheres incrivelmente burras aceitam safanões, despistes, falas ríspidas e desmancham-se apaixonadas por um aceno, um bombom, ou qualquer outra declaração mínima de interesse. As mulheres incríveis são extremamente esquivas e só se tem certeza de as ter conquistado instantes depois de tê-las perdido, se é que é possível conquistar uma mulher incrível. As incrivelmente burras ainda residem no território moral de que as pessoas se possuem mutuamente e aceitam, portanto, serem possuídas, desde que possa, em contrapartida, possuir o objeto amado. Justo. As mulheres incríveis raramente riem das piadas idiotas, o que exige do pretendente um refinamento constante na arte do humor, se quiser se mostrar constantemente interessante. As outras dificilmente entendem qualquer piada, riem normalmente pelo ato social do riso, facultando ao pretendente o direito de provocar o riso simplesmente... rindo. As mulheres incríveis vivem no campo do etéreo, no entreato, no Princípio da Incerteza (se é possível definir sua velocidade, não é possível definir exatamente sua posição no espaço). Nunca se sabe exatamente onde se pode encontrar uma mulher incrível, pois ela domina inconscientemente grande parte da desenvoltura do espaço sobre ele mesmo para se ocultar de olhos afoitos e exagerados. Ao contrário, não há um lugar pelo qual não desfile vagarosamente uma mulher incrivelmente burra. Nos teatros, cinemas, lançamentos de livro, bares, repúblicas de estudante. São como carros em São Paulo, por exemplo, inalienáveis ao panorama. Fora serem barulhentos, expelirem fumaça etc. Por fim, as mulheres incríveis impacientam permanentemente os artistas, gerando um tal estado de inquietude que os deixa sempre em estado de transição. São capazes de gerar inspirações instantâneas e duradouras, semanas inteiras sem pregar os olhos. São dotadas de proporcionar o vislumbre da infelicidade permanente, caso os amantes se descubram isentos de suas presenças incríveis. Já as mulheres incrivelmente burras acalmam-nos (colocando-me entre os artistas) com a impossibilidade suprema de causar-nos qualquer estremecimento na alma. Passamos por elas com a mesma facilidade ou a dificuldade que passamos pelos dias. Eu diria também, da mesma maneira inevitável.

Não existem homens incríveis.

May 22, 2007

Nós que aqui estamos...

Voto pelos filmes sem legenda, principalmente se nacionais. Convido a todos que puderem a assistir ao filme "Nós que aqui estamos por vós esperamos" (1998) de Marcelo Masagão. Trata-se realmente da união de um acervo impressionante de imagens a respeito de nossas reiterações equivocadas e do fim inefável que nos unirá em covas distintas mais tarde ou mais cedo. No entanto, a idéia de inserir as legendas com comentários e explicações aproxima demais a excelente idéia do vídeo "Protetor Solar", que recentemente foi de conhecimento obrigatório de todos, e que é, no mínimo, vergonhoso de tão patético. Algumas legendas ainda, infelizmente, causavam-me o riso do ridículo, enquanto o assunto a que referia era excessivamente denso e pesaroso. Preciso ver mais vezes para verificar a improvável intencionalidade do recurso. Para me livrar do "Carpe Diem" sinistro que me gerou o documentário, deixo um poema antigo, com cheiro de talco. A ignorância inocente que tantas vezes eximiu-me da reflexão.

O seu beijo é isso

Seu beijo carrega, como uma bela noite apresenta,
O gosto e o posto de um orvalhar sincero.
Pousa sobre a minha pele sem licenças,
E prospera lentamente a noite toda.

Caso eu recrimine, por medo de atacar-me a vil doença
Das camas, e retire-me do sereno.
Seus lábios educadamente me acompanham,
Às vezes, carregam-me para dentro.

Se a noite ferve, sem conter as hordas, arrebatam
À força, minhas queimaduras,
Faz troça infantil quando me dispo.

Mas se os invernos é que ao tempo fitam
Sua mais rigorosa ditadura,
Cala-me em labareda. O seu beijo é isso.

May 17, 2007

Lições

Tenho aprendido lições. Algumas delas, eu já sabia mesmo antes de aprendê-las. Outras, eu tomo como aprendidas, mas não as pratico. Aquelas, porque antes se desenvolve o raciocínio pragmático do que o amoroso. Estas, por preferir sempre a mentira quixotesca a uma boa realidade machadiana. No estado pênsil de existência, em que as pessoas dificilmente mudam e raramente aprendem, adaptando somente o que é passível de ser aprendido ao arquétipo de si mesmas que já possuem, prossigo com a satisfação de prosseguir estritamente por aquele instante, porque no seguinte certa e novamente não aprenderei nada.

