Jun 29, 2008

Livro novo no forno

Ontem vivi uma noite estranha. Após as oito horas de aula da especialização, em vez do costumeiro cansaço, cheguei em casa na pressa de organizar o novo projeto. Tive a idéia durante as aulas. Em "aperitivos & sobremesas", misturarei poemas mais ligados à tradição com alguns mais usados. Também decidi por dividir o livro em subtítulos segundo um cerimonial de jantar - um pouco à mineira - sem, obviamente, o prato principal, que o título apaga. O resultado foi que passei quatro horas e já tenho cerca de 80% do livro terminado. Ao menos o primeiro fim, que costuma andar bem distante do último. Como são todos os primeiros fins, de suas contrapartes maiores. A noite, da morte. Os olhos, do beijo. Calei uma série de metonímias.

o rio

nunca gostei de dois
sou um

corpo
baixo
fraco

larguei o catecismo nos estudos da trindade
a tudo que me juntei
coisa gente ou lugar
veio a morte
uma

depois da idade restar-me
senhor absoluto
vi minha neta apontar o córrego
e fazer barulho de s

s
s

abri um sorriso açude

que falta faria às coisas
o consolo de haver mais uma

ói vô
o rio

o sorriso seria o rio


("aperitivos & sobremesas", em "pães de queijo com manteiga", Guto Leite, não editado)

Jun 27, 2008

Apresentação do Júlio César



Apesar de um monte de assuntos supostamente mais importantes, depois destes muitos e saudosos dias de distância, prefiro postar o despretensioso personagem que criei com um amigo e só agora ele teve a idéia de batermos fotos e mantermos versões eletrônicas de nossa brincadeira. Espero que gostem da maladrangem sabotada e cítrica do nosso personagem. Muita arte a todos neste fim de sexta! Que haja todo o artifício para dar gosto à vida!

Jun 17, 2008

Preto-e-branco


Quem deseja somente a leitura lírica, sem o esbravejo, pode pular os parágrafos abaixo.

Se tem algo que me tira totalmente do sério é racismo. Não digo o racismo em pidas. Fazem piada de tudo, ajuda a lidar com o medo e com a culpa: não procuro pêlo em ovo, nem tiro, se o encontro. Também não me refiro ao racismo em expressões usuais. Se "escurecer o conceito" é racismo, "deu um branco" também é. Falo sobre o racismo em silêncio, no ceder espaço na rua, nos olhos de soslaio, na piedade (meu Deus, quanto racismo há na piedade!) na difenciação de um ser humano pra outro pela diferença de pele. Chego a preferir tristemente o jovem que diz a expressão nojenta "coisa de preto" ao velho que olha por cima dos óculos curtos e resmunga.

É estrondoso pensar que só nos demos conta (nós, aqui, a raça branca) após a eugenia nazista. Ou seja, foi preciso surgir um louco que elevou o tom do discurso da maioria, que inclusive o elegeu, inicialmente, e fez uma das maiores barbaridades do século passado, para que nós (aqui como lá) começássemos a refletir a respeito. E grande parte de nós ainda continua pensando a respeito. Posto o poema abaixo, feito nessa semana, em homenagem ao meu avô paterno, homem bonito!

Preto-e-branco

os velhos nunca posam com orgulho
menos os velhos pretos

com suas vestes preservadas
suas tabuletas de preço
seus tecidos coloridos
seus olhos sujos de ferro
com chapéus expatriados
dando contorno à cabeça

as cerâmicas cor da pele
quando espatifam se enterram

os jovens pretos que posam
com o medo branco dos velhos

p.s.: desculpem-me os mais sensíveis pela charge, também me embrulha o estômago.
p.s.2: após esse descarrego, viajo por dez dias, a um festival e a Sampa. Devo me afastar um tanto deste espaço. Muita arte a todos que o dividem comigo!

