Jun 20, 2014

PROCURE O SR. WILD

Era um prédio ali, na Dr. Flores. A fachada não sugeria em nada sua importância. Naquele dia, o céu tinha tirado as nuvens de casa, mas o frio de junho impedia a chuva. Aproveitei uma pequena brecha no trabalho e a ida de Ana Maria cedo para a universidade, e fui conferir o grau de piada daquele cartão fosco entregue por um colega como a melhor saída possível para os meus problemas.
WILD, centralizado, times new roman, sem tratamento, endereço sucinto, tudo em preto, sem horários, sem estardalhaços. Que cabotino se chamar de Wild! Ou seria nome? Sobrenome?
Na recepção do prédio, o rosto moreno e carrancudo do zelador confirmava o aviso de uma pequena placa. Assinei – com nome falso – o livro de controle.
- Sétimo! – numa voz grave e premonitória.
Sem gentes ou espelho, o elevador subiu silencioso ao andar ordenado. Confesso que não esperava, por todo o ar de segredo que envolvia aquela visita, a multidão espremida entre a porta e a bancada de uma senhora branca, gorda, de óculos enormes de aros de um plástico intransigente. Havia espaço, sim, para mover-se, mas não são muitas as salas de espera com fila para triagem.
Quinze minutos depois, um pouco mais, cheguei à secretária:
- Teu nome...
- Roberto Vieira – repeti o nome deixado no caderno da entrada, nome pensado para não ter perguntas “como se escreve?”, para ser repetido o mínimo possível.
- É a primeira vez?
- Sim.
- Cento e cinquenta reais.
Meu colega havia me antecipado o valor e levei o dinheiro, em separado. Ela contou rapidamente e confirmou:
- Só aguardar.
Eu não esperava recibo, mas toda aquela coisa de não haver amarras, de não deixar vestígios, me incomodava um pouco. Eu sou, afinal, um corretor de imóveis, profissão em que rápido se aprende que é melhor ter normas, procedimentos, garantias, para que tudo corra bem. E mesmo assim arrumam formas de contornar a gente...
Me escorei numa nesga de parede e fiquei observando. As pessoas entravam e saíam rapidamente da porta ao fundo do cômodo. Tentei algumas hipóteses para ligar nós todos ao senhor Wild, mas eram roupas diferentes, idades diferentes. Tinha até uma criança que, pelos trajes e pela hora, estava matando aula. O homem entrincheirado naquela porta não resolvia só encrencas sentimentais, isso era certo.
O tempo que demoravam lá dentro não era exagerado. Na escala da espera: menos do que num clínico geral, bem menos do que num oftalmologista, muito menos do que num obstetra, impensavelmente menos do que num advogado. A impressão era que se passavam dez ou quinze minutos somente, uma conversa ligeira, e os clientes saíam com uma desconfiança revestida de alegria estampada no rosto.
Com esse fluxo todo, duas horas mais tarde era a minha vez de ouvir alto o meu nome, Sr. Roberto Vieira, e entrar no escritório.
Fiquei bastante impressionado com o que encontrei! Nem falo do Sr. Wild, que também não era o esperado. Caucasiano, careca, ruivo pelo cavanhaque, olhos castanhos, de greta, magro a ponto de preocupar. Falo do espaço, que não tinha uma folha de papel que fosse, que se restringia a uma mesa, três cadeiras confortáveis, idênticas, e um computador Mac, último tipo, que custa perto dos dez mil reais – sonho de consumo que não vou realizar quando tiver dinheiro para fazê-lo.
Sua voz, óbvia e macia, rompeu o espanto:
- Sente-se, por favor, Sr. “Roberto” – ele fez as aspas com os dedos, enquanto eu me sentava, um pouco mais desnorteado pelo gesto. – Em que posso ajudá-lo?
Eu abria e fechava as mãos, constrangido. Aquela sala poderia ser um pouco mais acolhedora. Por outro lado, dava a impressão de que não havia nada em que eu pudesse me segurar ou esconder dele. Eu hesitava um pouco, ele deixava que eu hesitasse, como um pescador que dá linha para fisgar melhor.
- Sr. Wild, eu...
- Sr. Wild – ele corrigiu -, é alemão.
- Sr. Wild, desculpe, há cerca de dois meses, eu traí minha mulher...
Sem dizer nada, mas o tempo todo digitando alguma coisa no computador, ele ouviu a história da cliente que havia entrado em contato comigo para alugar um flat, a tarde de visitas em diferentes lugares no Rio Branco, em Petrópolis, no Centro, na Auxiliadora, a forma como sua saia um pouco acima das coxas e justa foi mexendo comigo...
- Poupe-me dos detalhes, Sr. Roberto.
Até que começamos a noite num apartamento mobiliado no Moinhos de Vento. Ana Maria (eu omiti para ele o nome com “minha esposa”) não suspeitou de nada naquele dia, mas o jeito como a cliente tentou repetir os encontros nas semanas seguintes acabou levantando suspeitas. A mensagem atrevida e romântica no Facebook, vista de soslaio numa atualização de celular, foi a gota d’água. E há três semanas nada de sexo, nada de beijos, nada de agrados, nada de nada.
- Entendo, entendo... E você veio aqui para tentar limpar sua reputação com sua esposa?
- É isso? – perguntei meio para mim, porque também não sabia bem o que estava fazendo ali. Confirmei em seguida. – É, é isso.
- Enquanto o senhor falava eu fiz algumas pesquisas, contatos, e o serviço vai custar três mil reais. – E talvez respondendo à minha surpresa. – O senhor pode fazer de duas vezes.
- Tá – foi o que deu pra dizer.
- O senhor receberá um e-mail indicando os dados bancários.
Eu fiquei sem saber se tudo era aquilo ou se tinha mais alguma coisa pra acontecer. Eu não disse a ele os meus dados, nem mesmo citei Ana Maria nominalmente. Acho que o sr. Wild estava acostumado àquela indefinição.
- Um bom dia, Sr. Roberto. – E ainda deu tempo para uma leve ameaça antes que eu ganhasse a sala de espera. – E nem preciso dizer o que pode acontecer se o senhor não pagar, certo?
Só assim entendi que cara era aquela que as pessoas saíam do escritório do Sr. Wild. Eu acabava de pagar três contos por um perdão? Não foi bem isso, acho que o termo que ele usou foi “limpar a reputação”. Mas o que é isso? Ele vai apagar a memória da Ana Maria? Não, ele não chegaria tão longe e tão silenciosamente se tivesse algum tipo de violência na parada. O Paulo do escritório disse que é o homem mais rico do estado e não tem político eleito que não tenha lhe solicitado algum serviço, e, por isso, não esteja em suas mãos.
Tentando construir na cabeça as linhas desse mistério eu cheguei na imobiliária. O Paulo me olhou com uma cara de “e aí?” e eu respondi com uma boca de “e aí o quê?”. Atendi a uma dezena de clientes antes de sair para almoçar, mais tarde e sozinho. Resolvi pesquisar o nome do Sr. Wild no Google... Nada! Se não tem ali, não existe. No fim do dia, ainda mandei um e-mail pro Paulo, que ele só veria na manhã seguinte, sugerindo que ele e o comparsa dele me devolvessem o dinheiro ou eu eles iam ver...
Pelo comecinho da noite cheguei em casa. Somos casados há cinco anos, não temos filhos. Nenhum dos dois chegou ainda a um lugar confortável na carreira, então esperamos. Em tempos normais, seria uma maravilha, mas atualmente é um inferno estarmos no mesmo lugar, mais ou menos apertado, às vezes fazendo as mesmas coisas, como assistindo TV ou comendo, e sem trocar nem uma palavra. O celular quebra um galho nessas horas, mas depois de dez vezes que você joga qualquer coisa é fácil perceber que joguinhos são joguinhos e o clima está pesado.
Ao ver como ela continuava agindo como se eu não estivesse ali, fechei a cara e passei duas longas horas amaldiçoando o começo daquele dia. Talvez eu tivesse ganhado mais preparando uma surpresa pra ela de manhã ou então pedindo perdão pela centésima vez. Toda aquela patifaria do prédio descascado, atendentes mal-humorados, o alemãozinho ameaçador, parecia uma peça de guris, enquanto eu tinha todo um mundo de adulto pra resolver. Talvez fosse o caso de desistir, simples desse jeito, começar a falar sobre o divórcio – falar sobre o divórcio já é o divórcio em si - e tentar achar um jeito não ridículo de ser sozinho.
Mas é que eu amo essa mulher!
A hora de dormir é pelo menos uma pausa no constrangimento. Fomos deitar em silêncio, quase na mesma hora. Fiquei ali, remoendo o dia, remoendo a vida, e os pensamentos começaram a não conseguir mais se ligar um no outro.
- Na sexta é aniversário da Gabi. Você vem comigo?
Quantas vezes ela remontou dentro dela essa frase pra que saísse assim, entregando tudo e sem entregar nada? Que saudades eu estava de ouvir aquela voz.
- Vou sim, Ana. Daria tudo pra ir com você. – Isso foi um riso abafado?
Filha da puta esse Sr. Wild!