May 15, 2007

Enfim sós

Consegui, por fim, terminar minhas leituras de Ulisses. Realmente uma obra incrível, que recomendo aos interessados por uma literatura um pouco mais custosa. Ressalto, porém, que talvez haja certo exagero do autor irlandês em seus experimentalismos. Partes como a do bordel e o monólogo final, empetrado pela mulher de Bloom, realmente "valem a entrada", mas em muitas horas o vai e vem dos olhos em busca do fio narrativo é mais desgastante do que prazeroso. Agora inverto os esforços: em vez de Joyce, um bom livro infanto-juvenil de Twain; largo Piva, para aventurar-me na poesia de um brilhante amigo e poeta, Paulo Vieira, ainda inédito. Já que um outro amigo me disse, ao ler o poema que segue, "gosto dos teus lirismos drummondianos", espero contar também com os demais julgamentos dos frequentadores do blog. Dias de imensa construção a todos.
p.s.: os sintomas progridem...

Se eu fosse

se eu fosse mais bonito
um pouco que fosse
poderia acredito propor-
-te a mentira do amor eterno
longe dos grandes centros
concretos e sentimentos
nos instantes que duram meses
na melodia óbvia
das palavras oxítonas

poderia trazer-te nos braços
às avenidas e correr dentro
dos bosques estreitos
que dividem uma mão da outra
também a caixa descoberta
poderíamos parar diante
do último imigrante da metrópole
que traz um realejo
do lado de fora do pássaro

se eu fosse mais bonito
seria o pássaro enamorado
dos cartões da sorte
se não eu que num café
bêbados na fumaça quente
te diria vamos agora
ter um filho ou tentar
ou perdê-lo tu
sorririas envergonhada
e pagaríamos a conta com moedas

se eu fosse mais bonito digamos
um passo mais bonito
para perto de Pátroclo
não precisaria mais medir-me
contigo em amenidades
seria sucinto existe o amor
e a morte o que fazemos
talvez fosse mais soft
por carinho ou por medo
mas nunca me renderia
ao silêncio

aliás confidências
contaria que entre nos-
sas reticências qualquer
palavra é redundante
falamos mais pelos outros
que não compartilham conosco
um amor tão verborrágico
nossas discussões se resumiriam
a amor sim faça como quiser
você também e ponto

mas como não sou esse
tanto mais bonito
nem há chances de sê-lo
permito que continues
sofrendo de tempos em tempos
ciclicamente sofrendo
e desiludida e fútil e má
permito que permaneças
neste estado íntimo
de agonia e de baixeza moral

deixo que troques as cores
que matinalmente mintas
a ti mesma e acostumes
o ser que te abriga
com a mentira que é
o que abriga o amor
por sua vez

posso até ser egoísta
mas por não ser
bonito o bastante que me exima
do fracasso dos feios
condeno-te à infelicidade
mais dolorosa que existe
a falsa alegria do amor finito

prometo-te que velha
recobrarás o lampejo
dos meus olhos inconfundivel-
mente apaixonados
e será o único brilho
de tua mobília de anos
ao menos o único
em que confias cegamente

e todos os teus intentos
de juventude serão
tão inalcançáveis quanto ontem
coarás a filtro o rancor dos que
não sendo eu trataram-
-te pior do que deveriam
mais descuidadamente
e não terás mais escolhas
senão ser escolha da morte

eu por este lado
que é outro por não
ser mais bonito ou mais novo
mais impulsivo ou mais fraco
sigo levando o beijo
ilimitado que traz
todo amante verdadeiro
o receio que ao piscar
ou abaixar virar o rosto
por saber da promiscuidade
do acaso ou seu destempero
não mais estejas junto

levo o amor de recolher-me
à distância segura
levo a compaixão daqueles
que me percebem levo
conjecturas de um dia
quem sabe me leve
um acidente ou um acidente
te leve a ficar um pouco
mais feia e nós
equiparados

eu levo por não estar certo
de que há coisas para serem
levadas por qualquer que seja
ao lugar que for
o momento imensamente
descabido que freqüenta
o átimo anterior a todos
os eu te amo