Jun 14, 2008

Um poema porto-alegrense (dois)

Versão "definitiva":
O porto

minha cidade é o arquipélago
que surge do estuário
− digo minha por preguiça −
do fósforo gasto da usina
ao frio agarrado aos morros
minha ilha se estende

se acaso singro o quadrante
milha além dessas linhas
naufrago na polidez
se salvo preso aos escombros
da ilha antagônica
sofro as correntes marítimas

ser estrangeiro é esperar pela praia


Piá

minha cidade é o arquipélago
que surge do estuário
− digo minha por preguiça −
do fósforo gasto da usina
ao frio agarrado aos morros
minha ilha se estende

se acaso singro o contorno
um tanto além dessas linhas
naufrago na polidez
se salvo preso aos escombros
da ilha antagônica
sofro as correntes marítimas

ser estrangeiro é esperar pela praia

Jun 12, 2008

O Dia de Valentino

Em homenagem ao Dia de Valentino (que obviamente acho uma estupidez, mas me reconheço minoria), posto dois poemas do "Poemas Lançados Fora" (7Letras, 2007). Gosto bastante do primeiro deles por um motivo bem simples: tem dias que o acho completo, tem dias que o acho medíocre. Nessa oscilação de algo posto reside uma graça que me encanta. Um bom Dia de Valentino a todos que discordam de mim! (post scriptum antes: o blog não me permite reproduzir a forma exata dos poemas, sugere "O maior arranjo do mundo" e mutila "Os botões da rua Augusta")


O maior arranjo do mundo

Quando não tinha mais nada o que fazer, tomou todas as flores do mundo
e deu a ela. Certo que não lhe cabiam nos abraços cada begônia, lys,
bromélia, rosa, todas as outras vis. Ela soube ganhar o presente.
Retribuiu num beijo breve de mil gametas, fecundado, leve.
Este floresceu no peito infértil do jovem a tarde inteira
e só a noite pôde acalmar o unímpeto da semente.
No dia seguinte, logo de manhã, foi somente
esperando marcar a data que entrariam
no primeiro concurso. Só ela tinha
flores, afinal. Mas encontrou,
no mesmo arranjo: beijo,
outro homem, ela; e
desfez-se baixo,
muito baixo
como a
péta-
la.


Os botões da rua Augusta

por favor querida
afrouxe um pouco esses botões de madrepérola
que trouxe da rua Augusta

busquei-os nos mais profundos segredos
nas botas das damas
no negócio estupendo que se faz do engano
e da esperança
nas trapaças lançadas em mini-palanques de bigodes
nos rabos de olho nas portas fechadas à corrente
no imóvel decrépito que anuncia chiquinhas gonzagas
como última novidade

é que no começo pareciam tão adequadas
depois sobravam apertavam destoavam
numa duração excessiva para abotoaduras
acho que passei a dar-lhes importância
a aventar-lhes o eterno, o meu eterno
achei lúdicas dentro da caixa
quase inofensivas
sur-
presas
mas pandoramente fiz-me infantil para brincá-las
e desjeito
-me braços em como pedir-lhe

desculpas querida
se a incomodo com detalhes tão pequenos
que trouxe da rua Augusta

Jun 10, 2008

Um conto pequeno sobre elogios

Visto que se instaurou uma pequena polêmica sobre dar e receber elogios, posto este pequeno conto, sem grandes pretensões de dirimi-la, nem sequer respondê-la, pelo contrário, para miltiplicar os pensamentos sobre. Abraços e versos a todos!

O elogio dele mesmo

Ele era bom, evidentemente. Começou a entender as palavras aos três anos de idade, fez a primeira greve aos oito, a primeira canção, aos dez. Com quinze, consumiu cada obra relevante de Machado. Aos dezoito, publicou seu primeiro livro de versos, feito nos dois anos anteriores. Entrou na USP, entre os primeiros, para estudar a decadência latina de Petrônio. Não teve um mestre que deixasse de sorrir às suas questões desconfortáveis.

Formou-se com júbilo e amargurado. Publicou novamente um livro de fábulas que maliciosamente dizia esquecidas pelos irmãos Andersen. Emendou um mestrado que – arrisco – versa sobre o capítulo quarto da obra de Huysmans. Ao cabo de doze meses, uma gestação de baleia, sua pesquisa foi recomendada em sorrisos para que virasse obra. Recusou com o receio de manchar certa memória simbolista.

