Como agradecimento a uma crítica generosa, posto este conto, ainda muito reticente a qualquer destreza que eu possa ter em prosa. Muita arte a todos neste fim de semana...
A mulher de Schopenhauer
Pouco queria. Pediu o cinzeiro e, após alguma insistência, aceitou uma garrafa de cerveja – que permaneceu intocavelmente cheia até que deixasse o bar. Sentou-se numa mesa de canto, próxima a uma espécie de alpendre que terminava na rua. Abriu a bolsa e retirou cigarros, um isqueiro e o xerox de um texto de Schopenhauer, livrando-o de um pequeno perfume, batons, outras maquiagens, um espelho de bolso, a carteira e estilhaços de lembrança. Pegou também uma tiara, para que organizasse o cabelo curto de maneira própria a ler por algum tempo e sem grandes perturbações.
Em torno deste ritual dos mais delicados, o bar se portava intempestivamente. Salvo escritores que se reuniam apáticos numa das mesas, todo o restante acompanhava com urros, copos e corpos um jogo transmitido em quatro televisões içadas ao alto. Estas lhes dizendo quando levantar, gritar, provocar, calar, todo o gesto. Por oposição, delegavam sussurros, confidências e baforadas aos escritores. Ela, somente, permanecia ilesa a qualquer tentativa dinâmica de acordo, enquanto fumava pausadamente.
Seu rosto, vertido incansável para a leitura, perfazia o único elemento de resistência àquela algazarra. Não só àquela, mas também os carros e o contraste das árvores no asfalto, que lhe serviam, ao fundo, de cenário, perdiam importância e beleza ante seus traços. Suas sobrancelhas, de mais corpo do que o usual, apertavam-se sutilmente. Seu nariz magro e escaleno apontava para o centro imaginado da folha, sem jamais oscilar ou aceitar mediação. Sua boca, dizendo algo, implorava qualquer entendimento.
De súbito, um alvoroço percorreu o bar como um arrepio na espinha. As nuvens da paisagem cumpriram sua ameaça e despejaram gotas robustas naqueles assentados às mesas mais distantes do centro. As atendentes, seguindo gritos firmes do balcão, aprontaram-se em descer os toldos, na tentativa de evitar que os freqüentadores julgassem melhor perder o restante do jogo a saírem levemente molhados. A leitora, contudo, mais uma vez, permaneceu inerte, absorta ao tempo, que, fora dela, mantinha o espetáculo. Tragos.
Na dissolução das letras em pequenas manchas – ou a um fim de parágrafo –, defrontou-se também com a necessidade de sair dali. Analisando rapidamente o bar, percebeu não haver mais para si qualquer espaço em que permaneceria acolhida em seus estudos. Resolveu-se por ir ao balcão e solicitar à gerente alguma resposta àquela insolubilidade. Infelizmente – ? – a mulher detrás do balcão ouviu com displicência e até se pôde notar certo humor em suas apologias e em sua inércia.
De onde estava, em poucos instantes, a mulher decidiu-se por ir. Abraçou a enorme bolsa que trazia ao ombro, jogou como um revide uma nota de dez junto à caixa registradora e caminhou para a saída. Interrompeu seu ímpeto quase à porta – lembrava-se do texto? Não – e ergueu um pouco o cenho para a chuva que ainda banhava carinhosamente as costas do bar.
Não houve o que ser feito. Retirou a tiara disposta a permitir, desta vez, riscos oblíquos, porém breves, lhe cruzando a vista. Protegeu um pequeno perfume, batons, outras maquiagens, um espelho de bolso, a carteira e estilhaços de lembrança com o corpo, e apressou um passo, depois outro e mais outro, saindo do campo de visão. Na mesa, as letras se emaranhavam gradativamente, os cigarros, depois o isqueiro, tornaram-se inúteis. Encharcados, pessoas e coisas trocam de papéis.
May 8, 2008
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2 comments:
Fabuloso, Guto! Adorei o carinho meticuloso que vc usou pra descrever a cena. Uma cena banal, mas que qnd vista através dos olhos certos, e relatada com o mesmo interesse que despertou, fica linda. Parece um ritual mágico, uma balé do dia a dia =)
Ah, a idéia da tiara é boa, os grampinhos marcam-me o cabelo =P
Frase do Guto pra ele mesmo quando leu seu comentário: "olha que linda!" Obrigado, Dani, mais uma vez. E acho que "olhos certos" podem ser substituídos por "olhos". Acho que as pessoas vêem com tanta coisa que quase não chegam a usá-los!
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