Mar 19, 2009

Defeito de fábrica

Saudações, caríssimos. Comecei na semana passado um curso de conto para corrigir um grande defeito da minha formação literária... Sinceramente, nunca me dei bem com narrativas, histórias, peripécias, climax e desfechos. Estranho! Há boas teorias que defendem com vêemencia uma certa pulsão natural à narrativa. Isso corrobora uma de minhas maiores suspeitas. Vim, sem sombra de dúvida, com um grande e escandaloso defeito de fábrica.

o burocrata

Depois de trabalhar mais de vinte anos no setor administrativo desta repartição pública, aprendi as muitas nuances do ofício. Naturalmente, hoje ocupo o melhor dos cargos do departamento: sou o responsável por acatar ou negar pedidos de licença e férias de todos os funcionários, milhares, que compõem nossas incontáveis alas e sucursais. Minha rotina é na verdade bastante simples. Na segunda pela manhã, recebo uma lista de solicitações pendentes. Acima, em vermelho, constam os nomes daqueles que imperativamente devem se licenciar na semana seguinte. Ao lado, após os nomes do prédio e do setor, figura o contingente mínimo de empregados necessários ao bom funcionamento da seção. Assim, de posse de dois carimbos comuns, DEFERIDO e INDEFERIDO, marco, até o final da semana, cada um dos nomes do rol, apelidado por mim de “a enorme lista do ócio”.
Obviamente se espera do meu trabalho mais do que preencher tabelas idênticas de uma tinta azul inevitavelmente borrada. Devo, em tese, vislumbrar, medir, prever, ponderar, analisar, argüir e julgar, caso a caso, quais daqueles empregados merecem usufruir antes de seu direito de descanso. Não me envergonho em dizer que assim o fiz, a princípio. Contudo, seria pouco honesto da minha parte dispensar a regalia de preencher ao acaso minhas obrigações, respeitando, é claro, os ameaçadores nomes rubros ao alto da lista. Às terças-feiras, quartas, no máximo, já realizo passeios salutares por cada um dos setores, prática, aliás, prevista pela natureza do meu trabalho.
Muitos acreditam no poder terapêutico e na potencialidade criativa do ócio. Eu, no entanto, e me considero o homem ideal para falar sobre isso, afirmo que o descanso foi feito para que os negócios que o sucedam sejam mais proveitosos. Complementam-se um ao outro e alienam o homem igualmente. Basta olhar para uma repartição pública em uma segunda de manhã ou para o tom renovado que amanhecem os domingos, dia seguinte ócio metafísico de Deus. Basta olhar para mim, neste renovador retorno das férias, degustando calmamente cada pequena engrenagem da máquina burocrática e valendo-me de novo da simpatia sinceramente interessada dos meus colegas.
Recebo a lista costumeira das mãos do Gerente Geral e entro em minha sala. Recosto-me na cadeira acolchoada de quatro requerimentos, abro a pasta e verifico que meu substituto trabalhou como um novato, minucioso e ingênuo. Mesmo assim e, por isso, centenas de nomes esperam ali meu presto julgamento. Conheço pessoalmente muitos deles, infiro pelos apelidos outros tantos. Fecho a pasta por um tempo, tentando me lembrar o máximo possível dos rostos de nossa repartição, um hábito lúdico que ganhei com os anos. Abro novamente a pasta, deslizo meus dedos sobre cada rotina e acho por bem começar logo o trabalho.
Prédio Um. Aarão, dos arquivos, seu irmão é escritor de cinco livros muito bem recebidos pela crítica especializada. INDEFERIDO. Abílio, gerente de atendimento, o vi saindo do carro esta manhã com cara de quem teve uma noite ótima. INDEFERIDO. Acácia, da recepção, educada, prestativa, cerimoniosa. INDEFERIDO. Adalto, grande sujeito esse Adalto, que setor? Vejamos. Setor de Aprimoramento e Capacitação, o SACA, mas como, se o esbarro freqüentemente nos corredores? Bem, quantas licenças para o prédio? Quarenta e duas. Alguém de férias ou licenciado? Não. DEFERIDO. Palmas para ele. Aline, magra, vegetariana, jeitinho superior, de quem está sempre um passo na sua frente. INDEFERIDO. Amanda. INDEFERIDO. Atanásio. Atanásio? Que pai batizou esta criança? Não me lembro dele... Funcionário desde 89 do Setor de Recursos Humanos. Daqui?
Ergo a cabeça por detrás da pasta e fito além do vidro aqueles que trabalham. Impressionantemente, salvo o Gerente Geral, desconheço o nome de todos que consigo avistar neste momento. Para piorar, a maioria tem minha idade e minha postura na degustação de suas boas trajetórias no funcionalismo público, o que os torna, nos torna, muito parecidos. O homem de terno ao canto da sala, lembro-me bem, embora tenha esquecido seu nome. Houve um bolão no setor uma vez sobre quantos meses até que ele tentasse o suicídio. Todos perdemos, muito triste. Há o obeso das gravatas exóticas. Nos dias quentes, sua muito, encharca-se, tendo que limpar os dedos na camisa para tocar nos documentos, salpicando-as gradativamente de um tímido amarelo. Também poderia ser aquele alto e esguio – como é mesmo seu nome? – que passou o abaixo-assinado há alguns anos para continuarmos a usar os escaninhos em vez de computadores.
Certamente é um desses párias, mas qual? Os tempos longe daqui me levaram o tino. Meus olhos agora se desprendem dos meus primeiros suspeitos e outros já cabem perfeitamente em Atanásio, levam o nome aos crachás. Quem me dera usássemos crachás! Quem me dera as pessoas fossem atreladas aos nomes como o trabalho ao ócio!
Que se foda o Atanásio! Indeferido.

5 comments:

Victor Meira said...

Hahaha, lindo, negão. Gostei bastante. Tudo num tiro só, sem parar, acontecendo em tempo real. Pra falar a verdade eu senti falta de uns espaços entre parágrafos. Não dá pra perceber as quebras assim, aí fica difícil ir fechando os blocos de raciocínio.

Mas tá lindo. Tem desfecho mesmo sendo recorte, e a personagem é boa, verossímil.

Animal nego.
Escreva mais contos.

Abrazzo!

Isaac Frederico said...

fala gutão !

o conto é sensacional, o defeito que mencionas definitivamente não tem qualquer tangência com teu ofício literário.

é repleto de um ar claustrofóbico ainda que não kafkiano, tem imagens fortíssimas, como o obeso das gravatas exóticas !

a única coisa que não gostei foi a última frase do conto que, achei, nada tem a ver com toda a atmosfera do conto.

um abraço, mêuk !
(abreviatura leviana de "meu querido")

Guto Leite said...

Obrigado pelos comentários, queridos! Valeu mesmo pelo incentivo... saibam que é com esforço que escrevo prosa, viu... Vou pensar na frase final, Dom Isaac, penso-a como um estouro, sei lá, mas vou refletir!
Grande abraço aos dois e obrigado pelo retorno da leitura

Beatriz said...

Bela iniciativa. Coragem. A oficina vai bem, pela amostra.
Vamos indo e vendo;))

Heyk said...

Olha, que eu fiquei foi bobo.

Engraçado, parece que o conto é algo disso mesmo: um papo. Papo consigo. nesse caso. Ótimo. ótima a trama desse cara.

Como ele vê essas díades, legal, né?

Fiquei pensando nisso e não consegui ver os divisões de atrsentação de armas, enredos e guerra e morte. O conto é suave, vai correndo e dando ideia, como é fácil a gente se apegar a um personagem... Coitado do atanásio.