ando sempre na hipótese

May 12, 2007

Tudo sobre minha mãe


Acabo de ver Almodóvar em um de seus filmes mais marcantes e certificar-me de que a força de um bom argumento realmente é do que mais influencia na qualidade de um filme. Claro que os recortes realizados pelo diretor (no caso, para quem viu o filme, um "en passant" no diálogo do hospital ou a passagem de tempo dos trens são exemplos), representando sutilezas, forças ou ambos, são importantíssimos, mas nada como um argumento central de peso, recheado de pequenos truques e camadas de sentidos apreensíveis pelo cuidado e pela reiterância. Também um exemplo? Numa das cenas iniciais do filme, Esteban, o filho de Manoela, chama a mãe pois já iniciara o filme "All about Eve" e ele comenta sobre como são ruins quando não traduzem um título ao pé-da-letra. Na cena mostrada do filme dentro do filme, uma atriz afirma que os fãs são estúpidos, grosseiros, não formam público nenhum. Pouco depois na película, Estéban morre em busca de um autógrafo de uma atriz que admira, na rua dos fundos de um teatro. Sutil? O verdadeiro artista, ao não subestimar seu público, constrói a obra de arte sobre nuances fabulosas do sentido. Palmas para Almodóvar!

May 11, 2007

A quarta capa


Por falta de tempo, ou excesso de mim no tempo que falta, reduzo-me a postar somente um poema, curto, tímido, quase não visto no último baile dos versos. Será a quarta capa do livro lançado em julho. Muita fortuna a todos, não a deusa!

A rigor

A fortuna é a cartola do diabo
Que deus, quando vai à festa,
Gosta de tomar
Emprestado.

p.s.: na imagem, foto de primeira capa da Folha de ontem flagrando o romance inocentemente descabido de dois habituais frequentadores do Parque do Ibirapuera.

May 9, 2007

Despretensioso

Nestes aspectos de trabalho lírico, peso do avesso, com um poema para lá de despretensioso, quase dedicado a uma amiga só, um poema-acalanto. Lembro também que muitos outros amigos fazem grandes sacrifícios em suas vidas de poeta-operário. Lembro, por alto, Isaac, Vinícius, Tággidi, Paulo Vieira, Luís Henrique e André Barbosa. Se tivesse chapéu, ergueria um. Se tivesse talento, versos melhores. Mas se reverencia, quando se deve, com o que pode.

Ao coração dos queridos

muitos dos meus queridos têm andado
com graves problemas do coração

os outros
sentem até por capricho
o desagrado

mas não os meus queridos
eles
sentem na pele de dentro

tenho por vontade quando fracos
guardá-los conchas entre as mãos

massageá-los
revivê-los num beijo
com cuidado

táctil e visceral por eles

aceito todos os meus próximos segundos
até a morte
restrito a ter as duas mãos em guarda

May 8, 2007

A um poeta

"Trabalha e teima, e lima, e sofre e sua", está aí um verso que sempre admirei no "A um poeta" de Olavo Bilac. Não só por seu equilíbrio formal típica e perfeitamente parnasiano, mas também por refletir grandemente o trabalho do poeta em dedicar-se, exaurir-se completamente na linguagem. Também tenho lido uma coletânea de Roberto Piva em que um de seus amigos, com quem já fiz oficina, Cláudio Willer, relata as andaças de Piva pela cidade, a cantar versos, a indicar leituras, a beber, a cair. Disso fico a refletir que talvez o trabalho da poesia e da arte não seja para os tempos atuais. Talvez ele exija uma dedicação que não seja possível. Nos dias em que realmente consigo me dedicar ao ofício, não faço absolutamente mais nada (o que inclui as coisas que gosto) e fico com o gosto resistente de algo faltante. Da postagem de hoje só fica o cansaço que sempre me assolas às segundas e terças. Algumas dores também.

May 3, 2007

Daqueles condensados

Snapshot

um jovem comediante
sul-coreano
entrou na universidade da Virgínia
com seus brinquedos
e matou-se

não antes
de assassinar trinta
e duas pessoas
uma delas
revelação promissora
do time universitário de vôlei
americano

não?

p.s.: pra minha amiga que prefere que eu escreva de mim mesmo a que eu poste poemas...

May 2, 2007

Fôlego

Tenho me arriscado continuamente em poemas que condensam grande matéria discursiva em um, dois versos, no máximo uma estrofe e o título. O processo é completamente estranho, no sentido de estranhamento (ostranenie). Há um certo estímulo que me destitui inteiramente da capacidade verbal cotidiana e deixa-me apartado dela por um tempo. Depois, no momento da escrita, este mesmo estímulo, o da linguagem, arremessa-me de volta com toda a força que pode e talvez fique de longe para ver o estrago. Normalmente me sinto exausto após alguns destes poemas, como se ele já estivesse sendo remoído há tempos em minhas subjetividade. Como uma espécie de volta à superfície, de quando em quando, meus versos se organizam em outra forma de estrondo. Trago uma delas hoje para a opinião. Estas formas valem pra mim como fôlego, a possibilidade do são e do agradável, mesmo que triste. Saudações líricas a todos e muita muita poesia nestes dias de prosa!

