Jul 31, 2008

História pessoal

Talvez eu seja obsessivo... Minha genial sensibilidade começa a perceber isso após algumas dezenas de anos, bom... Ainda não consigo, contudo, remeter a algo específico tal desconfiança. Talvez por acordar diariamente às sete e ter todo o meu dia segmentado em estantes do agir ("poesia", "Francês", "DaMatta", "Violão", "Inglês" etc.), até meia-noite, sendo somente a insipiração capaz de adiar todas as estantes. Talvez porque não saio de casa desde segunda e pretendo continuar até sábado neste incessante diálogo íntimo e traiçoeiro (com livros, comigo, com o ímpeto). Talvez porque meus diálogos não íntimos, e, portanto, superficiais, tenham se resumido nesses dias à minha mãe, minha tia e meu primo de três anos. Como as crianças são sublimes!
Faço o histórico para um diagnóstico: cada vez mais, se e quando me inspiro, a reação daquilo submerso é mais agressiva e grave. Pouco controle tenho dos versos, das estrofes. Como se dissessem, é isso? é isso, então? vamos ver, e começassem a puxar a corda com seus cavalos de raça.
Minha genial sensibilidade busca um caminho como um rato de experimento!

o escritor

seu melhor verso não acha amparo
quanto mais cresce menos lhe comparam
passa ignorado pelo vozerio

tem por certo o destino deserdado
se por sorte criou-se entre empregadas
deixa por legado a sina para os filhos

quanto mais se aprimora mais se exprime
mais conhece as histórias ancestrais
mais sabe que seu fim é para o fim

− de capuz a ouvir os paços do algoz −
nota o asco educado que o comprime
ao canto à linha ao longe além afora

quanto melhor o traço mais entre os vermes
sepultado no corpo de seu gênio
que o difere dos gênios dos mortais

quantos palmos medem cem anos de terra
quantos cabem num côvado milenar
certamente é inversa a ordem que se impera

de igual lamento quantos abarrotam
lançamentos com autógrafos e vinho
e em tempo tão mesquinho servirão às traças

quantos em saraus oficiais em congressos
destrincham suas histórias pessoais
− forma de escapar ao cadafalso −

e serão praças bustos um evento anual de estudantes
ah! se calmantes janelas drogas avenidas
são o modo último e barato

de saber para que lado corre o laço
um segundo livro um terceiro um artigo
são dois coveiros excitados

retirando um palmo denso de sucesso
de cima do corpo lá inerte sempre desde sempre
deixando um rarefeito palmo de fracasso

Jul 29, 2008

Agradecimento

Hoje posto novamente um poema feito há algumas semanas. Posto em agradecimento ao Carpinejar pela excelente oficina que ministrou ao longo destes dois últimos meses. Posto também em agradecimento pela indicação que o poeta fez ao meu livro num programa de TV aqui de Porto Alegre. Claro que ainda mantemos diferenças quanto ao fazer poético, até porque o entendo com um escritor muito mais bem resolvido esteticamente do que eu, mas considero fundamentais estas diferenças pela minha busca constante de voz poética própria. Há um conceito fonológico denominado "formante", que seriam traços mínimos que distinguem uma vogal da outra. Digamos que estas oficinas com o Carpinejar acrescentaram um ou mais formantes a esta voz tão obsessivamente procurada. Se a arte ainda for possível, muita arte a todos nós!
p.s.: aos meus leitores porto-alegrenses, o programa referido é o "Radar" na TVE (RS).

o porto

minha cidade é o arquipélago
que surge do estuário
− digo minha por preguiça −
do fósforo gasto da usina
ao frio agarrado aos morros
minha ilha se estende

se acaso singro o quadrante
milha além dessas linhas
naufrago na polidez
se salvo preso aos escombros
da ilha antagônica
sofro correntes marítimas

ser estrangeiro é esperar pela praia

Jul 26, 2008

A educação dos prazeres

Percebo que tenho postado muito ultimamente (aliás, ducentésima postagem, e pensar que começou com uma insistência de namorada!). Por um lado, ótimo, que realmente tenho escrito muito, principalmente poemas, uns roteiros e uma peça, filha única. Por outro, obviamente, ruim, que despejo os textos por aqui, tomando o espaço como lugar de experiência (o que, cá entre nós, sempre foi minha predileção). Recuei bastante em relação à concisão e contemporaneidade dos dísticos, ao deixar de delegar para fora da linguagem no que chamo de imbrincamentos discursivos, o ponto de inflexão poético; mas é que tenho achado de novo tanto gosto no sabor das palavras. Tenho sentido tanto prazer na busca do tom, do vocábulo, da imagem. Não pensem que sou diletante... Num tempo de pouquíssimos prazeres válidos, não posso recusar algo tão ao alcance das mãos.