Feb 22, 2011

O valor do processo

Meu avô fez noventa anos há algumas semanas. Como poucas pessoas nessa idade, permanece lúcido, sendo um prazer acompanhar suas muitas histórias (raras vezes ouvi dele uma história repetida) e sua postura sempre humilde em relação à vida.

No dia seguinte à festa, tive a oportunidade de conversar um pouco com ele, relativamente a sós. Foi quando ele me contou de sua infância e que sentia muito não ter aprendido carpintaria com seus tios (meu avô perdeu os pais bem cedo). Com as mãos sobre a barbicha branca, meu avô disse que não entedia por que todos usavam uma forma de madeira e seu tio insistia em fazer os cortes sobre algumas marcas no chão, o que seria muito mais difícil. Ouvindo isso, comentei que talvez o tio de meu avô entendesse o valor do processo. Que antes de ser ou não prático, cortar a madeira diretamente no chão devia despertar ou relembrar aprendizados que ele considerava interessante.

Ah! meu avô soltou brevemente um ar da boca. "Pode ser...", balançou a cabeça afirmativamente.

Tanto quanto a admiração por alguém capaz de ouvir uma pessoa sessenta anos mais nova, ficou-me a sensação de que está aí um dos perdidos de nossos tempos: o valor do processo. Como tudo tem um motivo, um proveito, uma ação, um sentido, pouco importa o processo para se atingir o alvo. O problema é que muito de nossa cultura se deposita no processo. As nuances de significado estão no caminho, não no fim ou no início. À luz dos extremos, publicidade é poesia, auto-ajuda é romance, notícia é crônica, scrap é conto.

Meu avô é do tempo do processo...