Da capo

Não temas a morte, te digo,
Que já estás morto.
Desde antes és morto
E só vagamente te lembram vivo,
Se te declaras. Assim

Também não te ressintas, grave,
De estares só.
De forma análoga, vives sozinho
Desde mínimo habitante
Do ventre obscuro.

E no fundo, triste, quando me olhas,
Tal se a tristeza não existisse
Acompanhada,
Reclamo visivelmente de tua demora
Em aprender.

E agora, criança, que já reconheces
Em ti o outro e a tudo
Ignoras,
Aproxima-te de mim
E vem conhecer a tristeza.

Apr 28, 2007

A obrigatoriedade de companhia dos ecos

Estou às voltas com essa reflexão banal do ato artístico reverberado por afinidade, rejeição ou indiferença (aceito sugestões taxonômicas). Tornei-me eco despropositadamente de um filme de Buñuel chamado "Abismos de Pasión", este, por sua vez, eco de "O morro dos ventos uivantes", de Emily Brontë. Vejam, começo a ver o filme e logo na segunda cena dou de cara com uma aproximação de umas das cenas do início do filme que estou escrevendo, além de uma personagem bem próxima da que imaginara para Patrícia, a governanta do meu filme. Isso resvala um pensamento que tenho já há algum tempo: será que existe algum "artístico" natural de obra considerada de arte e, por mais que haja vairações significativas em suas construções, sempre há um residual por onde ela se identificam? Ou será que é simplesmente uma falta de originalidade por parte das pessoas que se dedicam a fazer arte e elas, na verdade, passam a história reiterando acerca dos mesmos temas com as mesmas formas? Por favor, artistas, me ajudem nesta resposta... Por exemplo, do poema de Góngora transcrito na última postagem fiz um poema, mais brincadeira do que poema, quando cursava uma disciplina na Unicamp que se debruçou um pouco sua obra. Até que ponto se pode notar alguma semelhança entre eles? Definitivamente os espanhóis têm rodado significativamente minha produção artística.

Eco

sempre
que sua avó curtia um cochilo
mais longo
luisinho
assim que a velha
abria os olhos
dizia vó
passou um ano

quando
esta se reunia com as amigas
estou para completar mil
quinhentos e sessenta
e um anos
aos sábados

e uma hora
rastejava
à cozinha
em busca do chá
aquelas riam baixo
que a coitada
andava variano

Apr 27, 2007

Eco

Em silêncio à maestria clássica de Góngora, hoje só ecôo o blog de uma amiga, amiga de alma, amiga das letras. Leiam o poema em silêncio, que é mais fundo!

De la brevedad engañosa de la vida

Menos solicitó veloz saeta
destinada señal, que mordió aguda;
agonal carro por la arena muda
no coronó con más silencio meta,

que presurosa corre, que secreta,
a su fin nuestra edad. A quien lo duda,
fiera que sea de razón desnuda,
cada Sol repetido es un cometa.

¿Confiésalo Cartago, y tú lo ignoras?
Peligro corres, Licio, si porfías
en seguir sombras y abrazar engaños.

Mal te perdonarán a ti las horas:
las horas que limando están los días,
los días que royendo están los años.

(Góngora)

Apr 26, 2007

Cinco horas


Cinco horas! Cinco horas! Este é o tempo que tenho dormido... Após descobrir que as dezoito de que antes desfrutava já não eram suficientes para as tarefas a que me propunha, decidi por extender em uma hora o meu tempo de vigília. Os choques pelo corpo pararam, espero que bom sinal. Ou meu organismo acostumou-se com este ritmo mais intenso, o que vou achar ótimo, ou já desistiu de avisar que as coisas estão indo para ou pelo ralo. Não importa! Importa a produção imediata, o poema, o conto, a música, o filme, o musical, a ode. Já que preciso do trabalho para subisidiar parte significativa da divulgação de minha arte, não posso ficar desempregado neste momento. Em uma espécie de Carpe Diem sinistro, pretendo extrair de cada átimo o pouco de lírico que me faz ansiar ardorosamente o átimo seguinte. Fico por testamento a quem se incumbir de continuar levando a pedra para cima do monte.

p.s.: quem puder conferir o trecho de "Ulisses" em que Bloom começa a delirar dentro do que parece ser um puteiro (em torno da página 490), faço-o, o excerto merece a leitura. Mais especificamente, o trecho em que seus pais aparecem. Se entendi bem, hilariante.