Ficam dois poemas: um da casta vanguarda de antes, outro do meu reapaixonamento!


trava-língua

os matos pastam as vacas
no inevitável das carcaças


a legião

como o primeiro porco
rumo ao despenhadeiro
impregnado do Demo
tirado do corpo humano
antes um desconforto
que Deus tirou de si mesmo

do porco de seu âmbito
como o primeiro pêlo
à frente se eriçando
o pêlo do ar inédito
da brisa não corrompida
como o arauto do bando

arrancado do judeu
do chão da rés do rebanho
para depois sem remanso
ser exilado da vida
como o olhar pelas mãos
dos apóstolos piedosos

antes perder o filho
do que banir a fortuna
como o porco que a preguiça
testemunha na colina
todo poeta nasce
no começo de sua morte

Jul 25, 2008

Estrabismo

Mais de um pensador têm alertado para o fato de estarmos iniciando uma nova Idade Média em que o excesso de informação subsituiria a Igreja na ilusão de eruditismo das pessoas. Por exemplo: Caetano é ótimo, mas não é Rimbaud; Truffaut é excelente, mas não é Monet (ilustrei com quatro dos meus preferidos para que não me acusem de partidário!). Concordo com estes autores que a classe média (medianamente culta), termômetro balizador dos rumos culturais desde o Romantismo, tem feito substituições perigosas, mas, por outro lado, nunca como agora é mais hercúlea a tarefa de saborear todas as obras de arte precedentes. Bom, eu, ao menos, tenho essa sensação um pouco beneditina ao cabo das minhas horas diárias de leitura. Vai o autor, fica o poema.

esotropia

o lábio não é a boca do copo
os dedos não são as asas da mão
o mundo tomado às pressas no meio
por isso que divaga

somos todos internamente estrábicos
à mercê de forças que não temos
para coincidir os fatos e o desejo

que também vemos dois ao ver para dentro

Jul 24, 2008

Exógeno



Ontem assisti, num show pessoalíssima, ao artista John Greaves. Pra quem gosta de poesia, música, sensibilidade... Como é fácil ser artista! Basta não se negar ao resto. Só é preciso ser em plenitude!

p.s.: David Mamet: "A arte, já não mais domínio do artista, tornou-se o instrumento do empresário, ou seja, o instrumento da mente consciente. A mente consciente pergunta: "Pra que serve a arte?" e responde "Serve para agradar as pessoas". Mas a mente consciente não pode ter prazer agradando as pessoas por meio da arte, pois a mente consciente não pode criar arte. De modo que a mente consciente se alia à arte, e tem prazer ganhando dinheiro.

Jul 21, 2008

Ontologia poética

Lendo o e-mail de um amigo (Heyk Pimenta, dono de excelentes versos, link do blog ao lado), redescobri-me o velho rato de livros que sempre fui. Nos seus relatos de encontros literários e saraus públicos, lamentei (mais um vez) minha costumeira escolha de permanecer em casa quase sempre. Disso guardo várias recordações... Meus amigos jogando bola, eu esgotando Machado. Meus meses enclausurado buscando Rimbaud, "Ulysses", Pessoa. Nas aulas colegiais, de walkman e casaco, pra poder minimizar a perturbação dos meus versos. Claro que as musas que frequentemente passaram por todos esses anos sempre valeram a escolha. Não ultimamente, quando elas têm me faltado.
Anomalias em recentes exames clínicos colocaram em cheque meu espírito misantropo. Se eu morrer hoje, terei vivido a contento? Obviamente sei que parte do meu "talento" é culpa dos meus olhos ainda não balzaquianos, mas esgotados de leitura. Mas também, tão óbvio quanto, sei que perdi tantos mundos nos meus tempos de silêncio, dispensei tantos encantos pelos encantos escritos, que não há como medir o tanto que hoje não sou.
Uma outra conversa que tive, essa com minha mãe, no último domingo, talvez resuma a questão. Ela me relatava uma ocasião que ocorrera numa classe de estudos em que lecionara e inquiria minha opinião. Eu, não de bom humor (ou cheio dele), atalhei: "mãe, as coisas existem e só. O resto é circunlóquio". Minha mãe sorriu de susto.
Se eu morrer amanhã, morri.

no entorno das paredes

ao meio exato do instante
em que o jovem atropelado
teve seu rosto unido
às paredes do edifício

lamentou não ter vivido
antes de entender o lapso
de que ver o outro é julgar
pela aparência o vazio

Jul 20, 2008

Outro JC pra começar a semana


Polemizar é melhor que deixar ir... Morte a Ricardo Reis, novamente! Exílio, que não volte à Terra de Santa Cruz! No espaço da mínima sombra, que resiste, qualquer iniciativa se valida, qualquer grito nasce com pretexto. Prefiro equívocos a mesmices. Prefiro um olhar de raiva a algodões no nariz! Prefiro preferir a não preferir nada!

p.s.: preciso deixar claro que a polêmica da charge é intelectual e não sexista. Júlio César ou Cleópatra com suas respectivas e seus respectivos...

