Jan 20, 2008

As francesinhas

Francesinhas

as crianças pequenas falam francês
as pequenas francesas são pequenos anjos

p.s.: até que ponto faço o meio-de-campo da metáfora?

Jan 18, 2008

Lentes de contato, fases de prosa


Lentes de contato

São oito em ponto no relógio do Paço. Longe dali, um homem, negro socialmente, Edgar, vence de forma viril a distância que o separa do centro. Um olhar periférico acusa a herança clássica e desgastada das vizinhanças, mas ele não sabe disso. Sabe das construções quadradas, das grades abundantes, da pouca ferrugem, dos cães raivosos meio sem fome, das guaritas; tudo muito disciplinado e regular. Paisagem sem susto. Ele não gosta. Direta e rudemente não gosta. Arrisco atribuir-lhe associações passadas, sem sua permissão, com base no preconceito que sempre me serviu bem; mas não divaguemos enquanto nosso protagonista sobe o morro tão disperso em reflexões de proletário. É preciso contá-las.
Hoje acordou ainda escuro. “Porque gosto”, mente consigo. Levanta-se espalhafatoso, para causar barulho. A doce Maria, presa nos cabelos dela, de Morfeu, no meio dos lençóis, ou meio diluída, ronca levemente um descanso merecido. Abre os olhos um momento, dopada, xinga baixo, ele não ouve, tomba o corpo pendulamente para o outro lado, e volta a roncar para sair do enredo. Edgar entra no banho, imagina-o quente. “Bom pra acordar”, mente de novo. Demora-se um pouco, até quando dura o sabão. Despede-se da paz de se ter água massageando a nuca sem ressentimentos. Com a toalha na cintura, ajeita seu cabelo marrom e baixo, quase uma símile de si mesmo. Queria ser mais forte, “um cavalo”, como dizem as moças que moram por lá, mas é gordo, pensa que é verme. Queria gostar de se ver nu.
Vem vinte minutos de balaio, que é como os amigos chamam a Kombi velha que sempre leva os homens bem cedo até o metrô. Maus cheiros, medo, perfumaria nacional em excesso, barulhos, insegurança. Nunca aceitou a conversa de ser pobre. “E quem gosta?” Depois do vime, mais duas horas de chacoalha até a estação mais próxima de Moema. Edgar, a essa altura, poderia pensar “Por que o lugar mais próximo que o trem pode parar fica a uma dezena de quadras dos limites do bairro?”. Mas ele não pensa. Ele, não pensa.
Quase no final de sua jornada, de volta ao momento do conto, ele diminui o passo, com medo de suar. Prefiro olhar como o jovem Borges. Se as ruas entediadas são as entranhas de um homem, o nosso é a faca, que a princípio rasgou violentamente e agora passeia viscosa saboreando a ocasião corriqueira e não vital de estar nobre, o gozo infinito de caber. Ele confere os bolsos. Do direito, desembainha letras, antes tipografadas, solicitando a presença de um jardineiro. O papel semi-úmido diz-lhe vagamente o que deseja. Segue ambicioso e perambula. Visto que não há nada notável em perambular, saio, corto um tomate, salpico moderadamente de sal e retorno a tempo de encontrar Edgar, desarmado, às portas do número 119 da Rua Marquês Diderot de Vaudeville. Nem se enxergasse bem, entenderia a ironia exuberante deste lugar.
Como o destino é meticuloso, se o desposamos! No instante em que o suburbano se aproxima, e uma garoa de camurça alegra alguns, decepciona outros e a maioria não nota, uma senhora gorda, dentro de uma vestimenta bicolor e lógica, com um laço prudente na cintura, despede-se de duas crianças feias, mas ricas, e permanece do lado de fora de um Audi negro, com rodas de ligas metálicas, que se apressa e passa por Edgar, não por cima. Um happening. Os olhos vivos do menino, o mais novo, encontram o menino dentro do homem do lado de fora do carro. Acolhido, encolhido, amordaçado. Ambos! Há uma cumplicidade contrabandeada para fora deles que não cabe na história.
Es fangt nur an, kämpfen wir weiter. Edgar confere sua roupa, enquanto avança morosamente por entre as colunas do portal. A criada, acho que leio Silvana bordado em seu avental, retrocede, foge mesmo, da chuva, para debaixo da marquise. “Pelo anúncio, dona, de jardineiro”, atira o pretenso empregado, antes que ela chame ajuda. Não haveria socorro, se ele fosse bandido agora. O dono da casa é um empreiteiro, um capitalista de coragem. Confia em poucos. Prefere a segurança de seu muro e de sua Beretta 92, 9mm, fundos, terceira gaveta destrancada da esquerda, escrivaninha do escritório. Pode ser desapego, pouco o que perder. “Limpe os pés e entre, senhor, que já vou chamar o dono da casa.” Silvana se vira e ouvimos o barulho de seus sapatos subindo a escada.