À altura desse tempo, começou a considerar que já merecia elogios. Não que aqueles gestos relativamente explícitos escapassem a seu espírito perspicaz, mas por achar que as loas consistiam no passo imediatamente anterior a viver de seus escritos e não fazer mais nada. Que fosse dos pais, esquecidos no interior de Santa Catarina. Que fosse dos velhos mestres, com os quais ainda trocava e-mails esporádicos. Dos amigos, sempre ressabiados por lidar com alguém melhor. Quem sabe dos leitores, que o liam e raspavam o indicador com a cabeça.

Num estertor grave e agudo, publicou há alguns meses um livro intitulado Pensamentos: as ruínas da razão e a intuição como chave de saída pós-moderna. Desde então, tem recebido elogios constantemente. Por acenos, por cartas, por e-mail, por blog, por presentes. Os versos antigos se tornaram grandes, esboços de um gênio. Nas canções, nota-se a clara influência de Chico, de Noel e de Beethoven. Suas pesquisas proliferaram nas academias como uma cultura de fungos. Todos se calavam muito toda vez que falava.

Acabo de vir de seu enterro, uma balbúrdia. Não sei do que morreu. Durante a noite, à medida que esfriava, ou acabavam os salgadinhos, ou os salgadinhos esfriavam, a multidão se resumiu a um único homem de grandes óculos high-tech plantado à beira do corpo e os parentes mais velhos escorados às cadeiras. Esgueirei-me em entrepostos com a vontade de permanecer um pouco ao lado do morto. “Esse merecia um elogio”, murmuraram os óculos, com um palito na boca. Não respondi, absorto. “Um elogio”, repetiu, ainda mais sinistro. “O quê? Quem?”, retorno cataléptico. “Um elogio, dele, dele mesmo”.

Jun 7, 2008

Segredinho

Sou péssimo guardador de segredos. Não me contem nada! Até consigo, com muito esforço, sobretudo quando não me pertencem, guardar alguns. Sendo meus, no entanto, logo estão cientes dois, cinco, dez, vinte, que são o número de amigos que tenho, também meu número de leitores. Embora eu seja um pouco mineiro, não se trata aqui de um mexerico de postigo, mas sim de crenças mais profundas, que envolvem ethos, persona, íntimo, entre outras coisas que não vêm ao caso.

O caso é que, enquanto preparo aquele livro "burguesinho" que comentei posts atrás, também faço outro, mais a meu gosto, com poemas-tapas, poemas-lágrimas, poemas-de-sumir. São frutos, normalmente, de uma longa ruminação interna, às vezes durante semanas, minto, dias, e têm geralmente um, dois, três, quatro versos, se ode. Partem de três pressupostos: o conceito de "obra aberta" de Umberto Eco, a crença de que se é possível condensar as nuances de um poema em alguns versos e o título e a decepcção de considerar que estamos hoje distantes demais da arte poética e que, por isso, é preciso que tomemos contato com algumas obviedades líricas.

Pilhérias à parte, espero que gostem do meu segredo, que encontrem nele elementos para a catarse, que critiquem, obviamente, e, se muito generosos, ao fim, os declarem poemas.


O que é natural a um corpo

as horas são fundas
o tempo é raso
a vida é um corpo que emerge


Cine qua non

basta ser bonito para poder namorar


Trava-língua

os matos pastam as vacas
no inefável das carcaças


Tapete

porque o tempo é infinito
sabemos
de tudo a menor parte

Jun 6, 2008

Solilóquio

Estudei tanto hoje e fiquei tão isolado (para se ter idéia, falei com uma pessoa o dia todo), que não tive muito tempo ânimo - também no sentido latino do termo - para escrever. Também faltou-me a fibra pra escolher um texto e postar. Por outro lado, acho que tem muito mais valia um post indicativo do que nada.

Assim, gostaria de indicar alguns blogs, em especial, que discutem arte e nos servem muito mais do que as sessões culturais nos jornais diários, preocupadas mais no lob cultural do que em qualquer outra. Algo até a ser pesquisado, essa tendência a "eu-notícia" que os blogs propiciam, enfim...

Com muito cansaço, sem mais delongas, visitem quando possível o ARdoTEmpo, o Da Literatura e o Poemargens (links ao lado). Todos capacitadíssimos e vigorosos no que tange o literário. Dão grande fôlego sempre aos dias sem literatura.