Jul 18, 2008

De volta

Depois de outro festival, reencontros, reuniões de roteiro, decepções, conquistas, momentos insólitos... cá estou de volta. De certa forma, em aperto, porque decidi escrever um projeto "como quem não quer nada" para a Unicamp, cujo prazo de mestrado se encerra em dez dias. Bom, já seria algo bem complicado se eu dominasse o tema, mas tomo a missão de falar sobre teatro brasileiro e ler sobre o assunto, em tão pouco tempo, como um exigente desafio. Volto também com algumas idéias. O livro, que mandei aos leitores que pediram, está sendo aumentado com novos poemas e pretendo estudar meios de lançá-lo sem qualquer referência a autor. Nem que seja por edição própria (não sei se a 7Letras toparia algo do gênero), pretendo apagar o nome do autor dos meus poemas, e, em seguida, das músicas, quadrinhos, filmes e, por fim, ou antes de tudo, do blog. Talvez apagando essa instância que responde (e recebe, "€", por isso) eu consiga me livrar da sombra mercadológica que incomoda meu fazer artístico. Talvez, contudo, seja só uma iniciativa juvenil e desesperada. O importante, ademais, é que não faz a menor diferença e esta liberdade, acima de tudo, tem se tornado muito o meu momentâneo alento. Chega de um paradoxal prestar de contas do sujeito, fica um dos vários poemas que fiz nestas andanças "produtivas".

Pulso

tenho um agora que se estende
pelo tempo de uma vida

mesmo que a alma balance
para aquém e adiante

− como os dedos de um menino
preso ao balão flutuante −

o tato é um começo de tato
as superfícies claudicam

os sons têm olhos histórias
os cheiros desprendem corpos

são sempre todos os mundos
sobrepostos no instante

difícil é manter a força
o som do pulso no pulso

− deixar de romper a linha −
se tudo que há não há

a qualquer hora eu morro
de descuido

Jul 10, 2008

Poema revisitado

Já postei estes versos antes, há bastante tempo, e, na época, causou reações das mais díspares, uns gostarem, outros sentiram aversão etc. Em função de um concurso de poesia em Colatina (pra quem quiser mais informações, clique aqui), retrabalhei o poema, cada palavra, e busquei um ritmo próprio, que os mais beatos vão logo saber de onde. Obviamente há uma crítica aberta ao catolicismo e também à pedofilia (também mais evidente), mas o que quis acertar (e provavelmente errei) foi que algumas pessoas, não por tabus, mas por abuso, covardia e violência, conseguem despertar um certo asco universal.
E cada vez concordo mais com o Isaac que me falta um pouco de paciência ao fazer poesia. Rápido me livro deles todos, os versos.

ave-maria

de alto a baixo
um metro e trinta
cabelos crespos
de passar pente

no amor que rende
há pares de anos
as cores gritantes
é que lhe encantam

quis ir ao rosa
flores bordadas
por não ver dor
dentro do pano

fugir ao roxo
mais desbotado
ser como a linha
cerzindo o sono

alguns espelhos
manchados gastos
desamarraram
de seu vestido

por isso o choro
não lava a mão
do padre erguendo
baixinho a saia

como queria a
virgem Maria
subir à terra
das lantejoulas!

Jul 9, 2008

Mais dois Júlios



Como vou passar mais um tempo distante, outro festival, em Minas, e um congresso, em São Paulo, e a prática do blog dá certo prazer vicioso, posto hoje mais dois quadrinhos do Júlio César, de que gosto muito. Palmas para meu parceiro cartunista! Grande abraço a todos!

Jul 7, 2008

Minha linhagem mineira

Este é talvez o último poema que faço na oficina do Fabro. Feito há algumas horas, traz muito daquilo que me desescora. Tive uma dificuldade íntima tremenda, pra um dia além de difícil. Espero, como costumeiro, as críticas sempre sensíveis e as discussões maravilhosas que vêm ocorrendo neste espaço. Instantes especialíssimos a todos! A vida não vai tanto além disso.

