Ironia Graduada
Sempre ouvi dos meus amigos pós-graduandos – e eles configuram uma boa parte dos meus amigos, visto minha trajetória conturbada e inapetência formal para passar em seleções de mestrado – a objeção de que o tempo é escasso demais para a feitura de uma dissertação a contento. Agora que estou do lado de cá da fronteira, ou entre uma fronteira e outra(s), posso verificar por mim mesmo e assinar embaixo da fala de todos, com uma única ressalva. O discurso “o tempo é insuficiente para se fazer uma boa dissertação de mestrado” me parece ser uma espécie de mantra catártico e institucional para amenizar a culpa de sua veracidade.
Na UFRGS, por exemplo, fazemos 24 créditos obrigatórios, preferivelmente concentrados no primeiro ano, o que equivale a um número de 6 a 8 matérias (no meu caso, por conta da colocação no processo seletivo, mais um estágio de docência no primeiro semestre do ano que vem). Supondo que, hipoteticamente, cada uma das 3 ou 4 matérias do primeiro semestre exija semanalmente um texto teórico de 40 páginas, temos por média 140 páginas por semana de leitura, mais as 12 horas dedicadas in praesentia. Uma semana tem, “por definição”, 168 horas, das quais, por prescrição médica (não o meu caso, claro, que sofro de insônia crônica), passamos 56 horas dormindo, ao que nos restam 112 horas de vigília. Já tirando as doze horas de aula presencial, 100 horas, este é o nosso tempo hábil. Aproveito para subtrair na conta, bem por baixo, uma hora por dia para refeições (somando todas, claro) e uma hora para chegar e sair da universidade, no meu caso, em três dias: 90 horas restantes. Cento e quarenta páginas em noventa horas. No quadro hipotético de vivermos para o mestrado, é tempo que dá e sobra.
Contudo, supondo que um ou dois dos nossos professores hipotéticos se empolgue com sua disciplina e, por exemplo, proponha a leitura de um romance de 312 páginas em língua estrangeira de uma aula para outra, ou uma coleção de trechos de história literárias que totalize também umas 300 páginas. Assim, nosso número inicial de 140 páginas por média, subiria para algo em torno de 600 páginas, nas mesmas 90 horas previamente calculadas como “disponíveis”. Bom, quem não lê sete páginas e meia por hora? Ainda absolutamente razoável... Opa, mas ainda temos as leituras do nosso projeto, motivo, aliás, pelo qual voluntariamente dedicamos nosso tempo na universidade. Quantas páginas devemos ler semanalmente para nosso projeto? Cem? Duzentas? Arbitrariamente, escolho esta última alternativa (porque certamente é mais do que isso) para figurar em nossa equação, somando agora 800 páginas por semana. Em noventa horas, temos ainda a aceitável média de quase nove páginas por hora, façanha absolutamente dentro de nossas capacidades.
Embora eu reconheça que toda a conta apresentada tenha sido toscamente realizada e seja, até, tendenciosa (sim, embora o Humano não seja grande coisa no mundo de hoje, eu estudo Ciências Humanas e não Exatas), o número obtido não escapa em muito das minhas contas pessoais. Para o mestrado, contabilizei até o momento algo em torno de 3000 páginas lidas nestas quatro primeiras semanas de estudo, o que não deveria causar surpresa ou admiração, visto que já demonstramos ser uma empreitada totalmente possível. Entretanto, eu estudo canto, diariamente, uma horinha, e também violão, a mesma quantia de tempo. Sabe como é, tenho aptidão para compor, e canto numa banda excelente em São Paulo... Sinto vergonha muitas vezes quando me reconheço, em erros de execução, menos capaz como músico do que os músicos que tocam comigo e tento suprir isso com estudos. 76 horas. Também tenho este blog. Sabe como é, escrevo e, como João Cabral, acredito no exercício diário da “pena”. Dedico, então, uma hora por dia para um (postando ou visitando blogs interessantes), outra hora por dia para outro. 62 horas. Também estudo inglês e francês para ajudar na leitura dos textos acadêmicos, salvo aos domingos, quando antes estudava a língua dos anjos, mas hoje recupero o trabalho semanal, uma hora por dia, alternadamente. 56horas. Ufa! Graças a Deus não vou ao teatro, ao cinema, não tenho amigos freqüentes em Porto Alegre, não me divirto, nem me dedico a buscar felicidade, porque daí consigo manter esta belíssima média de 15 páginas por hora que tanto me deixa no controle das rédeas do mestrado. Tá bom, tá bom, também tenho minhas leituras pessoais, mas uso de integridade (momentânea) para tirá-las da conta e assumir por elas meu dolo e minhas vontades.
Retorne ao primeiro parágrafo desta crônica, eu espero... De quem é a culpa deste quadro? Minha, primeiramente, por somar ao mestrado outras atividades. Da Academia, por não escolher um programa mais razoável, por exemplo, de 12 créditos e o restante em horas de orientação (vale dizer que não é mérito só da UFRGS, já que também falam a respeito meus amigos da Unicamp e da USP). Dos professores hipotéticos, que se animam demais com seus projetos de estudos, sobrepujando a vontade e os projetos dos alunos com suas ambições epistemológicas. Da cultura e/ou natureza, que provavelmente impediria que um modelo centrado na responsabilidade do aluno seja adotado, com manutenção de alguma excelência acadêmica.
Não leia todos os textos propostos, ora, espera-se dos alunos esta “maturidade” – dirão alguns. Concordo, mas não posso. Vai que a minha reflexão faltante sobre o assunto esteja justamente naquela página desprezada por minha pressa medíocre. Preciso acreditar que os professores propõem as leituras mais relevantes sobre o tema. Compulsão? Obsessão? Pau-mandado dos reconhecimentos dos pais projetados numa vida adulta? Que entrem em reunião meus analistas hipotéticos, enquanto meus professores hipotéticos gastam um domingo de sol na elaboração de seus programas.
Apr 20, 2009
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3 comments:
Ok, conseguiu me deprimir. Agora eu é que vou recorrer a terapias hipotéticas para tentar me livrar do substancial acúmulo de culpa na minha já tão remendada consciência...Pelo menos já me livrei da culpa de ter comido meio pacote de biscoitos recheados com leite condensado ontem. :p
Cacete.
Tô um pouco pasmo.
Hm...
Vou voltar aqui pro TCC que eu parei pra dar um rolê pelos blogs (e me deparo com isso, vê só).
Caramba.
Manda ver.
Bom você esqueceu de tirar das suas contas sexo, escovar os dentes, tomar banho... tipo, ou vc cheira bem e é limpinho ou faz mestrado.
Isso tudo considerando que você nõa tenha uma jornada de 40 horas por semana de trabalho, que ai meu amigo suas horas de sono serão menos de 20 por semana.
Mas... voc6e sobreviverá e frá a contento. Relaxe.
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