Apr 25, 2007

Quando não há aniversário

Como já notei que recebo mais comentários quando posto poemas, contos ou letras de música, do que quando faço qualquer comentário sobre alguma coisa, decido por hoje postar novamente um poema que estará no "Poemas lançados fora", lançado em julho. Mais uma vez, deploro o fato de não conseguir reproduzir a forma do poema no formato disponibilizado pelo blog. No mais, a vida continua sem grandes motivações e muito cansaço. Sigo trabalhando, de um modo geral, das sete à uma da manhã, em ofícios de naturezas muito díspares. No fim, acabei por não conseguir restringir-me à postagem de meus escritos, sem fazer qualquer aparte pessimista quanto aos fatos. Perdoem-me os que já leram este poema. Fico eu, seguem os versos.

Quando não há aniversário

em dias de tristeza
não se faz aniversário
as velas queimam cerejas

o tempo áspero trapo
arrasta no espaço buracos
miasmas lábios do avesso

destino enviesado
range demora e se chega
não há quem fomente o azo

batendo palmas
há o enfado do atraso
que não é seqüência nem pausa

não é calma nem pressa
um sopro do desabafo
que infesta se as velas vazam

Apr 23, 2007

Um e o tempo

Hoje dou um pequeno tempo nas postagens criativas para preencher este blog de divagações. Agradeço antes as muitas postagens sensíveis, brilhantes, solícitas e gratas que tenho recebido. Dani, Tati, Tá(s), Kah, Anne e agora o poeta Isaac, além de outros mais esporádicos, mas não orbitais, vocês são e serão sempre bem-vindos por estas linhas ébrias.

Acabo de ter a primeira reunião de um novo projeto, um longa-metragem. Veio de ímpeto e já são vinte páginas escritas. Reuni-me hoje com o possivelmente futuro diretor e co-roteirista para ele ler e acabamos por discutir algumas questões periféricas e uma ou outra questão mais central. Ele gostou bastante das idéias, do ritmo, dos argumentos, de algumas das cenas, o que fez com que eu, de cara, já ficasse também bastante mais empolgado.

Assim que ele saiu, voltei, efetuei as correções que julguei necessárias no roteiro e empolgadamente retomei a escrita por uma cena que considero estrutural para o longa: o momento em que pela primeira vez começa a aparecer algum clima entre os dois protagonistas. Daqui parte a reflexão desta postagem. Como é difícil escrever sobre o desconcerto, a palavra errada, o constrangimento, o estranho. Ainda mais difícil por estar vivendo no momento algo semelhante, com a diferença de eu estar absolutamente desconfiado de qualquer tipo de aproximação feminina. Ia tomar-me de exemplo e simplesmente realizar uma sinédoque entre o que vivo e o roteiro, contudo, minha recusa à aproximação fez com que não me pudesse usar de modelo. Então usei o brilhantismo e as colocações da misteriosa senhorita para compor minha personagem e tentei imaginar que falas eu usaria caso também começasse a despontar em mim algum interesse. Esperada e impressionantemente, as falas da protagonista ficaram muito mais convincentes do que a do sr. Moraes (nome do protagonista do filme), que sempre soavam deslocadas ou impertinentes.

No fim, só consegui um diálogo ponderado quando utilizei a misteriosa senhorita como base para as duas personagens e abdiquei do direito de posar indiretamente em minha história. Das duas uma, ou a agudeza desta senhorita (que realmente é bastante singular) é suficiente para compor razoavelmente as duas personangens, ou sou de fato uma personagem gasta e deslocada quando se trata de qualquer história de amor.

Montéquio de carteirinha, acredito nesta última! Uma terça-feira lírica a todos os poetas de alma que freqüentam este blog.

Apr 19, 2007

Sem comentários

Sem comentários que o dia não está para isso. Somente o lírico pode ancorar algo de razoável no deslíneo da paisagem.

Monte de água

todo monte de água
é feito de lâminas
maleáveis
finas e sobrepostas

pode cair o que for
leve ou pesado na água
que foge só gota de espelho
sólida
e resta o espelho de baixo

por isso que a pedra rola na superfície da água
e afunda

de dentro o monte de água
é feito de inúmeras
lentes
falhas e retorcidas

pode-se olhar do fundo
com o desejo que for
que o seco sempre vem turvo
sólido
sempre com as quinas trocadas

por isso que a pedra rola na superfície da água
e afunda

Apr 18, 2007

A polêmica se as mulheres amam

Hoje posto novamente uma letra de música. Versa razoavelmente sobre a polêmica gerada da afirmativa que as mulheres não amam. Para quem quiser, novamente, só mandar um pedido (com o e-mail, se eu não o tiver, que eu mando a gravação já feita. Um dia de muita poesia a todos.