É interessante como, em doze horas, vai-se de Léon a Pollux. O homem naturalmente metropolitano que ontem à noite castigava uma indócil criatura marginal, cópula em crina, a fim de arrebatar-lhe seus breves momentos de candura, hoje está reduzido a um garoto quebradiço e acuado, mínimo de compostura, máximo de medo, de uma grandiosa violência potencial. O dobro de passos retorna do alto. Metade afasta-se pela porta. “O senhor quer candidatar-se a nossa vaga de jardineiro? Que ótimo!” Pantufas amenizam o andar pesado de um homem robusto, da segunda juventude, cabelos lisos, rosto corado, grandes olhos azuis por detrás de óculos grossos à moda sessentista.
Este homem de nome Rubens, por ser rico, admira levemente a pele engrossada de trabalho que protege o corpo imbatível de Edgar. O de baixo também admira Rubens, por ser rico; mas, diferente do primeiro, rapidamente sublimaria qualquer dos seus dias por uma chance de se tornar outro. Melhor, de ter sido; não há tanto o que fazer. Também desapego. “Tô muito precisado, doutor.” O papel de cada um já decidido. “Ele precisa”. “É, todos nós precisamos de algo, meu filho.” Cristalizados. “Onde que o senhor mora?” Cabe dizer que se olhamos bem e reconhecemo-nos, e muitos poucos o fazem, somos todos impreterivelmente judeus, gregos e de Shakespeare.
Pergunta que antes incomodava o corpo, aguçando as mulheres, pode ser dita nesta manhã sem grandes contratempos, espera. “Campo Belo, doutor.” “Acordou cedo, não? Uma hora e meia, duas horas daqui?” “É, por aí.” “Estrangeiro”. “Que merda, é sempre a mesma pergunta!” Se é a primeira vez que ele pede emprego, avalio que o costume ou a cultura certamente assim nos provaria. “Mas gosto de levantar cedo, patrão, e a viagem é tranqüila.” Glória ao dinheiro e à mentira, colunas frágeis da nossa pretensão! “E a experiência? Onde o senhor trabalhou antes?”
Edgar pensa não haver relação alguma entre experimentar e trabalhar. Nunca trabalhou antes, talvez menino, da época que eu não o tinha sob as vistas. Por isso, ponderemos, torna-se deveras difícil sua aventura laboriosa. A Esfinge, próxima de devorá-lo, pergunta se já experimentou antes. Claro que sim. Diversos e em muitos lugares. De celas a coberturas. Tudo do bom. “Trabalhei numa casa no Itaim, do doutor Noronha”. “Ah, que coincidência, do doutor Noronha, grande banqueiro. E muito justo.” “É.” “Quanto tempo trabalhou pra ele?”
Dez anos antes, em um apartamento na Lapa, uma mulher deixa seu marido. Ele, sentado a um metro e meio da televisão, finge prestar atenção à overdose sangüínea de um noticiário. Assalto à mão armada, formação de quadrilha, oito anos, seis presos, cinco escondem o rosto. Cenário. Ela sai por trás do sofá, pela porta, duas malas. Não bate, gira lentamente a chave. Dois cliques. Mis en Cène também com um único traidor. Ele chora pouco. Assim como no preso que não se esconde, nele não há sombra envergonhada de qualquer desvio. Vai ao quarto, o filho dorme. Encosta a porta, sem cliques. Encore de l’audace, em outro cômodo, beija o bebê que, agitado, livra-se da fantasmagoria. Da janela, perde-se em uma avenida onde carros passam. Anos.
“Dois?” “É, e alguns meses.” Ótimo. “Ótimo! O senhor poderia me dar licença alguns instantes, enquanto troco esses óculos por umas lentes de contato. Nunca me acostumo.” A outra metade retorna escada acima. “Bom sujeito, esse doutor. Humilde. Como se fosse nós, mesmo.” Busca uma chance, quem sabe? “Trabalho uns meses arrumo uma grana, vou pra Minas, ou pra Bahia...” Não quer mais casar. Filhos, pra quê? Ofício aprendido, se perde o mendigo. “Acho que três dá”. A gorda entra na sala e vence os degraus com um ar empregado.
Três minutos depois, desce. “Desculpe, senhor, mas o patrão sente-se indisposto e pede que o senhor retorne em uma semana para resolverem a questão da vaga. Tudo bem?” “Tudo.” Indisposto?! Ela acompanha Edgar até a porta da casa. “Acho que dá pra eu voltar na Quinta ou na Sexta, se o Moreira me pagar a comissão”. Despedem-se sem palavras, sem intimidade possível. Ela não se dá para cúmplice. “Se não pagar, há sempre a vendinha da Vila Mariana.” Finalmente, ao fundo, Edgar não ouve o som criminoso e frenético da foice, da enxada e das mãos do jovem Agenor, que trabalha competentemente naquela casa há uns três anos, com a certeza declarada de não poder ser despedido.