Chapéus e mancebos

quando me soltam o braço
nos arrabaldes mineiros

quando perguntam sempre
da saúde dos menores
mulheres são fotos ovais
de generais na parede

quando a varanda se enchia
de tios fumando e truco
e os gritos chamavam os homens
pelas travessas quentes

quando as saias coloriam
os quadrados de azulejo
evangélicas e retas
à altura dos olhos

canso quando me olham
os ombros os antebraços
quando disputam comigo
os espaços que são das coisas

todos os mártires são cruzes
mulheres mortas são panos

canso dos outros homens
das mulheres descansadas
canso de não ser coisa

os andares de madeira
os moldes preservados
os tabacos de azulejo
o cansaço

talvez haja um cansaço
próprio a cada coisa

Jul 6, 2008

Sobre o quê?

nada de prosa

como não ando
saindo de casa
nada de prosa

prosa é olhar para a rua
poesia é não olhar para a rua

Jul 3, 2008

O coro e o corifeu

Numa entrevista para o JT há alguns meses, uma das perguntas feitas pelo repórter foi no sentido de para quê, afinal, serve a poesia. A resposta de todos, unissônica, portanto estúpida, foi a de que não serve para nada. Tudo bem, escritores jovens servem para dizer isso mesmo, ótimo. Eu, como sempre prefiro o meio do rebanho a roçar o pêlo na cerca, assenti no momento com os demais e bola pra frente. Só hoje consigo vislumbrar o preço da minha negligência, um preço tamanho! Obviamente que a poesia precisa trazer em si alguma serventia, se fosse somente para tabuletar a sublimação dos poetas, todos iam fazer sexo e tudo bem. Se eu não acreditar na capacidade da poesia de mudar, mesmo que levemente, o seu leitor, o velho efeito catártico caro aos gregos, ando perdendo o meu tempo. Se a poesia só servir para, quando eu estiver definitivamente frio, trazer meu nome numa página da Internet, com foto e bibliografia, mato-me já e chega! Acrescento ao que dizem normalmente: num tempo em que o espírito dos homens anda tão ralo e escasso, talvez a poesia se faça como uma espécie de arauto, que leva também a coroa.

p.s.: livro terminado! Os que se prontificarem a me ajudar com suas leituras e impressões, mando "os originais" por e-mail, assim que solicitados. Muita arte a todos!

Quando não há aniversário

em dias de tristeza
não se faz aniversário
as velas queimam cerejas

o tempo áspero trapo
arrasta no espaço buracos
miasmas lábios do avesso

destino enviesado
range demora e se chega
não há quem fomente o azo

batendo palmas
há o enfado do atraso
que não prossegue nem pausa

não é calma nem pressa
um sopro do desabafo
que infesta se as velas vazam

("poemas lançados fora", Guto Leite, 7Letras, 2007)

Jul 1, 2008

Difícil exercício

Nunca acreditei muito em oficinas de criação poética. Ainda mais depois que fiz uma com um poeta beat que analisou poemas de todos os oficineiros, menos os meus, por "esquecimento" (aspas de citação). Entretanto, a oficina que tenho feito, no último mês e meio, com o Fabrício Carpinejar certamente tem sido muitíssimo proveitosa pra mim! Não digo, obviamente, que mudei tudo o que escrevia antes, que me desfiz das peças empíricas do fazer poético adquiridas nestes anos, mas tenho expandido muito minhas reflexões, meus timbres, as imagens possíveis e tenho aguçado bastante minha sensibilidade lírica. O poema do último post, por exemplo, seria impossível há algumas semanas (a impossibilidade é um desafio que me encanta). Embora não tenha sido solicitado na oficina, prática comum de exercício, certamente é a soma de minha leituras de Bandeira com um certo laissez faire ma non troppo que o Fabrício defende às segundas à noite. Esse que segue, sim, foi solicitado na oficina.

p.s.: a solicitação foi no sentido de traduzir os sentimentos abstratos (que ele escolheu) em imagens pessoais, e portanto, mais distantes da concepção vaga do senso comum.

Sentimentos felinos

Volúpia: os movimentos propícios que ela faz enquanto dorme. Filhote de gato que ainda não abriu os olhos.

Amizade: acordar e perceber que ela, zelosa dos meus vícios, finge estar dormindo, afagando-me intimamente. Sorrir furtivo na tentativa de adivinhar quem finge há mais tempo. Tocaia de gato, que só quer afiar seus dentes.

Avareza: deixar-se de lado na ocasião do abraço, beijar e seguir úmido nos lábios. Dormir impropriamente. O filhote mais gordo, praticamente imóvel, à beira de um pires de leite. No peso do seu corpo, afasta o irmão mirrado.

Esperança: o átimo anterior ao segundo laço de suas pernas, quando, como uma garra de gato, ela amarra o pé nas costas de seu outro tornozelo. Meu olho gaiato esperando o mesmo de pernas que não são dela. O parto do último filhote, o gato da placenta. Tão vira-latinha no saco velho de arroz! Tão imprestável quanto os irmãos mais velhos.

Raiva: ver que há algo que dói nela, ser incapaz de medi-lo. Se angústia a desperta, adormecê-la de novo, medicando-a com esperanças genéricas. A raiva de não ser capaz de exceder-se. Os olhos fixos de um gato adulto, que não mia, não mexe, não sabe. Os intermináveis olhos negros deitados no gesto inútil.