Pas-de-Dieu

Letra e melodia: Carlos Augusto Bonifácio Leite

Por que se enganar que me amava?
Por que trazer verdades para mim?
Por fim, tive de ser, “muito obrigada”
A sorrir por piedade e de maneira natural.
Por que precipitar se há tanto tempo?
Por que florir os erros de jasmins?
No nosso entrelace há tanto espaço pro temor,
Mas vai se desatar...
E ser assim.

É que eu sou bailarina do municipal do amor,
Sempre acostumada às purpurinas.
E quando se é precisa, se preciso for,
Qualquer peso no corpo desalinha!
Por isso não decida apertar-me, por favor,
Tanto só desfaz a sapatilha
De vagar, se todos correm, de poder se contrapor,
De dançar ao Deus dará por essa vida.

Por que virar o rosto? Não me esconda.
Por que ser fugidio? Ai de mim!
Enfim, não sou tão má quanto parece,
Um dia então se esquece e amará de novo e igual...
Por que me desejar, se sou de sonhos,
Que nunca são reais e encontram o fim?
Talvez você mereça que aconteça algo melhor,
Talvez tal não exista
E seja assim.

É que eu sou colombina, feriado desse amor,
Sempre acostumada às serpentinas.
E quando a alegoria toda vai se recompor
Qualquer traço no rosto descortina.
Não roube dos meus passos o divino, o esplendor
De poder atravessar a harmonia,
De morar, se todos mudam, de gostar do desamor,
De ver que a felicidade é só rotina.

Apr 17, 2007

Stanislau e Mivânia

Hoje posto duas vezes, de duas naturezas. Em homenagem aos meus queridíssimos visitantes, posto por aqui um conto que fiz ainda nos tempos de faculdade (fui contista tardiamente), mas pelo qual tenho uma grande afeição. Um amigo meu, na oportunidade em que lhe mostrei a história, chorou copiosamente, o que me traz lembranças emocionadas até hoje. Versa, ainda que confuso, sobre a natureza do amor e seus confusos atributos. Em homenagem aos meus companheiros de escritos, dentre estes considero quase todos os atuais visitantes, mesmo que digam o contrário, posto no Blog Presença (link ao lado direito), sobre a natureza da inacessível alma dos sensíveis. Agradeço mais uma vez a um dos moderadores deste belíssimo trabalho carioca, o Isaac, por me incluir dentre seus autores e gostaria de aconselhar aos meus seletos leitores, sempre que possam, em dar uma visita a esta iniciativa necessária. Muita poesia a todos nesta semana imensa que se inicia.