Jan 16, 2008

Talvez um conto

A louça do chá

Nas horas de um fim de tarde, viu-se uma mesa posta. Sobre a toalha bege, de tempos, bordada às dezenas de flores desfiadas, apoiou-se uma rica louça de ascendência inglesa, mas escrava de fornos nacionais: um bule de dois palmos, tatuado de roxas violetas; dois açucareiros brancos, brancos, um de cada lado; quatro pratos com pequenas frutas pelas bordas; e, até mesmo, muitos casais de prata, solteiros, guardanapos de papel, dentre outros convidados. Enquanto o sol comedido entrava pela janela ao máximo de dois passos da mesa, tudo eram chá e bolachas, molhados um no outro, mas assim que o primeiro reflexo recendeu na parte de cima do pires, tudo teria se desfeito, se a xícara não interviesse com um carinho de soslaio, as costas frias do corpo, contra-corpo.

Jan 10, 2008

No cravo e na ferradura


É absolutamente senso comum que estamos perdendo a sensibilidade para o desastre. A overdose que sofremos de assassinatos, guerras, atrocidades etc. rapidamente nos deixa imunes a essa forma de violência ao espírito (ou a maioria de nós, pelo menos). Só realmente morre de cólera em nosso bairro, ou sendo nosso vizinho ou nosso irmão. O mesmo com seqüestros, assaltos, balas na cabeça. O resto é tipografia ou internet, sem a materialidade unânime que confere existência às coisas reais. Há até casos de alguns malucos que, perdendo o filho, dizem-no ser "mais um caso do que vivenciamos" ou "um exemplo da violância na cidade". Para o diabo com os exemplos! Exemplos são recortes metodológicos, geralmente ruins, para se constatar tal ou qual teoria, não brincam de carrinho, crescem, se assanham, não criam eles mesmos exemplos para explicar o mundo...
O que realmente me intriga, oposto diametralmente, e aceito solícito hipóteses esclarecedoras, é a razão por que perdemos igualmente nossa sensiblidade para o maravilhoso. Quantas pessoas devem sorrir para considerarmos o riso? Quantas nos devem elogiar para dizermos "bom, salvo ser saco de carne, isso ao menos não me escapa"? Quantos devem se emocionar por uma canção, poema, escrito para que reconheçamos válida a tentativa de arte? Não sei o quanto compartilham comigo esse assombro, mas tenho me descoberto cada vez mais imune ao maravilhoso, cada vez mais além do tocante! Caso sintam, alertem-se, pois este processo tende a ser muito mais perigoso do que o primeiro. Não por ser silencioso, mas por agir "no cerne do afeto".
É necessário somente um braço para nos erguer do lago ou afogarmo-nos! Às vezes nem isso!

Jan 8, 2008

De como quase me matei no reveillon

O maior problema do leitor assíduo é a crise assídua. Os grandes escritores, estes que pensam toda a vida a respeito de uma ou mais questões e deixam para nós obras grandiosas e inquietantes, são certamente os maiores carrascos e vítimas dessas crises. Nosso privilégio cruel (por vários motivos) de leitor contemporâneo se configura quando algumas dessas idéias se juntam em nossas cabeças numa conclusão absoluta e de cerne. Não pensam que chega como cão de praia, manso, lento, portão adentro, na hora dos fogos. Vem, sim, como um estalo, e deixa a clara certeza de que a existência é algo mais da ordem do irrecuperável do que do contentamento. Lá estava eu, então, na casa de praia de amigos, com “isto” dentro da cabeça. Apesar dos esforços de uma (hoje) amiga, saí por volta das seis da tarde em direção à cidade da garoa, no contra fluxo da felicidade humana que descia a serra. O resumo dos fatos, porque detesto restringir a criatividade maravilhosa dos leitores, é que, por volta das onze, liguei para meu pai e minha mãe antecipadamente, com a desculpa de que desceria pra praia na hora das festas, fiz os votos tradicionais em tom de despedida (obviamente não percebido), abri a janela e listei durante uns trinta minutos os motivos que valeriam a pena pular ou não, ir ou ficar. Bom, como visto, fiquei... ando com um osso entalado na garganta, mas fiquei. Com certa sensação de ter feito a escolha errada, mas fiquei. Com aquela certeza coquetel molotov ainda estacionada na alma, mas fiquei. Ainda mais desolado do que antes, porque ainda mais covarde, mas fiquei...

Enfim, muita poesia a cada um dos leitores desse blog todos os dias, que um feliz dia novo (por mais que não se perceba) vale mais do que um feliz ano novo.

p.s.: Voltando ao que interessa, Wilde é genial. “Toda influência é imoral... imoral, do ponto de vista científico”, “A beleza é uma forma de genialidade; é, na verdade, mais elevada do que a genialidade, pois não carece de explicação”, “a juventude é a única coisa que vale a pena possuir”. Wilde é genial.