Um excelente fim de semana a todos e repleto de versos vivos!

p.s.: uma amiga artista postou hoje um poema meu também do "Poemas lançados fora". Quem quiser dar uma visitinha, a arte dela é uma beleza! http://www.fotolog.com/sissynha/

Jun 5, 2008

Em busca do amor mágico

Antes de tudo, preciso agradecer ao bom número de comentários, idéias, opiniões e afins que vêm sendo postados recentemente no blog. Acredito que este trânsito de idéias seja imprescindível para a realização do objeto artístico, mormente, a poesia; que, à contragosto de Bakhtin, tem servido de espaço propício à ploriferação de vozes.

Teorias-roupas-depois-da-lavenderia à parte, posto hoje um poema que está no "Poemas lançados fora", de 2007. Perdoem-me aqueles que possuem o livro ou os que o leram anteriormente - se o postei neste espaço meses atrás -, mas ando mais ou menos como o eu-lírico deste poema. No espaço estreito entre a crença e o ceticismo. Muita arte a todos nestes dias de poucos muitos.

Em busca do amor mágico

Há um truque perdido
em cada romance.
Sou o menino atento,
de vistas na cartola,

na ânsia da piedade, do erro,
da linha transparente,
do despeito, do fundo falso
ou da marca de cola.

Por mais que os dedos do mágico
movam-se inocentes
no espaço entre o fracasso,
o engodo e a glória,

é certo que não erra,
já que se expõe
somente após o tempo necessário
de treino. Agora

(digo agora no comum, erradamente,
como qualquer instante
depois dos silvos e das palmas)
repito o que vi fora,

internamente, muitas vezes,
obsessivo, sem gesto, quase em transe,
mas logo no momento preciso
nada colabora.

A mágica insiste em soar
como um oboé cortante
e desafinado. Nunca me canso, porém.
Fixo meus olhos na cartola

E recomeço.

Há um truque perdido
em cada romance.

Jun 3, 2008

Nota de falecimento

Venho a público informar que na boa hora da morte, em torno das seis primeiras, do dia de ontem, a Arte faleceu.

No atestado de óbito, os legistas atribuíram, com lá não muita certeza, a duas causas principais. A primeira, virótica. Com o atual estágio de nosso organismo capitalista, o conceito de mercadoria tornou-se inerente à composição do objeto artístico. Claro, sempre houve pagamentos que proporcionaram tranquilidade prática ao trabalho do artista, desde a Grécia, com certa melhora ao longo da Idade Média, e nova recaída após o Renascimento. Essa espécie de vírus, branda, mutualística, nenhum diagnóstico sério consideraria relevante. Perto disso, contudo, a epidemia que trouxe a Arte ao óbito é como a Gripe Espanhola, ou a Peste, que vem devastar a maioria e aqueles que restam preferem se esconder com medo da morte, de serem os próximos a sofrer na pele a degeneração.

A segunda causa revelada na autópsia é comportamental. O histórico médico é imperioso: receitou-se ao paciente repouso, narguillés, charutos importados, doses de absinto e chimarrão. Tudo a constituir o tempo propício à crença no divino ou na vida além. No tom do repouso, amparado ao senso comum de que as coisas não findavam com a morte física – quer por existência do espírito, quer por projeção do nome à tradição de sua arte –, os artistas depuravam pacientemente seu objeto. Era necessário transpor-se a algo mais elevado, o que exigia tempo, esforço e certa dose de impertinência. Hoje, ou melhor, há até poucos dias, lamentemos, o doente foi visto correndo de um lado a outro, gritando seu nome à espera de que alguém se lembrasse dele e lhe desse comida, que lhe compusesse elegias em críticas. À espera de que entrasse sem pagar nas festas burguesas ou de que pudesse ser referido, por qualquer que fosse, com distinção e apreço.

Aos que se animam a comparecer ao enterro, ou se prestam a dedicar uma homenagem póstuma, pouco honesta, me entristeço informar que se atrasaram. Ontem mesmo, sem flores à coroa ou carpideiras, no cemitério da Pouca Saudade, foi sepultada em virtude de uma doença crônica, a Arte. À presença de raríssimos amigos, morreu como em vida, silenciosa a seus contemporâneos. Não deixa filhos, herança, não deixa nada. Morre como se restasse em vida, agonizando num hospital de subúrbio.