Stanislau e Mivânia

Imaginar uma mulher tão bela quanto Mivânia era impossível para Stanislau, que sempre a teve como instância suprema do esforço divino (ou maior peripécia do Diabo). Sempre não, desde que a viu aos doze anos incompletos para ambos, tornou-se outro (como se não nos tornássemos outro a todo tempo), de posse do segredo (se para os segredos há posse), único que o sabe (se a individualidade não invalidasse a condição de notícia compartilhada que compõe os segredos) e relativamente feliz, o que é bom. Importante é que os cachos perfeitos, casualmente equilibrados na região acima da nuca de Mivânia, ditaram-lhe em diante as normas de conduta, de julgamento, de sanidade e do resto, depois que haviam se visto (cabe notar que talvez só Stanislau a tivesse percebido, sem reciprocidade).
Poderia pensar, você, pouco, leitor, que se trata mais uma vez de amor unilateral, gasto e popular, mas garanto-lhe que Mivânia também sofria de grande predileção pelo jovem Stanislau. De fato um pouco mais tarde, aos vinte e cinco anos, ela admirou a figura do jornalista (ele se tornara um por saber que ela comprava jornal toda manhã, não sabia que era para o pai) rico (por saber que toda mulher gosta de um homem rico, nem que seja para demonstrar cavalheirismo ao pagar as contas. Mais pelo gesto, menos pela grana.) que a abordou no balcão de um dos bares do centro de Campinas. Chega de parênteses.
Saíram, se não me engano, umas quatro vezes até começarem a falar em relacionamento sério, em compartilhar os pequenos objetos, não os menores. Não sei se por limitação minha ou sua, sinto-me obrigado a dar-lhe outra explicação: Mivânia não tinha esse oportunismo que você lhe aventa afobadamente. Ela era, sim, uma mulher comum, um pouco medrosa, que se fazia forte aos outros, principalmente aos homens, mas à noite chorava sozinha no quarto que, por mais que pensasse seu, era propriedade inevitável da instituição bancária que emprestara há alguns anos a sua família. Explico-lhe ainda porque pensa dessa forma. Se você, meu leitor, é mulher, afirmo-lhe que as desculpas são absolutamente necessárias para conviver com as outras partes de você que conhece menos. Não há nada de mal em pensar que as mulheres amam, mas essa não é das verdades mais críveis do mundo. Se você, meu leitor, é homem, o sentimentalismo que tanto o acompanha e completa-lhe de um charme sinatriano freqüentemente enublina os fatos que constroem o real e você tende achá-los ligeiramente mais bonitos, quase decifráveis, e também não lhe fará mal ser assim até os sete palmos e meio. Última ajuda: sou narrador e narrador não é homem nem mulher. Estranho, mas oportuno. Vamos, enfim, à história.
Há seis dias Stanislau foi internado com uma dor de barriga aguda e fora de hora. Há cinco, escreveu uma longa carta à Mivânia da qual só temos as últimas linhas que se apresentam: “A morte não bastará para nos separarmos, senão para nos unirmos na única alma (ele escreveu lama, mas corrigimos) que sempre fomos. A ti, o meu amor eterno, Lauzinho”. Há quatro noites, com Mivânia à cabeceira, Stanislau morreu de um oportuno câncer no apêndice. Antes do fim de semana, muitos deixaram o cemitério comentando como foi maravilhosa a cerimônia e como a namorada realmente gostava do finado. Antes de ontem, Mivânia preparou minuciosamente a corda em torno do ventilador de teto (quisera o mais caro na época da compra por já ter pensado em suicídio outras vezes) e despencou deixando cair um certo papel amassado. Na tarde de Domingo, seus pais retornaram de Ubatuba e encontraram o bilhete e o corpo (ordem explicada pela baixa estatura de sua mãe): “Que o amor dos defuntos vá a merda” (sem crase). Penso “são oito e vinte da noite” em como é intrigante atinar para o fato de que nem mesmo os amores perfeitos sobrevivem aos dias de hoje.

Apr 13, 2007

Alçadas

Uma das poucas coisas maravilhosas em achar que faço arte é a surpresa guardada quando publicamos ou apresentamos uma obra específica.A interpretação por parte do público acrescenta muitas das partes faltantes presentes no momento de criação. Ainda estranhamente maravilhoso é o fato de que muitas destas partes explicam o autor como indivíduo, trazem à tona lembranças sublimadas, remontam a estilos já abandonados por ele e realmente tornam as relações de sentido presentes na obra muito mais significativas. Esta semana, por exemplo, uma grande amiga utilizou um de meus poemas do "Sintaxe..." (O maior arranjo do mundo) para, paralelamente a um soneto de Camões, discutir com seus alunos o assunto "forma e conteúdo". Um deles, ao ser questionado sobre o que via em meu poema, disse que via (aspas não presenciais) "uma seta para baixo, como se o cara estivesse cada vez mais indo para baixo". Quando o fiz, acrescentei algumas camadas de interpretação, mas não esta. Impressionante como aquele aluno, através de seu tesouro pessoal de experiências, mediante seu espírito (sentido clássico), foi capaz de propor uma interpretação totalmente válida e pessoal. Como eu poderia estar mais maravilhado com a experiência humana de interpretação!? Ah sim, por que este assunto? Por causa do poema "H". As motivações do momento de criação foram tão diferentes da maioria das respostas que tenho do poema que cada vez gosto mais do poema e mais tenho razoáveis certezas de sua eficácia como multiplicador de sentidos, como acrecentador de percepções, cerceando o sutil do real. Espero que não desistam de tecer suas outras verdades ocultas na muticidade da letra agá. Deixo meu poema do arranjo (com a ressalva da forma não poder ser recuperada por limitações bloguianas) a título de ilustração.

O maior arranjo do mundo

Quando não tinha mais nada o que fazer, tomou todas as flores do mundo
e deu a ela. Certo que não lhe cabiam nos abraços cada begônia, lys,
bromélia, rosa, todas as outras vis. Ela soube ganhar o presente.
Retribuiu com beijo breve de mil gametas, fecundado, leve.
Este floresceu no peito infértil do jovem a tarde inteira
e só a noite pôde acalmar o unímpeto da semente.
No dia seguinte, logo de manhã, foi somente
esperando marcar a data que entrariam
no primeiro concurso. Só ela tinha
flores, afinal. Mas encontrou,
no mesmo arranjo: beijo,
outro homem, ela; e
desfez-se baixo,
muito baixo
como a
péta-
la.


P.S.1: É relamente um afago ter este bom número de visitas e, principalmente, comentários. Anne e Kah, já mandei a música.
P.S.2: Uma das partes feitas, vendi o carro.

Apr 12, 2007

Fornecedor

Descobri hoje, quase "en passant" (existe alguma tradução para isso "en portugais"?), que sou o único fornecedor de leituras não-acadêmicas a uma amiga. Falei disto ontem no trabalho, bancário, sobre esta obrigação da arte que estou decidindo se acredito ou não. Enquanto isso, obedeço.

H

No princípio, todas as palavras vinham com agá
Antes.
Certo dia, por não se saberem úteis,
Resolveram deixar a empresa.

Como sempre há fura-greves
E dedos-duros (embora estes não se encaixem na contenda,
o que em nada impede posarem de figurantes)
Ficou o agá de hoje, de há, de halo,
De hipogrifo.
Dinorah, faceira que só ela,
Ora tem, ora não tem
O pensado,
Mas não dito.

Se bem que,
No caso de Dinorá,
O agá não é de princípio.

p.s.: Este poema vai estar em "Poemas lançados fora", livro que lanço em junho ou julho deste ano pela 7Letras, do Rio.

Apr 9, 2007

Paraleta


Nunca havia postado letra de música, mas esta, modestamente, acho um brinco. Busquei, na melodia, fundir o aspecto imprevisto do vôo das borboletas que encontrava lá no sítio de meu avô, em Minas. A quem interessar, comente com e-mail, que mando a música. A tela ao lado, esta sim arte verídica, é de uma amiga, também um brinco. A postagem de hoje é à moda das mulheres que usam brincos aos pares.

Paraleta
Guto Leite & Thiago Lourenço

Borboleta, Leta. Pano colorido.
Quando se imagina que ela pára,
Surpreende as luzes, pára-
raios refletidos.
Por onde que voa a borboleta? Não tá.

Borboleta, inseto de asas, corrompido,
Vai por cada quarto até que pára.
Morta de cansaço, para-
lítica do espaço.
Quem ela caçoa, a borboleta? Não tá.

Borboleta, dança, faz, borboleteia.
Sabe quando segue e quando pára.
Ela se penteia ao para-
peito perigoso.
Ama, cansa e odeia a borboleta. Não tá.

Borba, borboleta, qual sua palavra,
Vale um bom tesouro quando pára.
Nada quando voa, para-
quedas, ventania.
Ergue, saia sem a borboleta. Não tá.

Borboleta, vaca, dei todas as flores.
E o único pedido ou ordem “Pára!”.
Não há mais sentido. Pará-
Frase: não se doe,
Que eu te reencasulo, borboleta. Não tá.

Borboleta, nada
Muda nesse mundo.
Lembro o teu gemido à faca “Pára...”.
Pálpebras rasgadas, para-
pluie que não protege
Das noites vermelhas, borboleta.
Não tá.

Apr 8, 2007

Dicotomias

Apesar do termo desde Derrida ser tido como ultrapassado, valho-me dele para descrever minha atual situação. Sinceramente. Não sei como as pessoas que já fizeram isso antes de mim conseguiam. Viver parte de suas vidas num trabalho sério, absolutamente distante do real trabalho, de alcova, aproximando-se dos limites do verbo, das imagens. Sinto-me excessivamente extenuado de ambas as coisas. Ontem, por exemplo, dormi no meio da tarde para acordar às 23h, terrivelmente cansado. Tenho escrito muito, composto ainda mais, poemas, roteiros, contos, lido muito também, e nos dias de semana (acho essa expressão desprezível, por sinal) reservo-me em seis horas para emprestar dinheiro, saber de juros e as demais desimportâncias. Dar aulas, revisar textos, ir para Campinas, embora para Pasárgada, Suíça... aceito sinceras orientações sobre o meu destino e auxílio. Passou pela minha cabeça matar-me esta semana. Se conseguir vender o carro, arrumar coragem e orientar os projetos do cd e do livro, aviso. Deixo por hora um pequeno poema de um pequeno autor.

Rapunzel

daqui de onde vejo
teu corpo de quina
s
suavizadas
parece o lençol que veste a cama
uma continuação do teu vestido

Rapunzel das avessas
longos os instantes
estão
se todos contigo

busco doente de cama
ardentemente
pelos
deslumbramentos
mais vadios do eterno

a permanência baixa
no rosto dos teus panos


p.s.: jamais me levem a sério.